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Estádio do Flamengo e fundos de investimento novamente nos tribunais
Cada vez mais os tribunais brasileiros são instados a julgar causas envolvendo fundos de investimento e seu complexo regime jurídico, disciplinado proeminentemente por normas infralegais. Trata-se de um reflexo da relevância econômica dessa figura, que representa uma indústria de cerca de R$ 8 trilhões.
Essa proeminência econômica contrasta, porém, com a pouca atenção que, ressalvas à parte, a comunidade jurídica historicamente confere ao instituto. São raras, por exemplo, as faculdades que oferecem uma disciplina (quando muito, eletiva) consagrada ao seu estudo e ainda é insuficiente — vis-à-vis a complexidade e a amplitude das discussões que se verificam na prática — o número de trabalhos acadêmicos a seu respeito.
É verdade que esse quadro está mudando, com o surgimento de bons cursos e congressos e a publicação de boas monografias e obras coletivas sobre fundos. Mas ainda há muito a se fazer para que o tema alcance níveis satisfatórios de compreensão pelos operadores do direito em geral — e não apenas por especialistas nessa área.
O recente imbróglio judicial envolvendo o terreno onde se pretende construir o novo estádio do Flamengo é um exemplo disso.
Como se sabe, o prefeito do Rio de Janeiro publicou decreto determinando a desapropriação de um terreno pertencente a um fundo de investimento imobiliário administrado pela Caixa Econômica Federal para que ali fosse construído um estádio de futebol, no contexto do projeto público de revitalização da região em que situado. A notícia logo suscitou a dúvida sobre se a desapropriação seria possível, tendo em vista que a CEF é uma autarquia federal.
Inicialmente, a dúvida foi sanada a partir da constatação de que o fundo é figura diversa de seu administrador, que dele é mero prestador de serviço e cujo patrimônio não se confunde com o dele (conforme consta expressamente, inclusive, da lei que disciplina os fundos de investimento imobiliários: Lei 8.668/93, artigo 7º).
No dia 30 de julho, contudo, véspera da data da realização do leilão destinado à alienação do imóvel, foi noticiado o deferimento de uma liminar que suspendia a realização do certame, ao argumento de que, além de administradora — que, no caso dos fundos de investimento imobiliário, faz dela a proprietária fiduciária dos ativos do fundo —, a CEF também seria a única cotista do fundo de investimento. Segundo a decisão proferida pela 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro (na Ação Popular nº 5051495-86.2024.4.02.5101):
“Em relação à natureza dos fundos de investimentos, o art. 1.368-C dispõe que ‘o fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)’. Ou seja, é um ente despersonalizado.
De acordo com Melhim Namem Chalhub, o legislador resolveu por atribuir à própria sociedade administradora a propriedade dos imóveis que integram a carteira do fundo, definindo, então, a propriedade fiduciária. E que os imóveis adquiridos no regime de propriedade fiduciária formam um patrimônio autônomo, o qual não se confunde com da administradora.
Importante destacar a lição do autor, nos termos abaixo:
‘Na sua configuração se pode conhecer um condomínio de natureza especial, com patrimônio, contabilidade específica, capacidade de representação em juízo e administração por uma espécie de trustee.
E o patrimônio desse Fundo de investimento é constituído pelos bens e direitos adquiridos pela instituição administradora, sob forma de propriedade fiduciária da instituição administradora, que no caso concreto é a Caixa Econômica Federal.
Optou o legislador por atribuir à própria sociedade administradora a propriedade dos imóveis que integram a carteira do fundo, definindo, então, a propriedade fiduciária.
A fórmula permite que os quotistas (fiduciantes) outorguem a gestão dos seus investimentos imobiliários a uma instituição administradora (fiduciária).
Para tanto, com os recursos provenientes da subscrição de quotas de participação, essa instituição adquire imóveis em regime fiduciário, forma um patrimônio separado e promove sua administração em proventos dos quotistas’
(Alienação fiduciária: negócio jurídico / Melhim Namem Chalhub.- 7. ed.- Rio de Janeiro: Forense, 2021, fls. 471-473)
Importante destacar que soma-se à propriedade fiduciária da Caixa Econômica Federal a condição dela como única cotista do Caixa Fundo de Investimento Imobiliário Porto Maravilha.
