Politíca
Como saber se o partido é de extrema-direita ou extrema-esquerda?
As eleições na França e a decisão do Conselho de Estado sobre as nuances políticas
“A esquerda venceu num país de direita” foram as palavras de Vincent Trémolet de Villers, jornalista francês, ao comentar o resultado do segundo turno das eleições legislativas na França, que aconteceram no último domingo (7).
A jogada de pôquer do presidente Emmanuel Macron, que comentamos neste artigo, deu relativamente certo. Apesar do maior número de votos em favor da extrema direita no segundo turno (32,05%), o Rassemblement National (RN) ficou com apenas 125 cadeiras. O grande vencedor das eleições é a coalizão de esquerda Union de la Gauche (UG) com o Nouveau Front Populaire (NFP)[1], que totalizaram 178 cadeiras, com 25,86% dos votos válidos, podendo chegar a 195 cadeiras, consideradas todas as coalizões de esquerda. Em seguida, a coalização do partido de Macron, Ensemble (ENS), galgou 150 cadeiras na Assembleia, com 23,15% dos votos no segundo turno.
Essa distorção acontece porque os deputados franceses são eleitos por sufrágio universal direto em votação uninominal majoritária em dois turnos (votam em pessoas e não em listas). As eleições ocorrem em 577 circunscrições, cada qual representando uma cadeira[2]. Como não há proporcionalidade entre o número de votos recebidos por um partido e o número de cadeiras, se um candidato obtiver um maior número de votos, conquista apenas uma cadeira.
Como costume constitucional, o nome do primeiro-ministro é representante da coalização vencedora das eleições[3]. Mas como nenhum partido alcançou a maioria absoluta da Assembleia de Deputados, terão de formar novas coalizões para governar. Será uma “quase” coabitação, porque pretendem cooperar, mas possuem vocações políticas diferentes.
Enquanto a França faz frente a uma série de dificuldades econômicas e políticas, como déficit fiscal, falta de segurança pública, inflação e necessidade de conter gastos, a pauta política da coalizão de esquerda é pelo aumento de benefícios assistenciais, volta do Imposto sobre Grandes Fortunas (ISF)[4] e redução da idade da aposentadoria (que já é a menor da Europa).
As políticas aparentemente contraditórias e um nome ainda assustam o eleitorado: Jean-Luc Mélenchon, presidente do partido La France insoumise (A França Insubmissa), que já defendeu, em outras oportunidades, uma nova república.
Alguns o qualificam como de extrema esquerda. Mas, afinal, o que é ser de extrema direita ou de extrema esquerda?
A pergunta pode parecer fruto de um discurso retórico de argumentação ou completamente inadequado e obsoleto[5]. Então, por que ainda falamos em esquerda e direita?
As explicações poderiam remontar à Revolução Francesa, em que os deputados sentados à esquerda da Assembleia Constituinte queriam aumentar os poderes do corpo parlamentar e impedir que o rei tivesse poder de veto, ao passo que os deputados sentados à direita eram a favor de conferir a última palavra ao rei. Mas para não falar de Hamurabi, concentremo-nos no que significa hoje. O sentido de esquerda e direita varia conforme as épocas, países, instituições e culturas. [6] É quase impossível obter definições consensuais.
Mas a ideia de categorizar partidos em espectros políticos tem como objetivo dar clareza aos eleitores no momento de votar e de controlar o seu candidato eleito. Nem todo cidadão sabe ou pretende se aprofundar com a leitura de um programa político.
Por isso, essas nomenclaturas evocam – embora, vagamente – algumas ideias principais e ideologias associadas às pretensões de políticas públicas do partido. São etiquetas. Idealmente, quanto mais clara a “etiqueta”, mais fácil se torna para o eleitor criar afinidades com as ideias que pretende ver perseguido pelos candidatos que elege e controlar o seu mandato. Para a Comissão Nacional Francesa de Informática e Liberdades (CNIL), a finalidade geral dessas classificações é a organização e o acompanhamento das funções eletivas e dos mandatos eleitorais[7].
As definições, contudo, são tão imprecisas, que se tornou lugar comum qualificar um partido de “extremo” para o rotulá-lo de diabólico, populista ou antidemocrático Segundo explicação do Observatório das Radicalizações Políticas da Fundação Jean-Jaurès, a eleição de partidos de centro que se opõem à clivagem entre direita e esquerda, a exemplo da legenda de Macron, teriam favorecido a ascensão dos partidos de extrema[8], descritos, por Jean-Pierre Faye[9], como uma ferradura, porque muito mais próximos entre si do que do centro. O discurso maniqueísta facilita a oposição.
Para tentar oferecer um disclosure aos eleitores franceses, o Ministério do Interior (o equivalente à Casa Civil), valendo-se do Decreto 2014-1479, estabelece uma posição oficial acerca do espectro político de cada partido, com base, essencialmente, em estudos clássicos e reconhecidos de historiadores e de cientistas políticos[10].
