Judiciário
Disputa sobre dados da Lava Jato e exclusão em texto sobre leniência elevam tensão na PGR
Entre promotores, a avaliação é de que os novos termos dão muito poder ao Executivo, que não necessariamente tem independência para negociar com as empresas.
Decisões judiciais envolvendo o acesso a dados da Lava Jato e o anúncio de mudanças nas regras para acordos de leniência sem a participação do Ministério Público Federal (MPF), na última semana, incendiaram ainda mais o clima dentro da Procuradoria-Geral da República (PGR).
A tensão elevada entre o procurador-geral, Augusto Aras, e integrantes da força-tarefa é o principal combustível do racha interno do MPF, que envolve também o Supremo Tribunal Federal (STF), políticos e o governo Jair Bolsonaro.
Na mais recente polêmica, a cooperação técnica que traz as novas regras para acordos de leniência foi apresentada pelo presidente do Supremo, Dias Toffoli, e endossada pelo Controlador-Geral da União (CGU), Wagner do Rosário, pelo Advogado-Geral da União (AGU), José Levi, pelo ministro da Justiça, André Mendonça, e pelo presidente do Tribunal de Contas da União, José Múcio Monteiro.
Aras não assinou o documento alegando que precisava esperar as manifestações internas da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão da PGR. Até o fechamento desta reportagem, a assessoria de imprensa do MPF ainda não havia informado qual será o prazo para esse procedimento e qual a posição oficial do órgão sobre a cooperação técnica.
Com isso, contudo, o MPF não poderá, na prática, propor alterações ao texto que, nos termos atuais, restringe à CGU e à AGU a prerrogativa de negociar os acordos. Assim, as provas decorrentes só serão compartilhadas com promotores depois que o acordo já tiver sido firmado.
Os acordos de leniência são o paralelo da delação premiada para pessoas jurídicas. Entre promotores, a avaliação é de que os novos termos dão muito poder ao Executivo, que não necessariamente tem independência para negociar com as empresas.
A questão se concentraria, especialmente, numa tentativa de não suspender ou proibir contratos entre essas empresas e o poder público se elas colaborarem com a Justiça. Negociando diretamente com órgãos da estrutura do Executivo, elas, em tese, teriam mais chances de garantir a continuidade de contratações com o poder público e se manterem tocando grandes obras.
Segundo o HuffPost apurou, a pressa do governo e o silêncio de Aras alimentaram a suspeita, dentro do Ministério Público, de que o procurador-geral não tenha assinado o documento em mais uma ação em consonância com o governo Bolsonaro. Aras foi alçado ao comando da PGR pelo presidente a despeito da lista tríplice da categoria e vem fazendo uma gestão considerada, por muitos, excessivamente alinhada ao governo federal.
Toda essa movimentação sobre os acordos de leniência vem em um momento em que o governo federal reestrutura sua comunicação para dar maior destaque ao trabalho dos ministérios e às realizações da gestão Bolsonaro. Nessa nova estratégia, que decorre da perda de popularidade do presidente e da dificuldade na retomada econômica, dois de seus auxiliares vêm ganhando especial atenção: Tarcísio Freitas, da Infraestrutura, e Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, ambos à frente de pastas focadas justamente em obras.
Aras X Lava Jato
Ao participar, em 28 de junho, de uma live com o grupo Prerrogativas, Aras disparou que era preciso “corrigir rumos” no MPF para impedir que “o lavajatismo perdure”. A declaração, que gerou reação imediata, refletia um imbróglio que se arrasta entre o PGR e seus aliados, de um lado, e a força-tarefa da Lava Jato, de outro.
No centro do embate estão os dados produzidos pela operação durante os seis anos de trabalho e que, segundo Aras, têm 350 terabytes e abrangem 38 mil pessoas. Frente à resistência dos procuradores da Lava Jato em entregar os dados, se instalou uma crise que foi parar no STF.
Na segunda-feira, o ministro Edson Fachin derrubou uma liminar de Toffoli que determinava o compartilhamento dos dados da força-tarefa com a PGR. A decisão de Fachin, responsável pelos processos da Lava Jato na Suprema Corte, é inclusive retroativa: ou seja, fica vetado o acesso mesmo às informações já enviadas ao procurador-geral.
Toffoli havia concedido a liminar, que envolve as forças-tarefa da Lava Jato em Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro, durante plantão do STF. Na última sexta-feira (7), a PGR recorreu da decisão de Fachin, argumentando que o compartilhamento é essencial para certificar investigações irregulares envolvendo autoridades com foro privilegiado. A competência para julgar esses eventuais desvios, contudo, é da Corregedoria do MP, e não da PGR, segundo fontes ouvidas pelo HuffPost.
