ECONOMIA
O financiamento do auxílio emergencial
Não é razoável que se busque financiamento de uma despesa emergencial com receitas permanentes
Pouco se sabe sobre a real extensão das crises associadas à pandemia da Covid-19, pois como acertadamente disse Kristalina Georgieva, diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), esta é a maior crise da humanidade, porque é a mais incerta, complexa e abrangente.
A crise expôs de maneira cruel a grande vulnerabilidade do imenso contingente de pessoas pobres, fruto de uma persistente e crescente desigualdade social. É o que se viu no Brasil.
Felizmente, apesar das fraudes e de um claudicante sistema de assistência social, os pobres conseguiram, em 2020, sobreviver por conta do denominado auxílio emergencial.
Resta saber o que fazer para manter, pelo tempo que se fizer necessário, o auxílio emergencial, sob pena de surgir aqui um clima propício a convulsões sociais, como advertiu o economista sérvio-americano Branko Milanovic, reconhecido mundialmente pelas pesquisas sobre as desigualdades sociais.
É evidente que a primeira providência a tomar é dimensionar os gastos com o auxílio emergencial, com base na população a ser atendida, valor a ser transferido e período de atendimento.
Ainda que possa discrepar do pensamento ortodoxo, o auxílio emergencial não cabe no teto de gastos, porque compensá-lo com corte de despesas é inviável, no curto prazo.
É preciso, pois, que se construa uma solução que ofereça amparo constitucional à excepcionalidade de um gasto extrateto.
Não é razoável, também, que se busque financiamento de uma despesa emergencial, presumidamente não recorrente, com receitas permanentes, a exemplo do imposto sobre grandes fortunas e a tributação na distribuição de dividendos.
Sobre os inconvenientes da instituição do imposto sobre grandes fortunas, escrevi artigo (“Crise fiscal e imposto sobre as grandes fortunas”), veiculado, em 24 de janeiro passado, no site MyNews e nas rodas sociais. Nele, assinalo a ineficiência arrecadatória do tributo, à luz da experiência dos poucos países que o adotaram, acompanhada da perigosa possibilidade de estimular a migração de capitais para outros países.
A isenção na distribuição de dividendos foi introduzida na legislação brasileira no âmbito da reforma do imposto de renda, implementada em 1995 e anos seguintes, como forma de integração da tributação da renda das pessoas físicas e jurídicas.
Essa reforma, com base em estudos produzidos na Receita Federal com a assistência de qualificados técnicos recrutados pelo FMI, envolveu não apenas a isenção na distribuição de dividendos, mas a extinção da dedutibilidade da correção monetária das demonstrações financeiras, a redução da alíquota padrão do IRPJ (de 25% para 15%) e a redução e padronização de sua alíquota adicional (de 18% e 12% para 10%), um novo disciplinamento para compensação de prejuízos, a instituição dos juros remuneratórios do capital próprio, o aperfeiçoamento da tributação das instituições financeiras e das aplicações no mercado financeiro, a instituição da tributação em bases mundiais, a adoção de regras de preços de transferência, a conceituação objetiva e inédita, no plano internacional, dos paraísos fiscais, a ampliação dos limites de faturamento para opção pelo regime do lucro presumido, a instituição de regime simplificado e privilegiado para as micro e pequenas empresas (Simples) como previsto na Constituição, etc.
A enumeração das demais medidas contidas na reforma na tributação da renda, ademais da isenção na distribuição da renda, tem por objetivo expressar sua amplitude como explicação para seus resultados.
Entre 1996 e 2002, a arrecadação do IRPJ cresceu em termos reais, com base no IPCA, 116,71% e a participação desse imposto no PIB aumentou de 1,51% para 2,26%, representando, portanto, um excepcional crescimento de cerca de 50%. O desempenho do IRPJ, além disso, foi o mais expressivo entre os tributos federais, no mesmo período.
A despeito desse crescimento e da inexistência de pesquisas específicas, ao que parece essa reforma foi bem acolhida pelos contribuintes, porque simplificou e racionalizou o tributo.
Por entender que a matéria tributária deve ser objeto de avaliação permanente, é que faço uma sucinta reflexão sobre a isenção na distribuição dos dividendos, porquanto foi suscitada a possibilidade de recorrer-se à revogação dessa isenção para custear o auxílio emergencial.
É evidente que essa revogação não seria eficaz para financiar o auxílio emergencial, seja em virtude da restrição constitucional à imediata vigência, seja porque seria duvidoso seu alcance em relação ao estoque de dividendos constituído em exercícios passados.