Desse modo, ela tem, bem vistas as coisas, a propriedade plena, se se somar a propriedade fiduciária e as cotas do fundo de investimento.
Com base em um entendimento a fortiori acerca do art. 2º, § 3º, do Decreto- Lei n. 3.365/1941, como e vedada a desapropriação, pelos Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios de ações, cotas e direitos representativos do capital de instituições e empresas cujo funcionamento dependa de autorização do Governo Federal e se subordine à sua fiscalização, salvo mediante prévia autorização, por decreto do Presidente da República, idêntica medida de cautela há de ter perante os entes da administração indireta. Em suma, sem a prévia autorização por decreto o ato administrativo ora atacado é nulo de pleno direito”
Administrador é proprietário fiduciário
A circunstância de o administrador ser proprietário fiduciário dos ativos do fundo é particularidade exclusiva dos fundos de investimento imobiliários (FII), que decorre de previsão da lei que estabelece e regulamenta essa modalidade de fundos (Lei 8.668/93, artigo 6º) — a única, aliás, a contar como uma lei própria. Já nas demais modalidades de fundos, todas estabelecidas por normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a propriedade dos ativos pertence ao próprio fundo, o que torna mais simples, em relação a elas, a compreensão da máxima segundo a qual o patrimônio do administrador não se confunde com o do fundo.
Mas mesmo no caso dos FII, a opção por atribuir a propriedade fiduciária dos imóveis à administradora consistiu em mera técnica legislativa para facilitar a exploração e a negociação daqueles ativos. O respectivo produto (isto é, as receitas auferidas com alugueis e com a venda dos imóveis, por exemplo), contudo, reverte não em benefício do administrador, mas dos cotistas. Não à toa, a própria Lei 8.668/93 é expressa, como mencionado, no sentido de que
“[o]s bens e direitos integrantes do patrimônio do Fundo de Investimento Imobiliário, em especial os bens imóveis mantidos sob a propriedade fiduciária da instituição administradora, bem como seus frutos e rendimentos, não se comunicam com o patrimônio desta” (artigo 7º).
Assim, a despeito da aparente complexidade desse regime, não deveria haver maior dificuldade para se concluir que o fato de haver uma instituição pública na administração um fundo de investimento não deveria, por si só, impedir a desapropriação de seus ativos.
Uma outra questão, que foi reputada particularmente relevante pela decisão da 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro, diz respeito ao fato de a CEF ser, além de administradora, a cotista única do fundo — circunstância que, no entender daquele juízo, reforçaria a conclusão de que o imóvel desapropriado lhe pertenceria.
Esse entendimento contrasta com o de decisão proferida em outra ação popular ajuizada para impedir a realização do mesmo leilão, proferida pela 14ª Vara Federal do Rio de Janeiro (Ação Popular nº 5047762-15.2024.4.02.5101), que concluiu que a Justiça Federal seria incompetente, pelo fato de o bem desapropriado não pertencer à CEF, mas a um “fundo que detém personalidade jurídica de direito privado”.
Nesse ponto, a discussão ganha um outro grau de complexidade. É que, como ressaltado pela decisão da 7ª Vara Federal, os fundos de investimento não possuem personalidade jurídica. Seus ativos são detidos, a rigor, pelos cotistas. Segundo a doutrina, inclusive, a referência ao “fundo” como sujeito de direitos e obrigações (presente em afirmações como as de que “o fundo adquiriu um ativo”, “o fundo possui uma dívida” etc.) “traduz mera prosopopeia linguística, adotada para facilitar a designação dos titulares dos direitos e deveres (os cotistas ou o administrador, no caso do fundo imobiliário) por meio da referência ao elemento objetivo comum (o fundo)” (OLIVA, Milena Donato e RENTERIA, Pablo, Notas sobre o regime jurídico dos fundos de investimento, in.: HANSZMANN, Felipe e HERMETO, Lucas, Atualidades em Direito Societário e Mercado de Capitais: Fundo de Investimento, Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. V., 2021).
Ou seja, dizer que, no caso concreto, o terreno pertence ao “fundo” é, na verdade, dizer que ele pertence, na verdade, à CEF. Teria, então, razão a decisão que determinou a suspensão do leilão daquele bem?
A resposta também não parece decorrer meramente desse silogismo.
