Judiciário
Casa é o asilo inviolável
Um dos significados da palavra grega oikos compreende casa, em seu sentido de local de habitação de um grupo familiar. Tanto é que referido radical deu origem à palavra ecologia, com o significado de estudo relacionado com o local em que se habita. Os romanos, por seu turno, mais apegados à tradição e aos costumes, denominavam domus o local de agregação dos grupos regidos pelo pater famílias.
No Brasil a palavra casa compreende domicílio, residência, imóvel ocupado por um indivíduo ou grupo familiar e, em algumas situações especiais, aproxima-se da palavra lar, como é o espírito indicativo da Lei Maria da Penha. A Constituição Brasileira apregoa taxativamente no artigo 5º, XI: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.”
O Código Penal brasileiro, em seu artigo 150, erigiu à categoria de crime a violação de domicílio: “Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências” e ampliou ainda o conceito para compreender qualquer compartimento habitado, aposento ocupado de habitação coletiva, compartimento não aberto ao público onde alguém exerce profissão ou atividade.
Percebe-se claramente que a tutela da legislação brasileira está voltada integralmente para a proteção à pessoa na sua esfera de liberdade doméstica e não para a defesa do imóvel. Assim, quando a Lei Maior rotulou a casa de asilo inviolável teve a intenção de erigi-la como um reduto intransponível, a não ser quando presentes as cláusulas permissivas de ingresso à moradia.
O ministro do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha, concedeu ordem de habeas corpus a um cidadão acusado pela prática do crime de tráfico de drogas, por ter sua casa invadida ilegalmente pelos policiais. O motivo determinante da ordem foi a falta de comprovação nos autos do consentimento do morador e que, pelas circunstâncias da prisão em flagrante, não foram encontrados elementos que justificassem as fundadas razões para o ingresso forçado.[1]
O acusado, abordado na rua por policiais, foi submetido a uma busca pessoal, porém nada em seu poder foi encontrado no momento em que se dirigia à sua residência. Não havia nenhuma suspeita de que realizava tráfico de drogas em sua moradia, circunstância que justificaria a entrada dos agentes da lei, apesar de ter sido apreendida no interior da residência 109g de maconha. O acesso à residência do acusado não contou com a ordem judicial autorizativa ou a concedida pelo morador, mesmo tendo os policiais confirmado que receberam essa última, e muito menos se tratava de um caso de flagrans crimen. Tanto é que o ministro determinou a nulidade das provas ilícitas por derivação, com a consequente revogação da prisão preventiva que fora decretada e o trancamento da ação penal.
Nossos tribunais vêm, reiteradamente, preservando o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, exigindo o cumprimento das cautelas recomendadas para o ingresso de policias sem mandado judicial às residências dos suspeitos. Assim é que, quando se tratar de denúncia anônima, aconselha-se que a autoridade policial realize as diligências necessárias e imprescindíveis, como, por exemplo, observar a movimentação atípica com entra e sai de determinada casa ou até mesmo a constatação flagrancial do comércio de drogas.
E, mesmo que a investigação policial conte com a anuência do morador, que excluiria a antijuridicidade da conduta, há a obrigatoriedade de se comprovar tal fato por meio de registro em vídeo e áudio e, sempre que possível, por escrito. Tudo para impedir que seja rompida a franquia constitucional garantidora da proteção doméstica.
Desta forma, de nenhuma valia a diligência policial que viole direitos fundamentais do cidadão. Muitas vezes a polícia, no afã de buscar uma eficiência punitiva, deixa de cumprir as regras básicas do Estado Democrático, oportunidade em que esbarra nas práticas já consolidadas e que fazem parte do arsenal protetivo da cidadania.