Segurança Pública
Relatório propõe desvinculação da perícia criminal das Polícias Civis
Documento de autoria do Instituto Vladimir Herzog defende a autonomia dos órgãos periciais para garantir a imparcialidade das investigações no Brasil

A vinculação da perícia criminal às Polícias Civis no Brasil é encarado com preocupação entre especialistas, que apontam o risco de comprometimento da imparcialidade das investigações e fragilidade na produção de provas técnicas. A questão foi abordada no relatório “Perícia e Direitos Humanos: Recomendações para o Aperfeiçoamento da Perícia Criminal”, divulgado e debatido nesta quarta-feira (23), durante evento realizado no Auditório Tancredo Neves, no Ministério da Justiça, em Brasília.
O documento, de autoria do Instituto Vladimir Herzog (IVH), em parceria com a Fundação Friedrich Ebert – Brasil (FES-Brasil) e a Associação Brasileira de Criminalística, é resultado de mais de três anos de pesquisa e articulação. Ele propõe uma série de medidas para modernizar a perícia criminal no país, com foco na garantia de rigor técnico, respeito aos direitos humanos e fortalecimento de um sistema de justiça baseado em evidências. Entre as propostas mais debatidas está a defesa da autonomia dos órgãos periciais, com estruturas independentes e desvinculadas das forças policiais, uma solução apontada para garantir mais transparência e imparcialidade nos processos investigativos. Esse ponto é considerado central para assegurar a integridade das provas, a efetividade da justiça e o fim da cultura de impunidade, traço insistente em nossa história.
“Vladimir Herzog foi morto nas dependências do DOI-CODI, e o Estado, à época, produziu documentos falsos para encobrir sua execução. O laudo pericial, ao invés de servir à elucidação da verdade, foi manipulado para sustentar uma farsa. Esse episódio, tristemente emblemático, revela como a perícia pode ser instrumento de impunidade quando não está protegida de interferências e não tem garantias reais de independência”, frisou, em abertura do evento, o diretor-executivo do IVH, Rogério Sottili.
O debate ainda contou com a participação de representantes da sociedade civil, especialistas e autoridades públicas, incluindo o coordenador geral de Memória e Verdade e de Apoio à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Hamilton Pereira da Silva, que destacou a urgência de enfrentar os conflitos sociais e a violência estatal que ainda marcam o Brasil.
“Não é exagero ter áreas do Brasil em franca guerra civil, áreas em que o Estado sequer pode alcançar fisicamente. Imagine, quando ocorre que o próprio agente do Estado é responsável por essa violência, nesse país que declarou guerra aos pobres, que montou um aparato militar durante o período da ditadura, que foi a conversão das polícias estaduais em militares. Não é compreensível que numa sociedade com tamanha desigualdade possa existir uma força armada que opera como se fosse uma força de ocupação nas áreas pobres da sociedade”, salientou.
Marcos Secco, presidente da Associação Brasileira de Criminalística (ABC), valorizou o relatório elaborado, lembrando que “todos os dias, os algozes de lá de 50 anos atrás, permanecem na tentativa de acabar com a evolução da perícia”. Segundo ele, o momento é oportuno, pois apesar de “o Conselho Nacional de Direitos Humanos, instituído pelo presidente da República, ter uma resolução que trata da Autonomia de Perícia, ainda não foi dada continuidade ao processo”.
Entre os principais pontos debatidos durante o evento e que constam no relatório, destacam-se:
- A desvinculação institucional dos órgãos de perícia criminal: Com base na recomendação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e decisões judiciais como a ADPF das Favelas, que exigem a independência da perícia em relação às forças policiais;
- A constitucionalização da perícia: Reconhecendo-a como uma função essencial à Justiça, com garantias de independência administrativa e funcional;
- Implementação de protocolos rigorosos de cadeia de custódia: Para assegurar a integridade das provas técnicas em todas as fases do processo investigativo;
- Criação de Academias de Ciências Forenses independentes: Com programas de formação continuada e padronizada para os peritos criminais;
- Regulamentação ética do uso de bancos de dados genéticos: Com a implementação de salvaguardas para proteger a privacidade e prevenir discriminação.
De acordo com o relatório, em 2023, apenas 10 estados brasileiros possuíam órgãos de perícia completamente desvinculados das Polícias Civis. De acordo com a análise do relatório, a formação dos peritos apresenta grandes desigualdades, com cursos de capacitação variando de menos de 200 horas em algumas regiões até mais de 1.200 horas em outras, demonstrando a ausência de critérios mínimos de qualificação em nível nacional.
“Quando a gente defende uma nova estrutura para a perícia criminal no Brasil, a gente não está falando apenas de gestão pública. A gente está falando de um pacto civilizatório onde a ciência, a justiça e a dignidade humana estejam acima da lógica punitivista e do arbítrio. A perícia deve deixar de ser um elo vulnerável ou conivente no sistema de justiça. Ela deve ser reconhecida como um pilar de garantias fundamentais, como um espaço técnico-científico com vocação para proteger a vida, expor a verdade e, sobretudo, permitir a responsabilização de quem viola direitos”, defendeu a coordenadora da área de Memória, Verdade e Justiça do IVH, Lorrane Rodrigues.
O relatório completo está disponível no site oficial do Instituto Vladimir Herzog e será encaminhado a órgãos públicos e legisladores como uma contribuição para a formulação de políticas de segurança pública e justiça que promovam a transparência, a ciência e a proteção dos direitos humanos.