Judiciário
A senexão e o abandono afetivo inverso
A senexão cria vínculo socioafetivo entre o idoso abandonado e a família receptora, sem gerar filiação ou sucessão. Essa nova forma de proteção supre o dever dos filhos?

Resumo:
- O abandono afetivo inverso viola o dever dos filhos maiores de amparar os pais na velhice, conforme artigos 229 e 230 da CRFB/88.
- A senexão é uma medida protetiva ao idoso em situação de abandono afetivo, proposta pelo Projeto de Lei 105/2020 em tramitação na Câmara dos Deputados.
- A senexão estabelece um parentesco sócio afetivo entre o idoso em situação de abandono (senectado) e a família receptora (senector), sem conferir direitos sucessórios.
O abandono afetivo inverso se traduz na violação ao disposto nos artigos 229 e 230 da CRFB/88, que descrevem o dever dos filhos maiores de amparar os pais na velhice, assegurando sua participação comunitária, dignidade e bem estar. A norma é densificada pelo artigo 3º do Estatuto do Idoso, discriminando quais os direitos a serem garantidos à pessoa idosa, pela família e pelo próprio Estado.
Neste contexto surge a senexão, como forma de colocação do idoso em família substituta, quando em situação de desamparo pela família de origem, ou em institucionalização permanente. Importante relembrar que o artigo 98 do Estatuto do Idoso criminaliza a conduta de quem abandona idoso em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência, ou congêneres, ou não provê suas necessidades básicas, quando obrigado por lei ou mandado.
A senexão aparece no ordenamento como medida protetiva ao idoso que esteja em instituição de longa permanência, vítima de abandono afetivo inverso por sua família de origem, ou outra situação de vulnerabilidade.
A palavra senexão tem raiz latina senex – idoso, e ão – pertencimento. O Projeto de Lei 105/2020, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, propõe a criação do novo instituto através da inserção do artigo 55-A e seguintes do Estatuto do Idoso.
Atualmente as medidas de proteção ao idoso são aplicáveis nas hipóteses do artigo 43 do Estatuto (ação ou omissão do Estado; falta, abuso ou omissão da família ou do curador ou entidade de acolhimento; em razão de sua condição pessoal). Os artigos 44 e seguintes tratam das medidas específicas de proteção nesses casos, sendo que o projeto pretende a inserção no Estatuto do artigo 45-A: Idosos em situação de vulnerabilidade ou abandono, que tenham sido encaminhados a abrigos ou estejam desamparados pelas famílias originárias podem ser integrados em família receptora pelo instituto da senexão, conforme Art. 55. A e seguintes.
Apesar das similaridades com o instituto da adoção, a senexão não estabelece vínculos de filiação, nem confere direitos sucessórios à família receptora, apesar de inaugurar um parentesco sócio afetivo1. Diante das particularidades, podemos considerar que se trata de um parentesco sócio afetivo sui generis, já que a adoção no nosso ordenamento gera vínculo filial com todos os deveres e direitos decorrentes. O projeto não veda, no entanto, que o próprio idoso proponha a adoção do seu receptor.
Na senexão tratada pelo projeto, aparece a figura do senector, ou seja, a família receptora, e o senactado, o idoso em situação de abandono, sem condições de reintegração em sua família de origem. A consolidação da senexão depende de sua anuência, e é constituída judicialmente em caráter irrevogável, devidamente inscrita no cartório em livro próprio2.
A proposta obriga o senector a amparar o idoso em suas necessidades materiais e afetivas, além de conferir-lhe alguns direitos, especialmente para bem desempenhar o novo munus, como a inscrição de dependente para fins previdenciários e tributários, em plano de saúde, e assistência.
O objetivo do legislador é a criação de um novo instituto com nome próprio, já que não encontra precedente no nosso ordenamento, e não se confunde com o vínculo da adoção. O termo “adoção de idoso” previsto em outros projetos de lei se apresenta inapropriado, devido as diferenças basilares nos efeitos de sua constituição, afinal, na senexão não há rompimento dos vínculos do idoso com sua família de origem. A justificativa para o expresso afastamento dos direitos sucessórios do preceptor, é não incentivar a senexão por motivos meramente financeiros.
No caso da senexão, não havendo o rompimento dos vínculos com a família de origem, a exclusão dos direitos hereditários da família de origem deverá seguir o regramento conferido à matéria pelo Código Civil, nos casos de crime doloso contra a pessoa do falecido, acusação de crime ou imoralidade, indignidade ou ajuda ao falecimento (artigos 1.814 a 1.817 do Código Civil).
O projeto de reforma do Código Civil, no entanto, insere entre as causas de exclusão da sucessão, os herdeiros ou legatários que tiverem deixado de prestar assistência material ou incorrido em abandono afetivo voluntário e injustificado contra o autor da herança (artigo 1.814, inciso IV). Ou seja, de certa forma os dois projetos de lei já dialogam acerca desta questão, salientando que no projeto ora em análise, a família receptora só irá herdar na hipótese de herança vacante, tendo preferência na ordem sucessória sobre o Estado (artigo 55, inciso III). Lembrando que no projeto de reforma do Código Civil a exclusão do herdeiro ainda dependerá de ação própria.
Por fim, ainda sobre o projeto de reforma do Código Civil, destacamos que o dever de cuidado é explicitamente tratado em condição de reciprocidade entre pais e filhos, excluindo a responsabilização pelo abandono afetivo quando seu descumprimento foi mútuo. É o que se depreende do artigo 1.708, quando exclui o dever de assistência material nos casos em que o credor incorreu em violência doméstica, perda da autoridade parental, e abandono afetivo e material.
Resta aguardar como a matéria será recepcionada pelos tribunais, diante do exercício hermenêutico que demandará a nova interpretação dos artigos 229 e 230 da CRFB/88. A questão será a inclusão da mutualidade do dever de cuidado, bem como no fato de que o §1º do artigo 230, ao dispor que os programas de amparo ao idoso deverão ser executados preferencialmente em seus lares, admite hipóteses de exceção, como no caso de abandono afetivo mútuo.
Notas
1 Art. 55. C. A senexão não estabelece vínculos de filiação entre senector e senectado, nem afeta direitos sucessórios, mas estabelece vínculos de parentesco sócio afetivo, que implicam a obrigação do senector em manter, sustentar e amparar de todas as formas materiais e afetivas as necessidades do idoso. (Fonte: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2236550)
2 Art. 55. B. A senexão é o ato irrevogável pelo qual pessoa maior e capaz, o senector, recebe em sua família para amparo e assistência, um idoso, denominado senectado.
Art. 55. A, Parágrafo único. A senexão será registrada no cartório de registro de pessoas, em livro próprio.
Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro