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Judiciário

Habitação de interesse social e de mercado popular e o limbo jurídico do comprador (des)avisado

Como assegurar que as unidades habitacionais de interesse social (HIS) e de mercado popular (HMP) sejam destinadas às famílias de baixa renda?

Resumo:

  • O direito à moradia é assegurado pela Constituição Federal Brasileira, sendo competência da União, estados e municípios promover programas habitacionais.
  • A Habitação de Interesse Social (HIS) visa reduzir o déficit habitacional, atendendo famílias de baixa renda, enquanto a Habitação de Mercado Popular (HMP) é destinada a famílias com renda um pouco mais elevada.
  • A falta de fiscalização municipal pode levar à destinação inadequada das unidades habitacionais, sendo necessário que o registrador imobiliário verifique o correto enquadramento dos beneficiários.

Plenamente assegurado pela Constituição Federal Brasileira, o direito à moradia é uma competência comum da União, dos estados e dos municípios. A todos estes entes, conforme aponta o texto constitucional, compete “promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”.

O direito à moradia foi positivado no artigo 6º da Carta Magna com a Emenda Constitucional n° 26/2000, que incluiu a moradia no rol dos direitos sociais dos cidadãos, representando assim um grande marco para o efetivo cumprimento por parte dos governos.

A moradia e o direito a ela representam desafios recorrentes na maioria das grandes cidades do mundo, especialmente nas metrópoles mais populosas. Ulteriormente, as questões que rodeiam o instituto da habitação social têm ganhado destaque, impulsionado por iniciativas governamentais de regulação da atividade construtiva.

Especialmente em São Paulo, Capital, o Plano Diretor Estratégico prevê um papel fundamental da iniciativa privada a fim de contribuir com a política de Habitação de Interesse Social (HIS) e Habitação de Mercado Popular (HMP).

Ao leitor, necessário, portanto, diferenciar os modelos dos programas de habitação social.

A Habitação de Interesse Social (HIS) tem o escopo a implementação de medidas que visem a redução do déficit habitacional. Com isso, a HIS se desenvolve para o atendimento habitacional das famílias de baixa renda e pode ser implementada pelo setor público e pelo setor privado. As unidades habitacionais HIS são construídas e planejadas para atender o padrão mínimo de dignidade social, contando com sanitário e vaga de garagem.

Dentro da modalidade de Habitação de Interesse Social, existem duas outras classificações, a depender da renda dos beneficiários, quais sejam: a HIS-1, destinada a famílias com renda familiar mensal média de até 3 salários mínimos; e a HIS-2, destinada a famílias com renda familiar mensal média de até 6 salários mínimos.

A Habitação de Mercado Popular (HMP) se reserva a famílias com renda mensal entre 6 e 10 salários mínimos, e da mesma forma, pode ser promovida tanto pelo setor público quanto pelo setor privado. No caso de HMP, as unidades são mais elaboradas.

A fim de incentivar esse interesse do setor privado à construção de moradias sociais, as municipalidades concedem benefícios fiscais e urbanísticos, que variam de acordo com a legislação de cada ente concedente. Em São Paulo, Capital, os incentivos concedidos às construtoras permeiam a isenção do pagamento de outorga onerosa do direito de construir, além da permissão de majoração do potencial construtivo, podendo alcançar o sêxtuplo da área a ser incorporada.

Os inventivos e benefícios concedidos condicionam a construção a um custo de empreitada bastante inferior, trazendo maior rentabilidade ao incorporador, nem sempre alcançando o objetivo da norma que é a de aumentar a oferta de moradias a preços condizentes aos destinatários deste programa social.

Ocorre que a falta de fiscalização da municipalidade, levou o setor privado a alienar essas unidades a qualquer pessoa ou empresa se a devida verificação do enquadramento das famílias elegíveis à destinação das unidades imobiliárias de HIS 1, HIS 2 e HMP, desvirtuando completamente o propósito legal que é o de atingir a camada social dos compreendidos nas faixas salariais familiares já citadas neste artigo. Muitas unidades acabaram nas mãos de investidores, alimentado o mercado sem o atendimento às regras de destinação que se prestava a construção.

