Educação & Cultura
Celular nas escolas: transforme a restrição em oportunidade pedagógica
Entenda como a nova lei impacta o dia a dia escolar e veja dicas para reforçar as interações presenciais e as atividades offline
No último dia 13 de janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 15.100/2025, que estabelece restrições ao uso de celulares e dispositivos eletrônicos em todas as etapas da Educação Básica, nas escolas públicas e privadas do país. Pelas novas regras, os alunos podem levar os aparelhos para a escola, mas seu uso deve ser limitado a fins pedagógicos, didáticos ou de inclusão, sempre sob orientação dos professores, ou em emergências. Não é permitido utilizar os celulares durante o recreio ou nos intervalos entre as aulas.
A medida tem o objetivo de melhorar a convivência social e incentivar o uso da tecnologia de forma responsável e com intencionalidade pedagógica no ambiente escolar. Além disso, visa proteger a saúde mental, física e psíquica de crianças e adolescentes.
A decisão também foi fundamentada em dados preocupantes. Segundo a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2024, do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (cetic.br), 76% da população brasileira de 9 a 17 anos é usuária de redes sociais e mais de 50% acessa plataformas de mensagens e de compartilhamento de vídeos e fotos “várias vezes ao dia, todos os dias ou quase todos os dias”. E, de acordo com o relatório do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) 2022, 80% dos estudantes já relataram dificuldades de concentração em sala de aula devido ao uso do celular.
Verônica Gomes dos Santos, professora doutora em Ensino de Ciências e Matemática e coordenadora da área de Implementação do Escolas Criativas, acredita que a nova lei tem o potencial de gerar benefícios significativos para o aprendizado dos estudantes. Ela destaca que o aumento da concentração em sala de aula sem os celulares pode contribuir para uma maior participação dos alunos e, consequentemente, para a melhoria no desempenho escolar.
No entanto, a docente alerta que “não é um movimento automático, em que sai o celular e entram as atividades com a mesma relevância”. Para que os impactos sejam positivos e reflitam diretamente na aprendizagem dos alunos, “é necessário que a escola seja atraente o suficiente para engajar e despertar nos estudantes o interesse e o prazer em aprender”.
A lei ainda passará por regulamentação, mas as regras já começam a valer neste ano letivo. O Ministério da Educação (MEC) preparou uma campanha nacional voltada a gestores escolares, professores, famílias e estudantes. A ideia é apoiar as escolas na criação de estratégias para adaptar suas rotinas à nova medida, fortalecendo o aprendizado e as interações presenciais entre alunos e docentes.
Campanha do MEC sobre a lei do uso do celular nas escola
Campanha do MEC sobre a lei do uso do celular nas escola
Janeiro
Engajamento de gestores e professores
- webinário sobre impactos do celular nas escolas
- guias práticos para redes e escolas (acesse aqui)
Fevereiro
Foco nas famílias
- webinário para pais, mães e responsáveis
- planos de aula e recomendações de oficinas
- orientações para reuniões entre escolas e famílias
Março
Envolvimento dos estudantes
- oficinas pedagógicas e atividades educativas
- apoio a grêmios escolares para promover campanhas
Desafios e estratégias para colocar a lei em prática
A nova lei é vista como um grande avanço, mas sua implementação exigirá um esforço significativo das redes e escolas, que terão autonomia para estabelecer suas regras e dinâmicas. “Os gestores escolares terão múltiplos desafios pela frente: convencer os alunos e suas famílias da necessidade da medida; desenvolver protocolos para a entrega e devolução dos celulares; garantir a segurança; além de muitas outras questões que surgirão a depender do tipo, espaço, recursos e localização das escolas”, prevê Angela Uchoa de Abreu Branco, professora emérita no Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento Escolar da Universidade de Brasília (UnB).
Segundo ela, a medida exigirá uma abordagem estratégica, equilibrando diálogo, planejamento e ações práticas que respeitem as especificidades de cada instituição. Um dos grandes desafios será a resistência dos estudantes a não usar o celular. Nas redes sociais, já circulam dezenas de vídeos de adolescentes ensinando como esconder o aparelho na roupa e na mochila, mostrando que a aplicação da lei exigirá criatividade e diálogo por parte das escolas.
Para Rosiane Figueredo Prates, professora de Matemática da rede pública de Pinheiros e supervisora pedagógica da rede pública de Nova Venécia, ambas no Espírito Santo (ES), essa resistência pode ser minimizada se os alunos compreenderem os benefícios dessa mudança. Para isso, é preciso muito diálogo entre a escola e as turmas. “Esse aluno precisa entender o porquê dessa limitação e que ela não é uma punição. É fundamental que ele perceba que o uso excessivo do celular é prejudicial para ele, para a rotina escolar e até para as relações familiares.”
