Judiciário
Corresponsabilização de executivo e legislativo na atividade financeira do Estado
Independentes e harmônicos entre si. Essa é a determinação pétrea constitucional para os Três Poderes. O Poder Executivo, com vistas à manutenção do cenário harmônico na complexa e dinâmica política brasileira, bem como almejando o exercício mais autônomo da governabilidade, tem recorrido ao uso de mecanismos de coalizão frente ao Poder Legislativo, tais como negociações para aprovações de proposições legislativas com pautas fiscais e orçamentárias. Isto porque o êxito normativo do Executivo depende das interações políticas cotidianas. Sobre presidencialismo de coalizão e as duas casas do Legislativo, Couto, Soares e Livramento (2021, p. 25 apud LIPJHART, 1999) ponderam que:
Nesse ponto, vale destacar que a força do bicameralismo é mensurado através das dimensões de simetria e congruência (LIJPHART, 1999). A simetria verifica o quão parelhas são as competências constitucionais de ambas as casas, enquanto, por sua vez, a congruência, o quão parecidas são as composições partidárias das duas câmaras legislativas. A partir disso, os sistemas bicamerais fortes são aqueles que são concomitantemente simétricos e incongruentes, já que, desse modo, as câmaras têm preferências distintas, ao passo que têm a mesma capacidade de interferir na tramitação dos projetos de lei.
Para Lipjhart (1932), que se debruçou acerca do estudo da dimensão da relação do Poder Executivo com os partidos políticos e os denominados grupos de interesse, o adequado manejo dos mecanismos de coalizão é questão fundamental para a garantia da representação dos interesses que compõem a democracia, viabilizando a estabilidade política. Nas palavras do Autor (1932, p. 17):
Em princípio, existem muitas maneiras pelas quais uma democracia pode organizar-se e funcionar. Na prática, também, as democracias modernas apresentam uma grande variedade de instituições governamentais formais, como legislaturas e tribunais, além de sistemas partidários e grupos de interesse. Entretanto, padrões e regularidades nítidos surgem ao se examinarem essas instituições sob o ângulo da natureza de suas regras e práticas — até que ponto elas são majoritárias ou consensuais. O contraste entre o modelo majoritário e o consensual surge a partir da definição mais básica e literal de democracia: governo pelo povo ou, no caso da democracia representativa, governo pelos representantes do povo — e, também, a partir da famosa frase de Abraham Lincoln, segundo a qual democracia significa governo, não apenas pelo povo, mas também para o povo —, ou seja: governo de acordo com a preferência popular.
As concepções de Lijphart (1932) acerca da relevância das coalizões no contexto da salvaguarda da representatividade e da estabilidade político-institucional são esclarecedoras para compreendermos a relação entre o Executivo e o Legislativo. No arranjo institucional democrático brasileiro, para o devido exercício do governo pelo Poder Executivo, são necessárias amplas coalizões multipartidárias para que suas proposições legislativas sejam aprovadas pelo Congresso. No que tange a atividade financeira do Estado, a coalizão manifestamente exerce influência direta no curso do processo de elaboração e deliberação das normas atinentes ao âmbito das finanças públicas e, portanto, as questões orçamentárias encontram-se diretamente implicadas com a política.
Em pronunciamento nacional feito no final de julho de 2024, ao prestar informações sobre a sua gestão após completar um ano e meio de governo, já sob a vigência do novo arcabouço fiscal (Lei Complementar nº 200/2023), o presidente Lula expressamente afirmou: “não abrirei mão da responsabilidade fiscal”. A manifestação evidencia que questões orçamentárias se encontram intimamente implicadas com a política. A pretensão da Presidência, enquanto líder máxima do governo e do Estado, é não ser a responsável direta pelo descontrole das contas públicas ou permanecer engessada por restrições fiscais que, invariavelmente, impactam diretamente nos processos de formulação, discussão e aprovação das políticas públicas que refletirão as prioridades e estratégias dos atores políticos no Poder.
Coalizão para aprovação de pautas fiscais
A formação de coalizões para que seja garantido o apoio necessário à aprovação de pautas fiscais e orçamentárias, portanto, enseja a corresponsabilidade entre o Poder Executivo e o Legislativo acerca da consecução do arcabouço fiscal. Em que pese, à primeira vista, aparentar ser um salutar trabalho entre dois Poderes, a conjuntura oculta que a dinâmica colaborativa e negocial relacionadas às políticas orçamentárias, em verdade, oferece vantagens substanciais ao presidente da República, que irá compartilhar o ônus da gestão das finanças públicas, reduzindo significativamente a carga de sua responsabilidade pelo (des)controle das contas públicas em possível não cumprimento às normas financeiras.