Com efeito, uma vez que o cotista integraliza cotas de um fundo de investimento — mediante contribuição de recursos ou ativos —, aqueles recursos/ativos se destacam de seu patrimônio geral e passam a integrar o fundo, que é um patrimônio especial detido pelos cotistas (ou uma “comunhão de recursos”, na definição da Lei — Código Civil. artigo 1.368-C).
E essa comunhão, nos termos do mesmo dispositivo, é “destinad[a] à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza” (Código Civil, artigo 1.368-C), sendo que, no caso dos FII, esses ativos são necessariamente “empreendimentos imobiliários” (Lei 8.668/93, artigo 1º).
Por exigência da lei que regula o mercado de capitais (Lei 6.385/76, artigo 23, caput e § 1º), da Lei que disciplina os FII (Lei 8.668/93, artigo 5º) e das normas da CVM — a quem tanto essa lei como o Código Civil (artigo 1.368-C, § 2º) delegam a disciplina jurídica pormenorizada dos fundos de investimento —, a aplicação dos recursos “do fundo” deve ser realizada de forma discricionária por um gestor profissional credenciado pela CVM, visando a atender às finalidades previstas no regulamento do fundo. Assim, ainda que, tecnicamente, os ativos do fundo lhes pertençam, os cotistas não têm o direito de deles dispor.
Fundo assume obrigações para responder por elas
Ao mesmo tempo, embora não lhe atribua personalidade jurídica, a lei reconhece a capacidade de o fundo de investimento assumir obrigações e de responder por elas (Código Civil, artigo 1368-E), naturalmente, com os bens que integram seu patrimônio. Especialmente perante terceiros, então, os fundos de investimento são tratados como se pessoas fossem: quem celebra um contrato com um “fundo” tem assegurado o direito de exigir que o “fundo” cumpra as obrigações que assumiu; e, se no âmbito dessa relação jurídica, o “fundo” causar dano àquele terceiro, o “fundo” responderá, com o seu patrimônio (isto é, com aquele patrimônio especial de titularidade dos cotistas, que se destaca de seu patrimônio geral), pela indenização.
Integralizar recursos ou ativos em um fundo de investimento, portanto, significa abrir mão da disposição sobre aqueles bens e concordar com a sua vinculação à finalidade daquele fundo, às obrigações por ele assumidas e, em última análise, ao regime jurídico a que o fundo de investimento se sujeita.
Assim, apesar da ausência de personalidade jurídica do veículo e do fato de, tecnicamente, a propriedade daqueles recursos/ativos ser dos cotistas, a situação, perante terceiros, é equivalente à de um acionista que integraliza recursos ou ativos em uma sociedade dotada de personalidade: ao contratar com a sociedade, sabe-se que, como regra, independentemente de quem seja o seu sócio, o patrimônio da sociedade servirá de garantia ao cumprimento das obrigações que ela assumir.
No caso, a desvinculação do fundo e do cotista, a despeito da inexistência de personalidade jurídica do veículo, é ainda corroborada pelo fato de que, no entendimento da CVM, a identidade dos cotistas é informação protegida por sigilo. Portanto, quem contrata com um fundo de investimento em princípio sequer sabe quem são os seus cotistas.
Desse modo, olhando a questão sob a ótica exclusivamente do direito dos fundos de investimento — e sem ignorar que o caso pode ser afetado por outras áreas do direito —, parece fazer sentido que o regime aplicável aos bens de determinado fundo não se altere em razão de eventual regime especial que se aplique à pessoa de seus cotistas.
Mas independentemente da resposta para o problema apresentado no caso concreto — a saber se o município poderia desapropriar bem pertencente a fundo cujo cotista seja uma autarquia federal —, a hipótese é mais um exemplo que comprova a necessidade de se fomentar a compreensão geral do regime jurídico dos fundos de investimento, tendo em vista a relevância econômica que esse instituto apresenta. Caso contrário, não só o Flamengo corre risco de ficar sem estádio, como toda uma indústria trilionária pode ser gravemente afetada.
P.S.: Como amplamente noticiado, a liminar foi revogada pelo TRF-2, que apenas tangenciou a matéria tratada neste artigo, mediante a constatação de que “[h]á, aparentemente, uma premissa equivocada na decisão cuja suspensão é requerida pelo Município, no sentido de que o imóvel seria de propriedade da CEF” (Suspensão de Liminar e de Sentença nº 5010603-15.2024.4.02.0000).