Verônica considera que será importante abrir canais de escuta para que os estudantes possam se expressar e participar da construção das estratégias que irão apoiar a implementação da lei no seu território escolar. “Isso pode ser um caminho de menos embate e mais co-construção.”
Apoio das famílias pode fazer a diferença
Outro ponto fundamental será envolver e engajar as famílias em campanhas de esclarecimento e conscientização, criando um canal aberto para garantir que a lei seja compreendida e apoiada em casa.
“Se a família não entender a importância da lei, dificilmente ela será um apoio. Por isso, é importante que a escola faça ações educativas para envolver e acolher a comunidade como um todo”, alerta Verônica. Ela indica criar ações como plenárias, conversas com especialistas, compartilhamento de materiais explicativos e espaços para expressão.
Outra estratégia é compartilhar com os familiares pesquisas, estudos e experiências internacionais de escolas que restringiram o uso de celulares. Segundo o Relatório de Monitoramento Global da Educação (2023), da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), um a cada quatro países do mundo já proíbe o uso desses aparelhos no ambiente escolar. Entre eles estão Finlândia, Suíça, França, Espanha e Grécia.
João Paulo Falcão, professor de Matemática na rede pública e privada de Viçosa (AL), pós-graduado em Psicopedagogia Institucional e criador do projeto Robótica Sucational, sugere uma abordagem que inclua o apoio dos próprios familiares em campanhas. A escola poderia convidar pais e mães a gravarem vídeos, com seus testemunhos sobre a mudança de hábito no uso do celular com seus filhos. E depois divulgá-lo para toda a comunidade escolar em diversos canais da instituição, como site, redes sociais e até rádio comunitária (se houver). “Seria uma forma de sensibilizar outros responsáveis sobre a importância dessa mudança”, salienta.
Como armazenar os celulares na escola?
Confira dicas dos educadores entrevistados nesta reportagem
Uma das principais dificuldades das escolas será encontrar formas seguras e práticas de armazenar os celulares dos estudantes, considerando recursos disponíveis, segurança e comunicação com as famílias. Para isso, é recomendável estabelecer protocolos claros para o armazenamento e retirada dos aparelhos, garantindo organização e supervisão adequadas. Além disso, cada escola deve adaptar essas soluções à sua realidade e envolver a comunidade escolar na escolha do método mais eficaz. Veja algumas possibilidades:
1. Caixas identificadas por turma ou aluno. Devem estar etiquetadas com o nome do estudante para garantir que os celulares sejam guardados de forma segura e de fácil acesso ao final das aulas.
2. Armários individuais.Neste caso, os próprios alunos podem guardar seus aparelhos no início do período escolar.
3. Sala específica para armazenamento.Local exclusivo com armários ou prateleiras organizadas por turma, onde os aparelhos possam ser guardados com segurança.
4. Bolsas ou suportes fixados em sala de aula, onde os alunos podem deixar seus aparelhos no início das aulas.
O recreio como oportunidade de interação e convivência
Com a proibição do uso de celulares até mesmo durante os intervalos entre as aulas e o recreio, as escolas enfrentam o desafio de preencher esses momentos de forma criativa e saudável. Além de ser um período de descanso, o recreio pode se tornar uma oportunidade para promover interações, convivência respeitosa e até mesmo aprendizagens informais.
Para a educadora Verônica, muitos estudantes, principalmente dos Anos Finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, têm o celular como uma extensão do corpo. “Muitos não sabem o que fazer sem ele. Por isso, será necessário mostrar opções e disponibilizar recursos, como jogos de tabuleiro, espaços de convivência e cantos de leitura ou pintura. É uma mudança cultural, e precisamos respeitar o tempo de adaptação de cada aluno.”
A criação de um ambiente estimulante também foi destacada por Angela. Ela ressalta que crianças e adolescentes possuem uma criatividade inata que pode ser incentivada com o apoio da instituição de ensino. “Cabe às escolas oferecerem materiais, espaços e até mesmo sugestões de brincadeiras, quando necessário. Além disso, é importante mobilizar os professores para dialogar sobre convivência respeitosa e colaborar na criação de atividades que promovam interações saudáveis.”