De qualquer forma, o tema sempre retorna à discussão, porque ainda não foi suficientemente esclarecida a imprópria comparação da tributação dos dividendos com a da atividade laboral.
A rigor, as pessoas físicas são as destinatárias finais da tributação, como contribuintes de fato ou de direito: por incidência indireta, nos preços dos serviços e mercadorias pagos pelos consumidores, ou por incidência direta, por meio dos tributos incidentes sobre a posse ou propriedade de bens, sobre a atividade laboral e sobre os rendimentos provenientes das aplicações no mercado financeiro ou nas empresas.
As pessoas jurídicas tão somente antecipam ou postergam o tributo que, afinal, será pago pelas pessoas físicas.
Da mesma forma que, na tributação da renda das pessoas físicas, não se pode desconhecer o que foi retido na fonte pelo empregador, na tributação dos sócios há que se considerar o tributo pago na pessoa jurídica, pois inevitavelmente repercute no dividendo distribuído.
O tratamento tributário dos sócios de empresas pode seguir 3 modelos distintos: tributação exclusivamente na pessoa jurídica ou apenas por ocasião da distribuição dos dividendos ou, então, tributação mista, tanto na pessoa jurídica quanto na distribuição.
Os países da OCDE optaram, diferentemente do Brasil e mais duas dezenas de países, pela tributação mista. Apenas 3 países, em virtude de circunstâncias muito peculiares, tributam exclusivamente os dividendos.
A revogação da isenção na tributação de dividendos, no Brasil, encerra inúmeros riscos e desvantagens: ressurgimento da perigosa distribuição disfarçada de lucros (DDL), sonegação de difícil enfrentamento; intensificação do planejamento tributário abusivo, também de difícil enfrentamento; restrição à liberdade de investimento, porque a indução ao represamento de capital pode não ser a melhor opção de investimento, ao passo que a isenção na distribuição não elide a possibilidade de reinvestimento; riscos para a arrecadação, por força de eventuais restrições à distribuição de dividendos, como as que, na pandemia, foram estabelecidas na Europa e no Brasil.
Alguns advogam a revogação da isenção, postulando que, simultaneamente, haja uma redução na tributação da pessoa jurídica. À parte o enorme imbróglio que essa medida causaria na tributação do agronegócio e dos optantes do Simples e do Lucro Presumido, o que, de resto, se ganharia com isso, ressalvada a alegria dos planejadores tributários?
Estudos realizados pela Receita Federal demonstram que a redução de 1 ponto percentual na alíquota do IRPJ corresponderia, para assegurar neutralidade, a 4 pontos percentuais na alíquota incidente sobre os dividendos.
Assim, uma redução de 10 pontos percentuais, na alíquota do IRPJ, demandaria a título de compensação uma desproporcional alíquota de 40% na distribuição dos dividendos.
Como bem lembrado pelo economista Isaías Coelho, com larga experiência em matéria tributária, o Brasil durante 70 anos adotou o modelo misto (tributação na pessoa jurídica e na distribuição de dividendos). Há 25 anos tributa apenas a pessoa jurídica. Não seria o caso, conclui ele, de realizar um estudo comparativo dos dois modelos, identificando suas vantagens e desvantagens na prática brasileira?
Isto posto, resta explorar as formas de financiamento do auxílio emergencial. Talvez, possamos encontrar pistas para solucionar o problema, a partir de nossa própria experiência.
Na severa crise vivida pelo País, em janeiro de 1999, a Lei nº 9.779, de 1999, com as alterações introduzidas pelas Medidas Provisórias nº 1.807, de 1999, e nº 1.856-6, de 1999, possibilitou a realização de uma transação tributária, nos termos do art. 171 do CTN, que resultou na geração de receitas extraordinárias, no montante de R$ 5,5 bilhões, revertendo o quadro de déficit fiscal e desestimulando os ataques especulativos ao Real.
Igualmente, a transação tributária aplicável à resolução do litígio relativo à tributação dos fundos de pensão, nos termos da Medida Provisória nº 2.222, de 2001, foi responsável pela geração imediata de R$ 9,6 bilhões.
Hoje, as possibilidades de efetivação de transações tributárias, dando cabo a intermináveis litígios, são infinitamente maiores. Têm, além disso, um enorme potencial arrecadatório. A propósito, estudo promovido pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial – ETCO identificou a existência, no final de 2018, de litígios que alcançam o desproporcional volume de R$ 3,44 trilhões, só no âmbito da União.
Podem existir outras soluções para financiar o auxílio emergencial, mas já se sabe que, ao menos, um caminho já foi testado com êxito.