Judiciário
Buscas e apreensões no Congresso expõem lacunas no foro privilegiado
O que o Plenário do STF já decidiu foi que juízo de primeiro grau não tem competência para determinar operação da Polícia Federal que investigue atos de policiais do Senado cometidos por ordem de senadores. Na ocasião, os policiais legislativos chegaram a ser presos.
Duas decisões tomadas por ministros do Supremo nesta quarta-feira (29/7) aparentemente deixam uma questão aberta: quando a prerrogativa de foro não se aplica a determinado parlamentar, de quem é a competência para determinar eventual busca e apreensão em seu gabinete funcional no Congresso? Do STF ou de outro juízo?
Isso porque a Corte Constitucional brasileira fixou em 2018 a tese de que o foro por prerrogativa de função só se aplica a fatos relacionados ao exercício do mandato representativo. Assim, sem o foro especial, poderia outro juízo, que não o STF, autorizar buscas dentro do Parlamento?
Decisão do presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, sugere que não. Plantonista durante o recesso de julho, ele despachou em caso atribuído ao ministro Gilmar Mendes e concedeu liminar em reclamação ajuizada pelo senador José Serra (PSDB-SP), alvo de busca e apreensão determinada pelo juízo da 1ª Zona Eleitoral de São Paulo.
Segundo seu entendimento, a busca e apreensão — que não chegou a ocorrer porque o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, impediu a entrada dos policiais federais para cumprir a ordem — eleva o risco potencial de apreensão de documentos e informações relacionadas ao desempenho da atividade parlamentar. “Indevida intromissão da autoridade reclamada, pelo menos nesse primeiro exame, na competência do Supremo Tribunal Federal para analisar a medida”, concluiu.
A decisão de Toffoli considerou especificidades do caso concreto: “a extrema amplitude da ordem de busca e apreensão” impossibilita “a delimitação de documentos e objetos que seriam diretamente ligados ao desempenho da atividade típica do atual mandato do Senador da República”.
Assim, por haver risco de que fossem apreendidos materiais relacionados à atividade parlamentar do senador, o ministro decidiu por suspender toda a investigação. A decisão não torna expressa a afirmação de que o STF tem competência para determinar, sempre, busca e apreensão em gabinete de congressistas. Na prática, de todo modo, a determinação da diligência por outro juízo, nesse caso, não foi autorizada.
Segunda decisão
Para o ministro Marco Aurélio, a resposta é sim — outro juízo, que não o STF, pode determinar busca e apreensão em gabinetes no Parlamento. O vice-decano, que combinou com a presidência de continuar despachando durante o recesso, negou seguimento à reclamação impetrada pela Câmara em favor do deputado federal Paulinho da Força (Solidariedade-SP), que teve documentos apreendidos em seu gabinete no Congresso em 14 de julho, a mando da mesma 1ª Zona Eleitoral de São Paulo.
Para ele, considerado o princípio do juiz natural, ou existe a competência para atuar no processo, praticando atos que entender cabíveis, ou não há. O local onde será realizada a diligência não serve para atrair atuação do Supremo Tribunal Federal. No entanto, a decisão de Marco Aurélio, ao contrário da de Toffoli, não considera eventuais especificidades do caso concreto. Ela se ampara sobretudo em elementos abstratos.
Constitucionalistas consultados pela ConJur se dividiram ao analisar o tema.
O que é foro privilegiado?
Ambos os casos tramitam no juízo de primeiro grau porque foi aplicada a diferenciação feita pelo STF em maio de 2018: parlamentar só tem foro especial em fato ocorrido em função do mandato. Tanto Serra quanto Paulinho da Força são investigados por suspeita de uso de caixa dois para financiar campanhas eleitorais.
Para o jurista e professor de Direito Constitucional Lenio Streck, a decisão tomada pelo ministro Dias Toffoli foi a mais acertada. Ele se filia ao entendimento de que houve usurpação da competência ao determinar busca e apreensão que pode, potencialmente, abarcar documentos e, logo, assuntos diretamente ligados à atividade parlamentar.
“O juiz usurpou da competência. Não parece razoável pensar que um juiz possa mandar fazer busca e apreensão no prédio do STJ ou STF. Se não pode isso, por que poderia mandar fazer busca no Parlamento?”, exemplificou.
