Internacional
Temores na Alemanha que capital privado se aposse da saúde
Investidoras compram consultórios em massa que, orientados para o lucro, levariam a tratamentos caros. Ministro da Saúde condena “capitalismo predatório” e médicos protestam: interesse do paciente continua acima de tudo
Cresce na Alemanha a preocupação de que os médicos passem a prescrever tratamentos desnecessários, pressionados pelos grupos internacionais de investimentos que compram cada vez mais consultórios. A tendência se aplicaria em especial àqueles que oferecem serviços extras custosos, não cobertos pelos seguros de saúde, como oftalmólogos, radiologistas e odontólogos.
Uma análise publicada em maio pelo coletivo de pesquisa financeira Finanzwende indicou que, em 2022, firmas de capital privado (private equity) adquiriram 174 consultórios médicos na Alemanha, contra 140 no ano anterior e apenas dois em 2010.
Segundo pesquisa da emissora pública NDR, essas multinacionais já seriam proprietárias de centenas de estabelecimentos por todo o país, ao ponto de algumas cadeias deterem monopólio em certas regiões e municipalidades.
Em 2022, a problemática entrou no radar do governo alemão: “Estou pondo um fim à compra de consultórios por investidoras, por absoluta ganância de lucros”, declarou o ministro da Saúde Karl Lauterbach ao periódico Bild am Sonntag em dezembro.
O social-democrata prometeu ainda um projeto de lei “para impedir esses gafanhotos” de entrarem no setor médico, uma alusão ao capitalismo predatório de corporações de private equity que adquirem firmas ou imóveis em massa e executam reestruturações questionáveis, para depois revendê-los com lucro máximo e seguir adiante, sem considerar as consequências locais.
Sistema de saúde de dois níveis na Alemanha
Horst Helbig, porta-voz da Sociedade Alemã de Oftalmologia (DOG) e diretor de uma clínica na cidade de Regensburg, na Baviera, confirma que o benefício financeiro é o foco das clínicas geridas por investidoras.
“O propósito de um grupo de investimentos é 100% fazer lucro: eles não querem outra coisa e, no fim das contas, não têm permissão para fazer qualquer outra coisa. É claro que um consultório de propriedade de um único profissional também precisa fazer dinheiro, mas sua finalidade primordial é fornecer cuidados médicos.”
Um relatório de 2022 do instituto de pesquisa IGES parece fundamentar essa afirmação, ao concluir que as clínicas de investidores ganham 10,4% mais em taxas do que as de propriedade única. Por sua vez, a Federação Alemã de Operadoras de Centros de Cuidados Médicos (BBMV) rebate a conclusão que suas unidades careçam de autonomia do ponto de vista medicinal.
A Alemanha possui um sistema de saúde em dois níveis, financiado pelas contribuições de empregados e empregadores, somando centenas de bilhões de euros ao ano. O seguro de saúde é compulsório para todo cidadão, e as seguradoras públicas, que servem cerca de 90% da população, não podem recusar seus serviços a ninguém. Apenas cerca de 10% opta pelos seguros particulares, que oferece mais serviços.
Helbig, da DOG, diz vir registrando a tendência dos consultórios das investidoras de recusarem os segurados do sistema público, para se concentrarem nos que lhes trarão lucro: “Alguns pacientes são lucrativos, outros custam dinheiro, e o que temos notado é que muitos que não podem ser tratados com lucro estão sendo transferidos para os hospitais públicos.”
Isso se faz notar especialmente em clínicas oftalmológicas, onde há grandes disparidades de preço entre os tratamentos, e alguns não são cobertos pelo seguro: “O que é bem pago são operações de catarata, ao contrário de qualquer tipo de procedimento de emergência”, exemplifica o oftalmologista.
Pacientes não sabem se tratamento é ditado por lucros
Os atrativos para os fundos de capital privado são óbvios: a Finanzwende calcula que a margem de lucro deles sobre o valor investido chega a 20% – mas só se comprarem um número suficiente de consultórios.
A pesquisadora do coletivo Aurora Li explica que o modelo de negócio desses fundos depende de fundir diversos estabelecimentos e realizar reestruturações operacionais arriscadas neles, em parte através de empréstimos, para mais adiante vendê-los com lucro.
“O foco não é no lucro operacional, mas no fluxo de dinheiro constante. Então, se a companhia é capaz de manter um fluxo regular, pressionando os médicos para venderem tratamentos lucrativos, e usando menos capital próprio e mais créditos, elas podem se tornar atraentes para outros investidores financeiros.”
“Só é possível criar um fluxo alto de verba possuindo muitos consultórios médicos”, completa a funcionária da Finanzwende, e toca num ponto nevrálgico: “É profundamente alarmante os pacientes não poderem estar seguros de que seu tratamento não é influenciado por expectativas de lucro.”
Médicos rechaçam associação com “gafanhotos”
Antes mesmo que o projeto de lei prometido pelo ministro Lauterbach se materialize, certas associações já protestam pelo emprego de termos como “gafanhotos”. Segundo a BBMV, com base em dados governamentais, não há provas estatísticas de que o tratamento nas clínicas geridas por investidoras seja inferior, de algum modo.
Em maio, numa carta indignada, profissionais dos centros de cuidados médicos como os geridos pela BBMV rejeitaram as dúvidas que Lauterbach teria lançado sobre sua autonomia profissional: “Na qualidade de médicos contratados, exercemos nossa profissão com a mesma paixão e comprometimento com o paciente que os nossos colegas nos consultórios particulares […] ou nos hospitais. Infelizmente notamos que o nosso trabalho está sendo denigrido em público.”
Partindo para a ofensiva, a BBMV afirmou que nos consultórios próprios há a mesma motivação para obter lucro. O argumento procede, mas só até certo ponto, rebate Helbig.
“Com certeza, há médicos trabalhando em clínicas geridas por investidoras que não admitem ser pressionados. E, claro, há outros que têm estabelecimento próprio para quem o tratamento médico não é a prioridade.” Porém as pressões, insiste, são maiores no primeiro tipo de consultório.
Private equities têm seu lado bom?
O porta-voz da Associação Nacional dos Médicos do Seguro de Saúde Público (KBV) Roland Stahl adota um tom conciliatório, ressalvando que “nem todo investidor é um gafanhoto”, mas é diferente quando grupos de investimentos compram consultórios em áreas específicas para criar monopólios.
“Claro, é preciso manter isso sob observação. Mas investimento de capital pode ser positivo, pois às vezes possibilita a aquisição de equipamento médico caro, como scanners de ressonância magnética, por exemplo.”
Também Helbig não é, em princípio, contra a ideia de fundir consultórios, já que os particulares enfrentam tantas pressões econômicas diferentes, que o sistema não é praticável em sua forma atual.
Poucos médicos estão preparados para encontrar o financiamento e enfrentar as jornadas semanais de 60 horas necessárias a fundar seu próprio estabelecimento, admite o porta-voz dos oftalmologistas alemães: “Hoje é muito difícil fazer tudo sozinho. Realmente faz sentido compartilhar esses recursos todos, então é preciso alguma mudança.”