No estado de São Paulo, os incentivos, além dos mencionados, acabam por ter reflexos nos custos do registro da incorporação e especificação de condomínio, os quais sofrem abastada redução prevista no item 14 e subitens da tabela de emolumentos instituída pela lei estadual 11.331/02. Também estão sujeitas às reduções as escrituras imobiliárias lavradas nos moldes dos itens 1.3 e 1.4 da tabela destinada às despesas notariais.

A municipalidade paulistana, na revisão do Plano Diretor Estratégico, em 2023, com a edição do Decreto Municipal nº 63.130 de 19 de janeiro de 2024, bem como com a publicação da Portaria da Secretaria de Habitação nº 61 de 22 de maio de 2024, intentou regular a participação da iniciativa privada na promoção da Habitação de Interesse Social – HIS, permitindo a aquisição dessas unidades habitacionais por parte de investidores e fundos, com a possibilidade de locação das mesmas à pessoas que se enquadrem nas faixas de renda informadas. Além disso, o prazo de afetação dessas unidades ao programa social é de apenas 10 (dez) anos contados da expedição do certificado de conclusão da obra.

Como anteriormente mencionado, há uma nítida falta de fiscalização por parte do Poder Público municipal, o que resulta na destinação desvirtuada das unidades habitacionais e em um imbróglio jurídico junto ao registro imobiliário. Os notários e registradores imobiliários, como agentes públicos, têm a responsabilidade de assegurar a segurança preventiva dos negócios jurídicos e de fiscalizar a correta aplicação da lei.

Um dos livros obrigatórios do registro de imóveis é o Livro 5 (cinco) de Indicador Pessoal, que se destina ao repositório dos nomes de todas as pessoas que, individual ou coletivamente, ativa ou passivamente, direta ou indiretamente, figurarem nos demais livros. Em suas folhas, deve ser anotada a referência aos números de ordem daqueles registros. Esse livro permite a busca dos registros pelo nome da pessoa.

Por meio do sistema SAEC – Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado, mantido pelo Operador Nacional do Registro (ONR), o registrador consegue verificar se determinado adquirente é aparente usufruidor dos benefícios estabelecidos pelo sistema de Habitação de Interesse Social (HIS) e de Habitação de Mercado Popular (HMP).

Quando o título ingressa no procedimento de qualificação registral, o registrador verifica os elementos intrínsecos do negócio. Com independência técnica, ele pode formular exigências para assegurar o efetivo ingresso da propriedade no fólio real.

Segundo Amadei (1993, p.22/55, apud Zanetta, 2024, Proc. 1061807):

“Considerar o aspecto instrumental do registro imobiliário, importa reconhecer, nele, (a) o poder que atribui a quem o tem (instrumento/poder) e investigar (b.i) a função que exerce na ordem jurídica da sociedade e (b.2) o fim a que se destina (instrumento/meio).

Assim, no primeiro enfoque (registro como instrumento/poder), forçoso verificar, em cada sistema jurídico, quais os efeitos decorrentes do registro imobiliário, pois é na proporção da classificação e extensão desses efeitos que a inscrição representará o grau de poder conferido ao titular do direito real.(…)

Qualificação registrária, inscrição e publicidade são decorrências diretas e específicas da atuação da instituição registral imobiliária, de sua dinâmica procedimental, ao passo que a segurança jurídica (estática e dinâmica) é a razão dessa instituição, que se obtém pelos efeitos da qualificação, da inscrição e da publicidade. (…)

Fixadas as considerações gerais da instrumentalidade do registro imobiliário, importa então, no momento, especificar no que consiste o aspecto instrumental do registro imobiliário no controle urbanístico da propriedade.

Neste ponto, preliminarmente, cumpre relembrar que o eixo do registro predial é a propriedade imobiliária. É, pois, em torno da propriedade imobiliária que gravitam todos os atos registrários praticados pelo Oficial Registrador no fólio real.

Assim, entende-se a razão pela qual a funcionalidade registrária da publicidade imobiliária era associada à “preservação dos interesses privados” e, hoje, sustenta-se que está associada, “formalmente”, à preservação de “determinados interesses da comunidade“.

