Judiciário
Rachel Sheherazade está coberta de razão
Críticas à jornalista por ajuizamento de ação trabalhista são infundadas
Acostumada a apresentar o noticiário na TV, a jornalista Rachel Sheherazade acabou tornando-se ela própria notícia, pelo fato de que decidiu ajuizar uma ação trabalhista contra o seu antigo empregador, a rede SBT, de propriedade do empresário Silvio Santos. Ela foi contratada originalmente como “pessoa jurídica” e na ação trabalhista está postulando a desnaturação do contrato civil, ao argumento de que sua relação fática era de emprego, pela presença dos elementos do art. 3º. da CLT, invocando assim o princípio da primazia da realidade sobre a verdade formal, nos termos do art. 9º. da mesma CLT.
A ação de Sheherazade, portanto, é idêntica a tantas outras milhares de reclamações trabalhistas ajuizadas anualmente na Justiça do Trabalho, em que trabalhadores buscam o reconhecimento de seu contrato de trabalho, argumentando que a contratação civil através de sua “pessoa jurídica” foi um expediente fraudulento com o objetivo de evitar encargos trabalhistas e fiscais.
O diferencial no caso da jornalista, talvez, seja o fato de que ela, enquanto trabalhou para a empresa, teria tido um salário de alto padrão, o que, segundo aqueles que a criticam, a qualificaria como trabalhadora “hipersuficiente”. Ou seja, devido ao seu status no mundo do jornalismo, ela não poderia alegar uma condição de “hipossuficiência” a justificar a invalidação do contrato civil. Alguns de seus críticos dizem que ela foi “ingrata” e agiu de “má-fé.” Nada mais absurdo.
Segundo as matérias da imprensa que li sobre o caso, Sheherazade era apresentadora de uma emissora afiliada ao SBT na Paraíba, e foi admitida a esta empresa em 2010, para apresentar um telejornal de âmbito nacional. Note-se que, então, a jornalista não era nenhuma “celebridade da mídia” e não faz sentido algum vê-la como uma “hipersuficiente”, pois essa condição não se mede pelo salário a ser negociado e sim pelo “poder de barganha”.
Observe-se que a introdução do conceito de “trabalhador hipersuficiente” pela Reforma Trabalhista, assim tido aquele que recebe mais do que o dobro do teto previdenciário e possui diploma de nível superior, não pode balizar a existência ou não de relação de emprego, pois não foi concebido para esse fim.
O enquadramento como empregado hipersuficiente serve apenas para conferir maior grau de autonomia nas negociações patrão-empregado, dispensando, por exemplo, a incidência de normas convencionais derivadas de negociação coletiva. É aplicável, portanto, àquele que já é considerado empregado e em nada afeta, por conseguinte, a verificação de eventual desvirtuamento de um contrato civil para um contrato de emprego.
O art. 3º. da CLT estabelece requisitos objetivos para a caracterização da relação de emprego, sendo indiferente o nível de remuneração do trabalhador, bastando que seja demonstrada sua “dependência econômica”. Ainda que alguns doutrinadores patronais e juízes pro business queiram forçar a barra e empurrar goela abaixo dos jurisdicionados essa tese da “hiperssuficiência” como inviabilizadora do vínculo laboral, é de se perguntar se, diante de um império de comunicação, o SBT, e de seu proprietário, um dos empresários mais ricos e influentes do país, uma jovem jornalista de expressão regional e praticamente desconhecida do grande público estaria em “igualdade de condições” ao ajustar uma modalidade de contrato de trabalho.
Ainda que Sheherazade tenha imaginado que trabalharia como “pessoa jurídica”, pressupondo um alto grau de autonomia e autogestão do seu trabalho, o que importa saber é como a relação entre a jornalista e a empresa de comunicação se desenvolveu no plano fático. Segundo consta da sua petição inicial, divulgada pela imprensa, à jornalista foram concedidos benefícios como vale-refeição e plano de saúde. Que eu saiba, pessoa jurídicas não comem nem ficam doentes.
A petição inicial, acompanhada de documentação comprobatória, alega ainda a existência de inúmeros outros elementos que demonstrariam os demais requisitos da relação de emprego, como subordinação a editores e diretores, participação obrigatória em reuniões, carga horária de trabalho fixada, uso de crachá idêntico aos demais empregados e de email corporativo do SBT.