Para a advogada constitucionalista Vera Chemim, no entanto, a competência para quaisquer providências necessárias para o andamento das investigações, inclusive a expedição de medidas cautelares, deve ser do juízo de primeiro grau. Entender diferentemente contraria o próprio entendimento do Plenário do STF.
“O argumento de que ainda persistem lacunas sobre a restrição do foro privilegiado não faz sentido, uma vez que o agente político só teria direito ao foro desde que os atos ilícitos tivessem sido cometidos durante o atual mandato e relacionados ao exercício das suas funções”, destacou.
Para o constitucionalista Daniel Sarmento, “são orientações diferentes, em um tema que envolve certa complexidade”. “É fundamental que o Plenário assente orientação definitiva na matéria, em prol da segurança jurídica, para evitar a loteria judiciária”, disse.
Segurança jurídica?
Para Lenio Streck, as duas decisões — de Marco Aurélio e Toffoli —, tomadas no mesmo dia, não constituem ameaça à segurança jurídica no que diz respeito a cautelares tomadas contra parlamentares. “Não há impacto. Isso terá de ser definido, em definitivo, pelo colegiado do STF”, apontou.
Vera Chemim apontou que essas questões precisam ser claramente fechadas com bastante previsão, enquanto os precedentes existentes são monocráticos. Para ela, as decisões potencialmente conflitantes geram, de maneira inevitável, insegurança jurídica.
“O fato é que, diante de tantas demandas remetidas ao STF, não se pode descartar a possibilidade de uma sutil politização de suas decisões, especialmente as decisões monocráticas”, destacou.
Precedentes?
A decisão do ministro Toffoli cita como precedente outra monocrática, de 2019, na Reclamação 36.571, do ministro Alexandre de Moraes. Na ocasião, a 7ª Vara Criminal de Cuiabá (MT) decretou a busca e apreensão na casa da deputada federal professora Rosa Neide, no bojo de inquérito policial instaurado para investigar a suposta prática de crimes ocorridos à época em que era secretária Estadual de Educação.
Para o ministro Alexandre, se o local da cautelar é a casa ou o gabinete, “admite-se que possa ter ocorrido desrespeito às prerrogativas parlamentares, à cláusula de reserva jurisdicional e ao princípio do juiz natural, que exigiam, desde logo, decisão do órgão jurisdicional constitucionalmente competente: Supremo Tribunal Federal”.
Já o ministro Marco Aurélio citou pronunciamento recente de outra deputada federal que também foi alvo de busca e apreensão em seu gabinete: Rejane Dias (PT-PI). No caso dela, que é investigada por desvio de verbas para educação, a 3ª Vara Federal do Piauí peticionou ao STF sobre a necessidade de autorização. A ministra Rosa Weber não conheceu do pedido, remetendo os autos de volta ao juízo de piso para que decidisse conforme sua convicção.
“Em resumo, medidas cautelares penais visando às dependências das Casas Legislativas terão de ser submetidas ao crivo da Suprema Corte apenas quando tenham como alvo parlamentares federais cujos atos se amoldem aos critérios definidos por ocasião do julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal 937”, apontou a ministra, no trecho citado pelo vice-decano.
O que o Plenário do STF já decidiu foi que juízo de primeiro grau não tem competência para determinar operação da Polícia Federal que investigue atos de policiais do Senado cometidos por ordem de senadores. Na ocasião, os policiais legislativos chegaram a ser presos.
Prevaleceu o voto do ministro Luiz Edson Fachin. Concordou com ele na ocasião o ministro Alexandre de Moraes, que deixou claro: “O juiz de primeira instância que autoriza mandado de busca e apreensão no Congresso, no Senado, na Câmara, em imóveis funcionais, sabe que sua medida será também invasiva da intimidade, da vida privada, dos parlamentares”.
Ficaram vencidos os ministros Marco Aurélio e o decano da corte, ministro Celso de Mello, que, ao votar, destacou a preocupação de que “se construam santuários de proteção de criminosos comuns com relação a certos espaços institucionais reservados a determinadas autoridades com prerrogativa de foro”.
Rcl 42.446
Rcl 42.389
AGr na Rcl 26.745
AC 4.297
Rcl 25.537
AP 937