Mais recentemente, o ministério editou a circular de 16 de agosto de 2023[11], com a ideia de oferecer uma visão oficial sobre as orientações partidárias, chamadas de “nuances políticas”. Essas nuances são atribuídas pela administração e definidas a partir de critérios e aproximações que se querem objetivos, embora discricionários e reducionistas. Em contrapartida, o partido político pode escolher, livremente, a sua “etiqueta política” [12] para fazer campanha. A circular possui seis espectros, “extrema direita”, “direta”, “centro”, “esquerda”, “extrema esquerda” e “outros”.
Em termos simplistas, a extrema direta seria associada ao nativismo, preferência nacional e autoritarismo. A extrema esquerda, por sua vez, seria anticapitalista, igualitarista ao extremo, com rejeição às instituições e defesa do acesso ao poder pelo proletariado por revolução armada e não pelas urnas[13].
A circular acima mencionada foi contestada pelo RN porque querem se livrar da pecha de serem de “extrema” direita. Preferem termos como ultradireita. O RN também contestou a classificação dos Partidos Comunista Francês e La France Insoumise como de esquerda e não “extrema esquerda”.
Numa decisão proferida em 11 de março de 2024[14], o Conselho de Estado, contudo, rejeitou o recurso do RN e confirmou todas as classificações realizadas pelo ministério no espectro político. Para a corte, o ministério pode, no âmbito do poder de organização e realização das operações eleitorais, estabelecer uma grade de nuances políticas e prever seu agrupamento em blocos de clivagem, com vistas a permitir a agregação dos resultados das eleições necessária à informação dos poderes públicos e dos cidadãos.
A corte administrativa também entendeu que a nuance política, embora potencialmente desfavorável, não impacta a sinceridade do escrutínio, que garante que as eleições ocorram de maneira livre, transparente e equitativa para que o processo eleitoral reflita, fielmente, a vontade dos eleitores e os resultados das eleições. Por fim, não acolheu o argumento tratamento discriminatório em relação aos partidos de esquerda.
Naturalmente, a classificação realizada pelo governo da situação pode acabar por influenciar os eleitores, mas a estratégia de conferir uma posição pública oficial ao espectro político do partido pode atenuar os discursos sobre etiqueta que radicalizam o discurso da oposição, qualquer que seja.
[1] Reúne os seguintes partidos: Les Écologistes, La France insoumise, le Parti communiste français et le Parti socialiste, ainsi que Place publique, Génération·s, la Gauche républicaine et socialiste, le Nouveau Parti anticapitaliste et la Gauche écosocialiste
[2] Para se eleger no primeiro turno, o candidato deve obter a maioria absoluta dos votos expressos, desde que representem pelo menos 25% dos eleitores inscritos nas listas eleitorais. Se nenhum candidato cumprir essas condições, participam do segundo turno os candidatos que obtiverem pelo menos 12,5% dos votos dos eleitores inscritos, ou, se nenhum candidato cumprir essa condição, os dois candidatos mais votados. Se o número de votos for idêntico, vence o candidato mais velho.
[3] O atual Primeiro-Ministro, Gabriel Attal, adiou sua demissão para o dia 09 de julho de 2024.
[4] Sobre o tema do Imposto sobre Grande Fortunas: FOSSATI, Gustavo Fossati; MAURITY, Soraya Nouira y. Aspectos regulatórios na tributação do imposto sobre grandes fortunas: Uma análise jurídico-comparativa entre Brasil, Alemanha e França. In: CIDEEFF Working Papers – nº13 https://www.cideeff.pt/pt/publicacoes/working-papers/aspectos-regulatorios-na-tributacao-do-imposto-sobre-grandes-fortunas-uma-analise-juridico/6258/. Acesso em 08.jul.2024.
[5] TALEB, Nassim Nicholas. The Black Swan : The Impact of the Highly Improbable. Rev. Allen Lane; 2011.
[6] BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Unesp, 1995.
[7] Délibération n° 2013-406 du 19 décembre 2013. Ver o seguinte comentário: CAMBY, Jean-Pierre; SCHOETTL Jean-Éric. Le contentieux de la circulaire Nuançage devant le Conseil d’État. Publié le 19/03/2020. Disponível em: https://www.actu-juridique.fr/constitutionnel/le-contentieux-de-la-circulaire-nuancage-devant-le-conseil-detat/. Acesso em 08.jul.2024.
[8] JARDIN, Antoine. La poussée de l’extrême droite, vecteur de la décomposition du champ politique français. Fondation Jean Jaurès. Observatoire des Radicalités Politiques. 08.jun.2024. Trecho: “La stratégie portée par Emmanuel Macron depuis 2017 a consisté à marginaliser la gauche socialiste et la droite parlementaire. Cette marginalisation opérée durant sept ans s’est traduite par la progression du RN au sein de l’électorat de la droite et de LFI au sein de l’électorat de gauche. Les pôles les plus éloignés du centre ont ainsi obtenu une position dominante sur leurs périphéries modérées”. Disponível em: https://www.jean-jaures.org/publication/la-poussee-de-lextreme-droite-vecteur-de-la-decomposition-du-champ-politique-francais/. Acesso em 08.jul.2024.
