Educação & Cultura
Educar através do direito financeiro e do direito público para a cidadania
Não basta ensinar direito financeiro, é necessário educar através do direito financeiro
Educação e ensino são duas expressões correlatas, mas significam coisas diferentes. Em nossa Constituição consta que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, e será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (art. 205, caput).
O ensino é que será ministrado com base em diversos princípios, dentre eles o da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola e o da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, I e II).
Vê-se, portando, que a expressão educação é mais ampla do que ensino, pois abrange, além de um direito de todos, um dever por parte do Estado e da família, em colaboração com a sociedade, objetivando formar cidadãos plenos.
Entendo que as faculdades de Direito devem educar, e não apenas ensinar.
Essa concepção está em sintonia com a questão do direito financeiro e o direito público.
Costumo dizer que o direito financeiro é o ramo do Direito no qual se estuda como o Estado (1) arrecada, (2) gasta, (3) se endivida, como isso é (4) repartido internamente, (5) organizado e (6) fiscalizado, (7) visando concretizar os objetivos fundamentais prescritos em nossa Constituição.
Desde o início se verifica que o termo central da definição é o Estado, pois é a partir dele que se analisa os diversos aspectos mencionados. Thomas Hobbes, em 1651 comparou o Estado a um Leviatã, indicando o dinheiro como o sangue que circulava em suas veias[1].
No final do século XIX, Rudolf von Jhering já demonstrava a correlação entre a participação da sociedade e o financiamento do Estado através do orçamento[2]. Portanto, o estudo do direito financeiro se insere inegavelmente no seio das análises do Estado, e, por conseguinte, do direito público.
Ao se estudar como o Estado arrecada, se ingressa no vasto mundo sobre as diferentes formas pelas quais o dinheiro sai do bolso dos cidadãos e ingressa nos cofres públicos.
O estudo dos gastos públicos diz respeito ao papel essencial do Estado, de fornecer à sociedade os bens e serviços que permitam elevar seu nível civilizatório.
O estudo da dívida pública permite que se analise a questão intergeracional, pois os recursos que são obtidos hoje por empréstimo, deverão ser pagos no futuro, através da arrecadação tributária – justamente por isso que se afirma que dívida corresponde à antecipação de tributos.
Analisar como tudo isso é repartido internamente ao Estado nos conduz ao federalismo financeiro, que se desdobra em federalismo fiscal (tributário), patrimonial (repartição dos royalties do petróleo, da mineração, dos recursos da privatização), da dívida pública, das despesas etc. Embora se denomine de federalismo, tais repartições de encargos e atividades financeiras ocorre também nos países unitários.
Estudar como tudo isso se organiza é analisar as leis orçamentárias, nas quais se demonstra de quem se arrecada e com quem se gasta em um país, o que permite afirmar se os recursos públicos estão sendo usados de forma republicana, através da análise das capacidades financeiras, pois, quanto mais se arrecada de quem tem menos recursos ou bens (capacidade contributiva) e se gasta com quem menos necessita (capacidade receptiva), menos republicano será o uso dos recursos públicos – infelizmente o Brasil se encontra há décadas nesse lastimável estágio de baixo republicanismo financeiro.
E, coroando as áreas de estudo do direito financeiro, analisa-se também como tudo isso é controlado, o que nos leva ao papel dos Tribunais e Contas e do Poder Legislativo no exercício dessa função, que se assemelha ao sistema de vigiar e punir, de que nos fala Michel Foucault.[3]
Ocorre que, se todas essas áreas forem analisadas apenas de maneira formal, qualquer escopo poderá ser buscado por elas, até mesmo o financiamento da destruição do próprio Estado e do mal-estar na sociedade. Exatamente por isso que o direito financeiro tem uma função, que extrapola a estruturação demonstrada, que é, no caso do Estado brasileiro, determinada pelo art. 3º da Constituição, que elenca os objetivos fundamentais a serem perseguidos, dentre eles a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III), em busca de nos tornarmos uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I), que garanta o desenvolvimento nacional (inciso II) e que promova o bem de todos, com isonomia (inciso IV). Não basta a estrutura, tem que haver uma função, na linha de Norberto Bobbio[4].
Nesse sentido é que o direito financeiro é o campo propício para o estudo de políticas públicas, usualmente correlacionadas com o gasto público, mas que também tem vinculação com a arrecadação e a dívida pública, pois, de que adianta afirmarmos direitos se não houver dinheiro para concretizá-los? A busca não deve ser por equilíbrio orçamentário, mas por sustentabilidade financeira.