Outra perspectiva foi trazida por João, que relembrou como os intervalos eram aproveitados em tempos passados. “Brincávamos de pega-pega, esconde-esconde, jogávamos conversa fora. O intervalo precisa voltar a ser um momento de interação física, de conexão real entre os estudantes, longe das telas.”
Mas para que tudo isso dê certo, Rosiane enfatiza que a reorganização do recreio exige planejamento e criatividade, especialmente em escolas que enfrentam limitações de recursos. “Nem todas possuem estrutura física ou pessoal suficiente para implementar projetos. Por isso, será importante buscar possibilidades dentro de cada realidade. São momentos que podem enriquecer a experiência dos alunos e fortalecer o vínculo com a escola.”
Celulares na sala de aula: quando usar e como engajar sem eles
Outro desafio da restrição do uso de celulares em sala de aula é repensar as estratégias pedagógicas e encontrar oportunidades para refinar o planejamento e explorar novas formas de engajamento das turmas, com e sem o uso de tecnologia.
Antônio Álvaro Soares Zuin, professor titular do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), diz que o uso de celulares e outros aparelhos digitais em sala de aula deve ser cuidadosamente planejado, visando à construção conjunta do conhecimento entre professores e alunos.
Ele sugere que os docentes utilizem esses dispositivos como ferramentas pedagógicas em momentos específicos, como na busca imediata por informações relevantes relacionadas aos conteúdos estudados. “Por exemplo, ao abordar a barbárie da Guerra Civil Espanhola e mencionar o quadro Guernica, de Pablo Picasso, a turma poderia usar os celulares ou outros dispositivos digitais para acessar a obra e compreender seu contexto. Sem tecnologia, os professores e alunos teriam de esperar uma semana para voltar à sala de aula com esses dados.”
E não precisa ficar só na pesquisa. Angela propõe que o uso da tecnologia esteja alinhado a práticas criativas e interativas. “Jogos cooperativos com recursos digitais, por exemplo, tornam as aulas mais dinâmicas e envolventes. O celular pode ser um excelente aliado, mas seu uso deve ser intencional e sempre a serviço da aprendizagem”, explica.
Explorando o offline com criatividade e engajamento
O professor João defende as atividades desplugadas, que utilizam materiais simples e acessíveis para promover o aprendizado. “É possível ensinar conceitos complexos, como algoritmos de programação, com atividades manuais, como construir catapultas ou robôs simples, sem a necessidade de internet. Isso coloca os alunos em contato direto com a prática, fortalecendo o pensamento criativo e o raciocínio lógico.”
Verônica acredita que o segredo das atividades offline é colocar o aluno como protagonista. “O engajamento vem quando o estudante é desafiado a criar, resolver problemas e desenvolver algo significativo. Um exemplo é pedir que eles criem uma paródia sobre a Guerra de Canudos e a apresentarem em um sarau. Mesmo sem tecnologia, essas atividades podem ser altamente motivadoras e transformadoras.”
Rosiane Prates, por sua vez, enfatiza o uso de materiais manipuláveis e o planejamento cuidadoso de projetos práticos.
“Atividades lúdicas e manuais, como as desenvolvidas na Educação Infantil, podem ser adaptadas para alunos do Ensino Fundamental, desde que alinhadas aos objetivos pedagógicos. É importante que o estudante veja o propósito dessas tarefas e como elas se conectam à sua aprendizagem.”
Com todas essas possibilidades em sala de aula — seja com o uso do celular para tarefas pedagógicas ou com práticas criativas offline — a restrição do uso dos dispositivos se torna uma oportunidade de reinventar o processo de ensino e aprendizagem. Ao diminuir as distrações e incentivar a interação e o engajamento , as escolas podem criar um ambiente mais dinâmico e saudável.
Cuidados com a saúde mental
Veja como a escola pode contribuir para uma relação mais equilibrada com a tecnologia
A nova lei foi criada, entre outros motivos, para preservar a saúde mental e física de crianças e adolescentes, impactada pelo uso excessivo de celulares. Mas como o ambiente escolar pode ajudar nesse sentido? Educadores ouvidos pela reportagem apontam algumas sugestões:
- Criar espaços para dialogar sobre o tema, ouvindo as ideias e sugestões dos próprios alunos;
- Utilizar recursos e estratégias de apoio de instituições especializadas, como reportagens, guias e atividades interativas;
- Promover palestras periódicas com profissionais da área de saúde para abordar temas relacionados à saúde mental e ao uso consciente da tecnologia;
- Promover a educação digital e organizar workshops para ensinar o uso adequado e seguro das ferramentas tecnológicas.