[9] FAVRE, Pierre. Revue Française de Science Politique, vol. 26, no. 3, 1976, pp. 600–10. JSTOR, http://www.jstor.org/stable/43115917. Accessed 8.jul.2024.
[10] A exemplo da classificação do historiador Serge Cosseron, no seu livro “Dictionnaire de l’extrême gauche”. Paris, Larousse, 2007.
[11] FRANCE. Légifrance. IOMA2322276J, du 16 aôut 2023. Instruction relative à l’attribution des nuances aux candidats des élections sénatoriales de 2023. Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/circulaire/id/45472?origin=list. Acesso em 08.jul.2024.
[12] Para as etiquetas políticas, não existem categorias nem grades predefinidas a este respeito. Um candidato ou uma lista de candidatos pode se declarar como ‘sem etiqueta’ ou não declarar nenhuma. A etiqueta política reflete as convicções ou compromissos pessoais do candidato no domínio político e pode diferir do partido indicado no formulário de filiação para fins de auxílio público.
[13] Na França, o Novo Partido Anticapitalista – NPA seria de extrema esquerda.
[14] FRANCE, Légifrance. Conseil d’État, 2ème chambre, 11/03/2024, 488378, Inédit au recueil Lebon. Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/ceta/id/CETATEXT000049267171#:~:text=La%20circulaire%20du%2016%20aout,enregistrement%20des%20candidatures%2C%20%C3%A0%20chaque. Acesso em: 08.jul.2024.
COSSERON, Serge. Dictionnaire de l’extrême gauche. Paris, Larousse, 2007.
CAMBY, Jean-Pierre; SCHOETTL Jean-Éric. Le contentieux de la circulaire Nuançage devant le Conseil d’État. Publié le 19/03/2020. Disponível em: https://www.actu-juridique.fr/constitutionnel/le-contentieux-de-la-circulaire-nuancage-devant-le-conseil-detat/. Acesso em 08.jul.2024.
Favre, Pierre. Revue Française de Science Politique, vol. 26, no. 3, 1976, pp. 600–10. JSTOR, http://www.jstor.org/stable/43115917. Accessed 8.jul.2024.
FOSSATI, Gustavo Fossati; MAURITY, Soraya Nouira y. Aspectos regulatórios na tributação do imposto sobre grandes fortunas: Uma análise jurídico-comparativa entre Brasil, Alemanha e França. In: CIDEEFF Working Papers – nº13 https://www.cideeff.pt/pt/publicacoes/working-papers/aspectos-regulatorios-na-tributacao-do-imposto-sobre-grandes-fortunas-uma-analise-juridico/6258/. Acesso em 08.jul.2024.
FRANCE, Légifrance. Conseil d’État, 2ème chambre, 11/03/2024, 488378, Inédit au recueil Lebon. Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/ceta/id/CETATEXT000049267171#:~:text=La%20circulaire%20du%2016%20aout,enregistrement%20des%20candidatures%2C%20%C3%A0%20chaque. Acesso em: 08.jul.2024.
FRANCE. Légifrance. IOMA2322276J, du 16 aôut 2023. Instruction relative à l’attribution des nuances aux candidats des élections sénatoriales de 2023. Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/circulaire/id/45472?origin=list. Acesso em 08.jul.2024.
JARDIN, Antoine. La poussée de l’extrême droite, vecteur de la décomposition du champ politique français. Fondation Jean Jaurès. Observatoire des Radicalités Politiques. 08.jun.2024. Trecho: “La stratégie portée par Emmanuel Macron depuis 2017 a consisté à marginaliser la gauche socialiste et la droite parlementaire. Cette marginalisation opérée durant sept ans s’est traduite par la progression du RN au sein de l’électorat de la droite et de LFI au sein de l’électorat de gauche. Les pôles les plus éloignés du centre ont ainsi obtenu une position dominante sur leurs périphéries modérées”. Disponível em: https://www.jean-jaures.org/publication/la-poussee-de-lextreme-droite-vecteur-de-la-decomposition-du-champ-politique-francais/. Acesso em 08.jul.2024.
TALEB, Nassim Nicholas. The Black Swan : The Impact of the Highly Improbable. Rev. Allen Lane; 2011.
autores
SORAYA NOUIRA Y MAURITY – Pesquisadora. Doutoranda e mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio. Mestre em Direito Público e em Direito Público Internacional pela Université Jean Moulin, Lyon III (França)
FELIPE DE MELO FONTE – Professor de Direito Constitucional na FGV Direito. Doutor e mestre pela UERJ. L.L.M. pela Havard Law School. Procurador do Estado do Rio de Janeiro