Deve-se considerar ainda os aspectos federativos, pois as pessoas moram localmente, embora as políticas públicas devam ser pensadas globalmente. As diferenças entre as pessoas devem ser respeitadas, e as desigualdades combatidas – sabe-se isso desde Rousseau[5].
É também necessário ter os olhos voltados para as operações financeiras do quotidiano, que regem a conjuntura econômica, a fim de identificar se nossos governantes de plantão estão conduzindo o país para os objetivos fundamentais inscritos na nossa Constituição (art. 3º).
Há sempre o risco de que o estejam levando para outros caminhos, quando então será necessário judicializar o debate[6] – procedimento que erroneamente se confunde com ativismo judicial[7]. É preciso estar atento para a correção de rumos, pois, se a sociedade não sabe para onde ir, qualquer caminho serve, como disse o Gato à Alice, na fantástica e maravilhosa história de Lewis Caroll[8]. No Brasil, o rumo é ditado pela Constituição.
Portanto, para bem conhecer o direito financeiro não basta saber as normas que tratam de receita, despesa, dívida, federalismo, orçamento e controle – é pouco. Precisa conhecer o Direito, que é muito mais amplo do que as normas que regem essa matéria. É importante conhecer o direito público – constitucional, administrativo, econômico, tributário, processual, teoria do Estado, dentre outros. E conhecer também história, economia, finanças públicas, filosofia, ciência política e muito mais.
Enfim, para retornar ao início deste texto, não basta ensinar direito financeiro, é necessário educar através do direito financeiro, a fim de permitir que as pessoas ultrapassem os estreitos muros da ignorância funcional e se tornem verdadeiros cidadãos.
[1] “Os condutos e canais por meio dos quais o dinheiro circula para uso público são de duas espécies: uma das vias conduz aos cofres públicos, e a outra o faz sair dos cofres para o pagamento das dívidas públicas. […] Também nisso o homem artificial conserva sua semelhança com o homem natural, cujas veias recebem o sangue das diversas partes do corpo, conduzindo-o ao coração; depois de vitalizado, o sangue é expelido pelo coração por meio das artérias, com o objetivo de vivificar e possibilitar o movimento de todos os membros do corpo.” Hobbes, Thomas. Leviatã. Tradução Rosina D’Angina. 2. ed. São Paulo: Martim Claret, 2012. p. 203.
[2] “Que relação tem o imposto com o direito? Muita! A obrigação de pagar impostos é sinônimo do dever cívico que cada um tem de, na sua alçada, perseguir e fomentar todos os fins da sociedade para os quais estes impostos são aplicados. Em lugar da entrada de cada um no orçamento, estabelece-se o princípio jurídico: és juridicamente obrigado a colaborar para a receita. O orçamento do Estado ou da comunidade reduz-se em tantas normas jurídicas quanto existam entradas. Cada uma delas clama: coopera com esta entrada! Tens o dever de manter o exército e a marinha; tens a obrigação de abrir ruas, de manter as escolas e universidades etc. A cada nova finalidade que surge no sistema administrativo, passas a ter uma nova obrigação. O orçamento do Estado ou da comunidade política e eclesiástica te diz para que fins a sociedade necessita de ti”. Jhering, Rudolf von. A finalidade do direito. Tradução de Heder Hoffmann. Campinas: Bookseller, 2002. T. I, p. 339-340.
[3] Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 33. ed. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.
[4] Bobbio, Norberto. Da estrutura à função: Novos estudos de teoria do direito. Campinas: Manole, 2006.
[5] Rousseau, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Traduzido por Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2013.
[6] Comparato, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista de Informação Legislativa, ano 35, n. 138, p. 43, Brasília: Senado Federal, abr.-jun. 1998.
[7] Bucci, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2013.
[8] “O senhor poderia me dizer, por favor, qual o caminho que devo tomar para sair daqui? Isso depende muito de para onde você quer ir, respondeu o Gato. Não me importo muito para onde, retrucou Alice. Então não importa o caminho que você escolha”, disse o Gato. Contanto que dê em algum lugar, Alice completou. Oh, você pode ter certeza de que vai chegar se você caminhar bastante, disse o Gato.” Carroll, Lewis. Alice no País das Maravilhas.
AUTOR
FERNANDO FACURY SCAFF – Professor titular de Direito Financeiro da USP e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.