As posições divergentes de Fachin e Toffoli expõem a divisão que existe, no STF, quanto à operação. Nesta semana, por exemplo, ao excluírem do processo que acusa o ex-presidente Lula (PT) a delação do ex-ministro Antonio Palocci, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski não pouparam críticas à atuação do ex-juiz Sergio Moro, responsável pelos processos da Lava Jato de 2014 a 2018.
No Ministério Público Federal, há uma insatisfação generalizada com as ações de Aras, especialmente porque o órgão, apesar de ter unidade, garante, regimentalmente, a independência funcional de seus membros. Isso quer dizer que o procurador-geral não é um “superior” dos demais: ele é o chefe administrativo do MPF, mas não está numa posição hierárquica acima, apenas coordena assuntos gerais.
Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo publicada nesta segunda (10), o coordenador da força-tarefa em Curitiba, Deltan Dallagnol, disse que algumas de condutas de Aras “indicaram uma visão equivocada do Ministério Público e do seu trabalho na Operação Lava Jato”. “As ações do PGR devem ser construtivas e não destrutivas em relação à instituição, que é uma das mais relevantes do País”, declarou.
Além do imbróglio envolvendo os dados, há ainda a proposta de Aras de criar a “Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado”, que juntaria os grupos de trabalho e os subordinaria ao procurador-geral.
Em julho, o Poder 360 revelou que a Operação Lava Jato citou, em denúncia de 2019, os presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), ocultando os sobrenomes pelos quais eles são conhecidos publicamente em tabela com supostos recursos de propina pagos pelo Grupo Petrópolis. Os dois eram mencionados como “Rodrigo Felinto” (de Rodrigo Felinto Ibarra Epitácio Maia) e “Davi Samuel” (de David Samuel Alcolumbre Tobelem).
Como ambos têm foro privilegiado, não poderiam ser investigados pelos promotores. Essa é uma das principais linhas da apuração que Aras vem conduzindo no processo: encontrar outras camuflagens, que podem ter atingido até ministros do STF.
Caça às bruxas?
O embate quanto aos dados começou em 24 de junho, com uma visita da subprocuradora-geral Lindôra Araújo, braço-direito de Aras, à sede da operação em Curitiba. Ela é responsável pelos processos da Lava Jato no STF desde janeiro deste ano, designada por Aras.
Acompanhada do secretário de Segurança Institucional, Marcos Ferreira dos Santos, que é o delegado de Polícia Federal, e do procurador da República Galtienio da Cruz Paulino, do gabinete de Aras, ela foi até o “quartel-general” no Paraná e pediu para ter acesso a dados e, supostamente, entender “o volume de trabalho pendente acumulado”.
A diligência da subprocuradora não repercutiu bem: na sequência, os 14 procuradores da força-tarefa da Lava Jato enviaram ofício à Corregedoria-Geral e à PGR informando sobre a visita de Lindôra e se queixando de que ela teria buscado “acesso a informações, procedimentos e bases de dados desta força-tarefa em diligência efetuada sem prestar informações sobre a existência de um procedimento instaurado, formalização ou escopo definido”.
Na sequência, ela emitiu nota dizendo que a reunião foi previamente agendada e negou ter buscado acesso informal aos dados ― segundo ela, o compartilhamento foi solicitado em ofício que data de 13 de maio. “Não houve inspeção, mas uma visita de trabalho que visava à obtenção de informações globais sobre o atual estágio das investigações e o acervo da força-tarefa, para solucionar eventuais passivos”.
“Os assuntos da visita de trabalho, como é o normal na Lava Jato, são sigilosos. A PGR estranha a reação dos procuradores e a divulgação dos temas, internos e sigilosos, para a imprensa”, completa Lindôra.
Internamente, membros do MPF e que sequer integram a Lava Jato apontam um clima de “caça às bruxas” e dizem que a situação é a “pior possível”.
No último dia 31 de julho, Aras e o subprocurador Nicolao Dino se desentenderam durante sessão do Conselho Superior do Ministério Público Federal (MPF). Dino o acusou de fazer “graves afirmações” quanto ao MPF e foi cortado pelo procurador-geral, que disse que a reunião não viraria “ato político”. Aras ainda acusou os pares de vazarem informações à imprensa.
Depois, lendo carta assinada por ele em conjunto com outros três procuradores ― Nívio de Freitas Silva Filho, José Adonis Callou de Sá e Luiz Cristina Fonseca Frischeinsen ―, Dino afirmou que a atuação de Aras em “nada contribui” para a tal “correção de rumos” que ele diz ser necessária e que “um Ministério Público desacreditado, instável e enfraquecido somente atende aos interesses daqueles que se posicionam à margem da lei”.
O subprocurador disse ter provas de má-condução de processos e que às autoridades competentes caberá “apurar a verdade, a extensão, a profundidade e os autores, e os coautores, e os partícipes”. “Porque me acostumei a falar com provas, e tenho provas, e essas provas já estão depositadas”, afirmou.