Sobre o suscitado fenômeno, evidenciando os infortúnios da relação direta das questões orçamentárias com a política, Dallari (2011, p. 24 apud HARADA, 2001, p. 72) pontua que
É forçoso reconhecer que, na prática, no momento da execução orçamentária, ainda prevalecem os antigos costumes, sobre a disciplina constitucionalmente estabelecida, conforme esta vigorosa e respeitável observação doutrinária, comparando a teoria com a realidade dos fatos:
“No Estado moderno, não mais existe lugar para orçamento público que não leve em conta os interesses da sociedade. Daí por que o orçamento sempre reflete um plano de ação governamental. Daí, também, seu caráter de instrumento representativo da vontade popular; o que justifica a crescente atuação legislativa no campo orçamentário.” “Por oportuno, cumpre lembrar que, lamentavelmente, entre nós, o orçamento, longe de espelhar um plano de ação governamental, referendado pela sociedade, tende mais para o campo da ficção. Tanto é assim que a União já ficou duas vezes sem orçamento aprovado, como resultado de divergências entre o Parlamento e o Executivo em torno de algumas das prioridades nacionais, sem que isso tivesse afetado a rotina governamental.” “Vige entre nós a cultura de desprezo ao orçamento, apesar de, ironicamente, existir uma parafernália de regras e normas, algumas delas de natureza penal, objetivando a fiel execução orçamentária.” KYOSHI HARADA, Direito Financeiro Tributário, 8ª. edição, Atlas, 2001, p. 72
(…) Na prática, por meio de medidas provisórias, o Executivo desrespeita o orçamento sem qualquer reserva, preocupação ou cuidado, adotando atitudes aleatórias e empíricas ao sabor dos ventos da política. (…) Paralelamente, projetos e programas efetivamente previstos, e devidamente contemplados com os recursos correspondentes, não são executados ou são implantados apenas parcialmente, sem atingir as metas objetivadas. (…) O propósito deste estudo é exatamente demonstrar que esse comportamento, consistente, no fundo, em descumprir o orçamento, não mais pode ser aceito. Ou seja: o orçamento programa, que é elaborado em função de objetivos e metas a serem atingidas, de projetos e programas a serem executados, dos quais as dotações são a mera representação numérica, não mais pode ser havido como meramente autorizativo, tendo, sim, por determinação constitucional, um caráter impositivo.
Atividade financeira do Estado
Conferir caráter às normas que dispõem acerca da atividade financeira do Estado é questão que se encontra relacionada em qual espécie legislativa elas estarão expostas. Incumbe à Presidência da República a gestão financeira de seu governo, razão pela qual exerce liderança no Ministério da Economia, órgão do Poder Executivo cuja incumbência principal é a implementação das políticas econômicas adotadas pelo governo. Em síntese, o Executivo exerce a direção primordial sobre a maioria das instituições que compõem a administração pública, englobando aquelas incumbidas da obtenção de recursos públicos, elaboração e implementação dos projetos financeiros.
A interação com o Poder Legislativo acerca de pautas que regem a atividade financeira do Estado permite que o chefe do Poder Executivo não esteja mais, isoladamente, sujeito às penalidades atribuídas ao descumprimento do arcabouço fiscal, isentando e conferindo maior autonomia para o presidente, que tão somente assume a função de indicador do tema para o Congresso Nacional. Examinando a relação de forças políticas na apresentação e tramitação do novo arcabouço fiscal, Bastos (2023, p.18) analisa o cenário normativo atual, evidenciando como as deliberações acerca de questões de orçamento estão interligadas com a esfera política, in verbis
Concluída a disputa pelo sentido conferido ao orçamento público e sua forma de gestão, e vitoriosa a narrativa neoliberal repetida à exaustão como discurso hegemônico na mídia tradicional e propalada por Haddad, Tebet e Campos Neto, era previsível que o Congresso Nacional tornaria o arcabouço fiscal mais restritivo ainda. Desde que, é claro, restrições orçamentárias não prejudiquem as emendas parlamentares impositivas que canalizam recursos para bases regionais e municipais de deputados e senadores em prejuízo das prioridades de investimento federal e gasto social universalizante do Poder Executivo. A propósito, o Ministério da Fazenda determinou celeridade na votação do arcabouço fiscal muito antes do limite de 31 de agosto e antes que ajustes na composição ministerial e na distribuição de emendas e cargos para parlamentares assegurassem uma maioria mais estável para projetos legislativos do governo.
Sob essa ótica, elucidam-se às razões da instabilidade e morosidade na apropriada execução das normas fiscais, que ficarão submetidas às agendas políticas. O ciclo é sem fim, no início de cada novo mandato o governante, maior responsável pelo cumprimento do orçamento e observações às normas fiscais, torna-se figura secundária após apresentar proposição legislativa perante o Poder Legislativo que assumirá a corresponsabilidade normativa pela devida gerência das finanças públicas. Ocorre que “no âmbito das finanças públicas, a distribuição das atribuições em matéria de processo legislativo mostra-se mais sensível, dado o grande poder envolvido na iniciativa legislativa em matéria financeira” (CONTI, 2013).
Por certo, desde a promulgação da Lei Maior em 1988, em todas as legislaturas, reiteradas emendas constitucionais foram propostas e aprovadas, fixando regras inéditas sobre o orçamento, receita, despesa e crédito público. Assim sendo, em termos de matéria fiscal, vislumbra-se uma interessante e contínua relação de compartilhamento de responsabilidade entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo. O descontrole e a adequada gerência das finanças públicas constituem a maior e central vulnerabilidade de qualquer governo, razão pela qual pavimenta-se, dia após dia, governo após governo, com a apresentação de instrumentos normativos, o caminho para a melhoria do cenário nacional de déficits fiscais. O manejo de proposições legislativas voltadas para o controle fiscal está intrinsecamente ligado aos interesses políticos que buscam moldar as medidas tributárias de acordo com suas visões ideológicas e agendas, alinhando-as com seus eleitorados e objetivos de curto e longo prazo.
Há, portanto, necessidade de revitalizar e fortalecer o sistema financeiro e econômico do país. As teias entrelaçadas entre a construção normativa, a atuação dos atores políticos e o escopo de fortalecimento econômico delineiam um panorama que exige cautelosa reflexão e ações assertivas para conduzir a organização dos cofres públicos.
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- Isis Mayra Mascarenhas Guimarães Ferreiraé advogada, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP/Brasília), pós-graduada em Direito Público pelo IMP/Faculdade Unyleya, e em Direito Civil e Processo Civil pela Escola da Magistratura do Distrito Federal e graduada em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).