Internacional
Genocídio yazidi: reparações cada vez mais distantes
Dez anos após massacre cometido pelo “Estado Islâmico”, Iraque expulsa a Comissão Especial de Inquérito da ONU Unitad. Muitas vítimas e suas famílias estão perdendo a esperança de obter justiça e reparações
Nas primeiras horas da manhã de 3 de agosto de 2014, o grupo extremista “Estado Islâmico” (EI) atacou comunidades no norte do Iraque que abrigavam a minoria étnico-religiosa yazidi.
Os homens foram executados no local, as mulheres e crianças foram capturadas, e milhares acabaram sendo vendidas como escravas.
Em 2017, o EI foi declarado derrotado no Iraque. Hoje, a maioria de seus membros está morta, presa ou clandestina. Mas muitos yazidis ainda aguardam por justiça.
Progresso nos últimos anos
Houve avanços positivos na última década, observa Murad Ismael, diretor da Sinjar Academy, um instituto de educação yazidi no norte do Iraque. Isso inclui o reassentamento de sobreviventes em outros países e processos judiciais internacionais envolvendo ex-membros do EI. Houve ainda o reconhecimento internacional de que o EI cometeu genocídio contra os yazidis e a Lei dos Sobreviventes Yazidis do governo iraquiano. Essa legislação de 2021 oferece reparação às mulheres yazidis vítimas de abuso, incluindo uma renda mensal de cerca de 500 dólares (R$ 2.850).
Mas tanto Ismael quanto outros especialistas avaliam que ainda há muito a ser feito. Dos cerca de 7 mil yazidis capturados pelo EI, 2.600 ainda estão desaparecidos, enquanto valas comuns continuam sendo abertas no Iraque. A busca por justiça tampouco anda bem: “Acho que o mundo, incluindo o Iraque, agora está deixando de lado esse capítulo do EI”, comenta Ismael.
Infelizmente, em 2024 os yazidis sofreram outro grave revés: o fechamento inesperado da Equipe de Investigação das Nações Unidas para a Responsabilização por Crimes Cometidos pelo Daesh (acrônimo em árabe do EI). A organização, comumente conhecida como Unitad, começou a trabalhar em 2018 para investigar os crimes do grupo, inclusive os cometidos contra os yazidis, mas será dissolvida em meados de setembro.
A Unitad está no Iraque a convite do governo do país, mas no fim de 2023 os iraquianos disseram que ela não era mais necessária. O chefe da entidade, Christian Ritscher, já alertou que sua equipe não conseguirá concluir os trabalhos até setembro.
“Muitos sobreviventes […] veem a Unitad como a única esperança de alcançar uma justiça significativa no Iraque”, argumentaram 33 diferentes grupos de advocacia em carta aberta. “A interrupção de seu trabalho de forma tão abrupta […] seria um desastre para os sobreviventes, para o Iraque e para a comunidade internacional. Isso enviaria o sinal de que a justiça não é uma prioridade real.”
Por que fechar a Unitad?
Há vários motivos para o fim inesperado da Unitad. Um deles é político, e “qualquer coisa internacional parece não ser bem recebida pelo novo governo iraquiano”, afirma Ismael. Em maio de 2024, o Iraque solicitou a retirada da Missão de Assistência das Nações Unidas que atuava no país desde 2003.
Relatos da imprensa local também sugerem um atrito entre a Unitad e o establishment iraquiano: o Iraque não tem uma lei sobre crimes internacionais, ou seja, violações graves do direito internacional, como crimes contra a humanidade, genocídio, tortura ou desaparecimentos forçados.
Por isso, nenhum membro do EI foi acusado de crimes internacionais no Iraque, salientou o professor de direito curdo Bryar Baban numa análise para o Centro de Pesquisa Francês sobre o Iraque, no início de 2024, comentando: “Lamentavelmente, a Unitad não teve sucesso em pressionar as autoridades iraquianas a promulgar tal legislação.”
No Iraque, os membros do EI geralmente são processados com base em leis antiterrorismo: “O sistema judiciário iraquiano carece de julgamentos justos, com alguns durando apenas 10 minutos. Os julgamentos não incluem vítimas e sobreviventes […] e as atrocidades cometidas contra os yazidis raramente são levadas em conta nos processos judiciais iraquianos.”
Além disso, o Iraque aplica a pena de morte, à qual a ONU se opõe. É por isso que, segundo a mídia local, a Unitad nem sempre demonstrou muito interesse em compartilhar provas com os iraquianos.
Impacto do fechamento da Unitad
“Vai haver um grande vazio que precisará ser preenchido”, afirma Pari Ibrahim, diretora da Free Yezidi Foundation, durante um evento recente do Atlantic Council. “Estávamos realmente contando com a Unitad.”
Mas o que mais preocupa os especialistas jurídicos e as organizações de defesa é o que acontecerá com as provas que a Unitad coletou até agora. Algumas vieram por meio do governo iraquiano, mas a organização também mantinha investigadores conduzindo entrevistas em campo.
“Muitos sobreviventes procuraram a Unitad porque confiavam no mecanismo da ONU”, ressalta Ibrahim. “Muitos não queriam compartilhar seu testemunho com os promotores iraquianos”, por não confiar neles.
Relatos da imprensa sugerem que as autoridades iraquianas podem agora querer manter as provas e conduzir julgamentos dentro do próprio país. E deram também a entender que se reservarão a prerrogativa de autorizar os promotores de outros países para usar as provas iraquianas.
Mas, como questiona o professor de direito Baban, se o Iraque se recusar a repassar as provas, “será que não estaremos diante de uma negação de justiça?”
E agora?
As organizações de defesa dos yazidis sugeriram que a ONU mantenha as provas da Unitad em segurança ou que outro tribunal especial seja criado para substituí-la.
“Em última análise, nossa posição é que queremos que a justiça seja feita no Iraque”, disse Natia Navrouzov, diretora da organização de defesa Yazda, durante o evento do Atlantic Council. “Como essa é a terra natal dos yazidis e de outras minorias que foram alvos de ataques, é aqui que está a maioria dos sobreviventes, as provas, os autores e as cenas dos crimes. Mas o que está faltando é a confiança.”
Há um projeto de lei no Iraque que prevê o julgamento de crimes internacionais, mas ele ainda não foi aprovado. E as autoridades iraquianas não são suficientemente transparentes sobre seus planos, argumentou Navrouzov. “No momento, a mensagem é a de que ‘estamos fechando a Unitad e vamos assumir o controle. Mas onde está a parte da construção de confiança?”
“Acredito na luta, mas, como disse antes, também acho que o mundo seguiu em frente”, conclui Ismael, diretor da Sinjar Academy. “Mas nós, yazidis, não podemos seguir em frente. Nós nos apegamos a essa ideia de responsabilidade e justiça porque, para nós, é algo pessoal – enquanto para o resto do mundo é algo político. Para eles, o EI acabou, não existe mais. Mas nós nunca podemos esquecer.”