Claro que tudo isso está sujeito ao contraditório e será objeto de amplo escrutínio judicial. Mas parece-me que há um fato público e notório a demonstrar que Rachel Sheherazade não era uma “empresa” que prestava serviços ao SBT, mas sim uma mera subordinada de carne e osso: ela foi admoestada publicamente pelo sr. Silvio Santos por emitir opiniões políticas durante os telejornais, manifestações essas que desagradavam o seu chefe, pois continham críticas ao atual presidente, a quem o magnata da mídia presta o mais irrestrito apoio.
Ainda, segundo amplamente divulgado pela imprensa, a jornalista acabou sendo “demitida” porque sua cabeça foi pedida por um grande anunciante, conhecido como “Véio da Havan”, que vem a ser outro incondicional fã do atual ocupante do Alvorada. Esse fato também consta do processo, pois é objeto de um pedido de indenização por dano moral. Esse aspecto demonstra claramente a existência de pessoalidade e subordinação incompatíveis com um contrato civil que, em sua horizontalidade, se caracteriza pela autonomia da vontade dos contratantes.
Igualmente desprovidas de fundamento são as críticas de que Sheherazade teria agido de má-fé, pois de alguma forma se aproveitou da modalidade contratual “P.J.” para pagar menos impostos. Essa alegação é comum nesse tipo de lide e não causa nenhum espanto. Quem incentiva os trabalhadores a muitas vezes se acomodarem a essa situação é a própria legislação tributária, que estabelece alíquotas distintas de tributação para o trabalho sob regime da CLT e aquele prestado, supostamente, por prestadores de serviços de forma autônoma. Ou seja, o sistema tributário, como posto, estimula o desvirtuamento de contratos de trabalhadores de alta renda, fazendo com que trabalhadores pobres paguem proporcionalmente mais impostos do que os trabalhadores ricos. Ademais, tendo ajuizado uma ação trabalhista, Sheherazade, em caso de procedência, será obrigada a pagar os impostos devidos retroativamente.
Aliás, é curioso que a Receita Federal, sob a administração Bolsonaro, lançou uma “ampla auditoria fiscal” sobre a TV Globo, cujo propósito declarado foi o de autuar a empresa justamente por ter-se valido ilegalmente de contratação de jornalistas e atores como “pessoa jurídica”. Esperemos que essa diligência prossiga e que tais exigências sejam feitas para todas as emissoras, SBT e Record incluídas, para que não pairem dúvidas quanto à isenção da administração fazendária.
Mesmo que Sheherazade não tivesse razão em seu pedido (eu por evidente acho que ela tem), o que parece mais absurdo nesse episódio são as críticas públicas a uma cidadã pelo simples fato de que ela ajuizou uma ação trabalhista, exercendo um direito-garantia que ainda é protegido pela nossa Constituição.
A ninguém surpreende, pois, que as críticas a Sheherazade venham sobretudo daqueles que têm demostrado pouco apreço pelas instituições democráticas e constitucionais, e que, não raro, se tem destacado pelo extremo servilismo ao atual presidente da República, de cujo autoritarismo comungam.
É o caso do apresentador Ratinho, que nesse fim de semana soltou essa pérola para a ex-colega de SBT em um programa de rádio: “você estava lá na Paraíba, escondida, fez um comentário sobre o Carnaval, o Silvio Santos gostou do comentário, tirou você da escuridão onde estava. Trouxe você para São Paulo, pagou salário altíssimo, pelo menos cinquenta vezes mais do que você ganhava aí na Paraíba. E de repente você, numa ingratidão enorme, faz uma coisa dessa. Muito feio para você Sheherazade. (…) Eu acho que o pior defeito e o único que mostra mau-caratismo é ingratidão. E lamentavelmente você está sendo uma ingrata”.
Há alguns juristas que, do alto de sua sapiência, estão repetindo os mesmos argumentos autoritários de Ratinho. Só, talvez, não estejam sendo tão deselegantes, grosseiros e preconceituosos como ele.
AUTOR:
CÁSSIO CASAGRANDE – Doutor em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.