(grifei)

No que tange aos empreendimentos de Habitação de Interesse Social (HIS) e Habitação de Mercado Popular (HMP), tem-se observado que, após o advento do Decreto Municipal de 19 de janeiro de 2024, passou-se a exigir que o título de aquisição seja acompanhado de uma certidão expedida por entidade supervisionada pelo BACEN (Banco Central do Brasil), atestando o enquadramento da renda familiar do adquirente nos parâmetros estabelecidos no artigo 46 da Lei nº 16.050/2014, conforme disposto no artigo 5º, §1º, do Decreto Municipal nº 63.130/2024. Essa certidão deverá ser emitida de acordo com as disposições contidas no Anexo II da Portaria nº 61 – SEHAB, de 22 de maio de 2024.

O fato é que a Portaria da Secretaria de Habitação estabelece a seguinte regra:

Art. 4º A certidão exigida nos termos do art. 5º, caput do Decreto n° 63.130 de 19 de janeiro de 2024 será emitida por entidade supervisionada pelo BACEN, sendo que, quando for expedida por correspondente bancário ou instituição que atue com crédito imobiliário, deverá ser expedida por profissional detentor da certificação CA-600 ou outra certificação que ateste conhecimento operacional necessário para atendimento a política pública, acompanhada da respectiva comprovação da certificação.

Estariam aptos à emissão da certidão de enquadramento os profissionais bancários com a certificação CA-600. Quando a aquisição do bem ocorre por meio de financiamento bancário, a emissão da certidão torna-se justificável, uma vez que o processo de financiamento imobiliário revela todas as condições financeiras dos proponentes adquirentes.

O problema surge quando a aquisição é realizada sem a intervenção de um agente bancário, ou seja, por meio de escritura pública firmada diretamente entre a construtora e o comprador. Nesse caso, como emitir a referida certidão de enquadramento ainda é algo que não se sabe ao certo. Observa-se que, conforme relatado, muitas vezes o adquirente não se enquadra nos preceitos do programa social, e, ainda assim, a venda é firmada.

Nessa situação, o imóvel permanece sob a titularidade da construtora, enquanto o adquirente fica sem título de propriedade. Isso dá origem a litígios que, frequentemente, só são resolvidos no âmbito judicial, com a devolução dos valores pagos à vendedora, acrescidos de acessórios, como perdas e danos. No entanto, tais perdas e danos nem sempre são verificáveis, especialmente se for demonstrada a ciência do comprador quanto à afetação do bem ao programa social.

Uma solução, embora não muito clara aos adquirentes desavisados, seria a destinação da unidade adquirida à locação social. Trata-se de uma situação obscura, pois o eventual adquirente continua não se enquadrando no rol dos requisitos do benefício. Contudo, há uma lacuna legal prevista no Decreto nº 63.130, de 19 de janeiro de 2024:

Art. 7º Os benefícios pertinentes ao regime jurídico previsto neste decreto poderão ser também utilizados por empreendimentos destinados, total ou parcialmente, para locação das unidades habitacionais de HIS 1, HIS 2 e HMP, observadas as seguintes regras:

I – as unidades destinadas para esta finalidade deverão indicar tal condição mediante averbação na matrícula, em adição à averbação prevista no art. 4º deste decreto;

II – a celebração do contrato de locação também é condicionada à apresentação da certidão que ateste o enquadramento das famílias destinatárias finais na respectiva faixa de renda estabelecida, nos termos do artigo 5º deste decreto;

III – a alienação das unidades destinadas à locação social será permitida, observando-se o regramento previsto neste decreto.

(grifei)

O regramento municipal não esclarece, ou ao menos é omisso – talvez de forma proposital – quanto à possibilidade de que as unidades habitacionais classificadas como HIS-1, HIS-2 ou HMP sejam alienadas a pessoas que não sejam beneficiárias do Programa Social, desde que estas se habilitem a destiná-las à locação social, pelo período de 10 (dez) anos, mediante averbação concomitante ao registro da aquisição.

Como mencionado anteriormente, a legislação mais uma vez se apresenta inerte diante de tais dúvidas, mantendo-se, ainda, associada à ausência de fiscalização no momento da alienação dessas unidades habitacionais.

