Judiciário
Efeitos menos óbvios da insegurança jurídica
Previsibilidade é o que falta num cenário de controvérsias tributárias
Muito se fala sobre a insegurança jurídica do Brasil em função da morosidade e da imprevisibilidade que permeia o desfecho das demandas tributárias. Não bastasse toda a complexidade de nosso sistema, a “árvore de decisão” de nossos julgadores tem considerado, em maior ou menor grau, as consequências que podem advir de suas decisões.
Em mais de 70% das decisões tributárias afetadas pela sistemática da repercussão geral proferidas entre 1 de janeiro de 2016 e 30 de junho de 2019, dentre as razões de decidir, consta a preocupação de fundo com o risco de que essas decisões possam afetar significativamente o equilíbrio das contas e a viabilidade do Estado prover os serviços aos seus cidadãos. Essa preocupação aparece nas decisões de mérito e ou em modulação de seus efeitos.
Não entraremos no mérito desse tipo de preocupação ser juridicamente válida ou não. Ao contrário, partiremos da premissa de que o consequencialismo pode ser uma forma válida de construção de uma árvore de decisão.
Ao lado dos problemas fiscais notórios e reais, outros valores tão necessários ao desenvolvimento do Brasil devem ser igualmente considerados. Nesse caso, o valor que se contrapõe é a previsibilidade, elemento essencial na tomada de decisão em relação a investimentos.
Previsibilidade é justamente o que falta num cenário de longas controvérsias tributárias que pressupõem um exercício de julgamento extremamente complexo, eivado de incertezas, que, por consequência, resultam em falhas que tornam os mercados menos eficientes.
A imprevisibilidade, nesse caso, se traduz em efeitos nos balanços das companhias quer seja pelo registro de direitos, de provisões e de obrigações ou por meio de menção em notas explicativas. Estudos demonstram que as companhias brasileiras são as que mais afetam seus balanços em função de demandas tributárias e que, em 2016, os riscos tributários das dez maiores companhias abertas brasileiras totalizavam R$ 281 bilhões, valor 7,18 vezes maior do que o relacionado às demandas trabalhistas, por exemplo.
Direitos e obrigações que decorrem de demandas que levam mais de 20 anos para terem um fim são precificados, normalmente, depreciando os prováveis direitos e apreciando as prováveis obrigações.
Em 2021, estamos diante de uma enorme insegurança causada pelo julgamento do Recurso Extraordinário 574.706, (leading case) que trata da exclusão do ICMS da base de cálculo das contribuições ao PIS e da COFINS, afetando significativamente a posição patrimonial de diversas companhias brasileiras..
Ao decidir o mérito da demanda em 2017, mantendo em aberto a possibilidade de modulação dos efeitos e a revisão da interpretação da decisão (por via de embargos de declaração), ainda que involuntariamente, a Corte Suprema, criou um enorme desafio para um conjunto de atores que raramente são seus interlocutores: a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), os responsáveis por relações com investidores, os auditores externos e os preparadores das informações contábeis, base relevante para reduzir assimetria de informação e para o processo de tomada de decisão no mercado de capitais.
Isso porque, obrigações passaram a existir para esses agentes, independentemente do trânsito em julgado da decisão proferida no RE 574.706. Desde 2017 até hoje, os administradores e demais atores envolvidos na governança das companhias tiveram que mensurar os ativos a serem reconhecidos ou obrigações a serem revertidas, pelo menos a cada trimestre para fins de preparação dos relatórios a serem encaminhados às autoridades (ex. CVM, US Securities and Exchange Commission – SEC). Esses números passam da casa dos bilhões com alguma facilidade.
A CVM, por sua vez, vem editando orientações que denotam a preocupação com a possibilidade de misleading por parte dos investidores. A preocupação se justifica à medida em que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) ensejou efeitos práticos e jurídicos durante o interregno de 2017 a 2021, como o pagamento de dividendos e decisões de compra e de venda de ações das companhias.
Há, ainda, uma cadeia de responsáveis diretos e gatekeepers que podem ser responsabilizados legalmente pelas informações disponibilizadas ao mercado e que possam ser entendidas como imprecisas em função de reveses ou desfechos não esperados.
Diante do cenário de incerteza quanto ao STF manter a decisão já proferida em 2017 e repisada pelos Tribunais inferiores em seus exatos termos ou alterá-la em 2021 em algum aspecto, por modulação ou por inovações, constata-se quão desafiador é garantir o funcionamento e o desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro que, como todos os seus concorrentes no mundo, só se sustenta de forma eficiente quando há transparência aos acionistas e previsibilidade.
Importante observar que mercado de capitais é um instrumento fundamental para a captação de recursos direcionados ao financiamento das atividades das companhias, contribuindo de forma decisiva para o desenvolvimento do País.
Mesmo não sendo tão fácil mensurar em cifras, certamente, dentre as consequências sociais não relacionadas especificamente a parâmetros legais do que se julga, a instabilidade no mercado de capitais e as consequências jurídicas que podem decorrer dessas incertezas também deveriam ser sopesadas, ainda mais nesse momento em que as incertezas já estão maximizadas pela crise sanitária que atravessamos.