A princípio, parece possível, com fundamento no que dispõe a Medida Provisória nº 1.162/2023 – cujo objetivo foi retomar o Programa Minha Casa Minha Vida, facilitando o acesso à moradia para famílias de baixa renda –, que esse cenário seja interpretado de maneira mais flexível. Essa medida provisória foi convertida na Lei Federal nº 14.620/2023, cujo artigo 4º prevê:

Art. 4º Os objetivos do Programa serão alcançados por meio de linhas de atendimento que considerem as necessidades habitacionais, tais como:

(…) IV – fomento à criação de mercados de locação social de imóveis em áreas urbanas; (…)

(grifei)

A legislação exige a declaração de enquadramento do locatário, entretanto, não do locador. Assim, a afetação do imóvel ao regime de locação social deve ser realizada pelo registrador imobiliário, por meio de averbação na matrícula. Além disso, essa circunstância de aquisição para destinação à locação social deve constar expressamente no título aquisitivo.

O próprio Decreto Municipal prevê sanções para os (des)avisados, embora ainda careça de regulamentação clara:

Art. 8º A inobservância ao exposto neste decreto acarretará:

I – ao promotor do empreendimento, o dever de pagamento integral do potencial construtivo adicional utilizado, tributos, custas e demais encargos referentes à sua implantação, além de multa equivalente ao dobro deste valor financeiro apurado, devidamente corrigido, sem prejuízo das sanções previstas na Lei nº 16.642, de 9 de maio de 2017 – Código de Obras e Edificações;

II – a terceiros adquirentes a partir da segunda alienação dos imóveis de HIS 1, HIS 2 e HMP, cobrança dos valores indicados no item anterior, calculados de forma proporcional à fração ideal do imóvel adquirido, estando autorizado o Poder Público a adotar as medidas processuais análogas às previstas nos incisos I e II do artigo 107 da Lei nº 16.050, de 2014 – PDE.

A 1ª Vara de Registros Públicos da Capital-SP manifestou-se no Processo de Dúvida nº 1061807-58.2024.8.26.0100, que tratava de um caso análogo, nos seguintes termos:

Conforme se extrai dos dispositivos acima transcritos, a produção privada de unidades de HIS 1, HIS 2 e HMP utilizando benefícios urbanísticos e fiscais previstos no Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo caracteriza adesão a regime jurídico próprio, qualificado, simultaneamente, pela fruição dos benefícios fiscais e urbanísticos pertinentes e pela destinação, de forma permanente e cogente durante dez anos, das unidades habitacionais a famílias que atendam aos limites de renda nela estabelecidos.

É importante observar que a averbação na matrícula de cada unidade habitacional confere publicidade da situação jurídica que recai sobre o imóvel afetado ao regime jurídico próprio que restringe sua destinação a famílias com o perfil de renda declarado no licenciamento do empreendimento.

Assim, uma vez efetivada a averbação na matrícula, na forma do art. 47, § 1º, I, da Lei n. 16.050/14, promove-se integração entre o instrumento de provisão habitacional de interesse social para a população de baixa renda com o registro imobiliário, para ampla publicidade da situação jurídica do imóvel urbano vinculado, em prol da segurança jurídica no tráfico imobiliário.

(grifei)

Sinteticamente, no sistema registral brasileiro, vigora o princípio da legalidade estrita, que admite o ingresso de títulos que atendam rigorosamente aos ditames legais. Parece-nos que, embora controvertido, o instituto de fomento à locação social cumpre a legalidade, mesmo em face de um regramento normativo insuficiente, possibilitando o ingresso dos títulos no fólio real.

Assim como o Decreto Municipal prevê sanções ao incorporador que, ao alienar unidades habitacionais a não beneficiários do Programa, indiretamente desafeta essas unidades de sua destinação original, também se ressalva ao Registrador Imobiliário o direito de cobrar da instituidora condominial a diferença emolumentar decorrente da desafetação das unidades, quando em desrespeito aos preceitos legais do Programa Social.

Thomas Hobbes, em sua obra “O Leviatã”, há muito ensinava que o mundo jamais seria capaz de satisfazer as necessidades do homem, dado o egoísmo humano e a constante competição entre indivíduos – uma verdadeira guerra de todos contra todos, em que cada homem busca apenas aquilo que lhe traz benefício particular, sem se preocupar com o bem comum.

Sobre o autor

Douglas Gavazzi

Advogado especializado em consultoria para Cartórios, atuou por 30 anos em cartórios pelo estado de São Paulo. Especialista em Direito Notarial e Registral, autor de livros e artigos na área cartorial.

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