Educação & Cultura
Os 40 anos da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar
Sucessos e desafios do regime estabelecido pela ‘constituição dos oceanos’
“Os mares são abertos a todos os que tenham o treinamento, o tempo e o temperamento para explorá-los.”
Dos diários de um navegador
Este ano marca o 40º aniversário da adoção da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), também conhecida como Convenção de Montego Bay, assinada na cidade jamaicana de mesmo nome, em 10 de dezembro de 1982. Fruto de quase uma década de negociações diplomáticas, a Convenção de Montego Bay representou uma vitória do espírito de cooperação da comunidade internacional, mas que agora, na sua maturidade, enfrenta desafios consideráveis para a sua manutenção e evolução.
Chamada de “constituição dos oceanos”, um dos principais aspectos da CNUDM foi o fato de representar uma codificação unitária e coerente de uma das mais importantes e controvertidas áreas do direito internacional. Repare, cara leitora, que a unicidade da convenção é um princípio fundamental, ao ponto de que não são admitidas reservas ao seu texto. A Convenção de Montego Bay consagra, além disso, uma grande vitória da diplomacia, dado que ela foi capaz de encontrar uma solução de compromisso aceitável entre os mais diversos interesses que se voltam para os oceanos.
Como bem assevera o professor Yoshifumi Tanaka,[1] da Universidade de Copenhague, o regime estabelecido pela convenção opera um fino balanço entre três princípios fundamentais: o princípio da liberdade, o princípio da soberania e o princípio da herança comum da humanidade. A inter-relação entre esses princípios delimita as clivagens que se operam no âmbito da CNUDM entre os interesses das potências navais mercantis, dos Estados costeiros, daqueles sem acesso ao mar e da humanidade como um todo. Trata-se de um balanço complexo, cuja unidade estrutural da Convenção atesta para o sucesso diplomático da sua constituição.
Note, cara leitora, que a Convenção de Montego Bay ainda traz em seu bojo alguns resquícios da famosa disputa, travada em inícios do século 17, entre o holandês Hugo Grócio e o português Frei Serafim de Freitas. Grócio desenvolveu a sua tese clássica em seu parecer “Mare Liberum”, encomendado justamente para um caso de apresamento de uma nau portuguesa pelos holandeses na Ásia, para defender a liberdade de navegação e de exploração dos oceanos a todas as potências. Serafim de Freitas, ao rebater o parecer de Grócio, defendia a tese oposta, a do “Mare Clausum”, segundo a qual, por autoridade papal, o direito de exploração dos mares havia sido concedido exclusivamente a Portugal e Espanha, naquele momento unidas sob o manto da União Ibérica. The past is not dead.
Logo após a sua assinatura, e mesmo antes da sua entrada em vigor em 1994, a CNUDM rapidamente tornou-se o principal instrumento internacional na área do direito do mar, passando a ter os seus dispositivos reconhecidos como a codificação do costume internacional. Isso é de extrema importância porque, em sendo o costume internacional uma das fontes, se não a fonte primordial, do direito internacional público, os dispositivos da Convenção de Montego Bay, assim, seriam aplicáveis também a Estados que não são parte do acordo. Nesse sentido, por exemplo, foi a decisão da Corte Internacional de Justiça (CIJ) no caso Questões de Delimitação Marítima entre o Qatar e o Bahrein (Qatar v. Bahrein), de 2001, no qual apesar de somente uma das partes haver ratificado a convenção, ambas convieram de que ela representa, de fato, o direito internacional costumeiro.
O aspecto mais controverso da CNUDM foi a sua Parte XI, que estabelece o regime para os fundos marinhos para além das águas jurisdicionais dos Estados-Membros, espaço também conhecido como “a Área”. Durante as negociações, provou-se particularmente preocupante para os países desenvolvidos, que detém a tecnologia para a exploração da Área, a definição dos princípios jurídicos que orientariam as atividades de mineração nos fundos marinhos. Em 1994, chegou-se ao “Acordo Relativo à Parte XI da Convenção”, que abrandou um pouco o regime do texto original, mas reafirmou o princípio de que os recursos da Área são “herança comum da humanidade”, o que implica a divisão das riquezas extraídas entre todos os países, por meio da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos. O “Acordo Relativo à Parte XI da Convenção”, assim, abriu a via para um maior número de ratificações da CNUDM.
Extremamente importante, também, é o sistema de solução pacífica de controvérsias, estabelecido na Parte XV da Convenção. O sistema é de caráter compulsório para os Estados signatários, conforme o art. 286 da CNUDM. Já o art. 287 oferece opções de foro para a solução da controvérsia, que pode ser submetida ao Tribunal Internacional do Direito do Mar (TIDM), à CIJ ou a um tribunal arbitral estabelecido nos termos da Convenção.
O TIDM, em particular, vem desenvolvendo um trabalho consistente de aprimoramento e aplicação do direito do mar. O tribunal julgou seu primeiro caso em 1997, o “M/V Saiga”, sobre liberação imediata de uma embarcação apreendida. Já em 2015, o tribunal emitiu a sua primeira opinião consultiva, solicitada pela Comissão de Pesca Sub-Regional, organismo internacional composto pelos Estados de Cabo Verde, Gâmbia, Guiné, Guiné-Bissau, Mauritânia, Senegal e Serra Leoa. Até o momento, 29 casos já foram submetidos ao TIDM, que apresenta uma importância crescente no cenário internacional, em particular no que se refere a questões como mudanças climáticas, conservação da biodiversidade marinha e acesso a recursos pesqueiros.
O sucesso do regime estabelecido pela Convenção de Montego Bay nos seus 40 anos não se consolida sem desafios. Uma das principais questões a serem abordadas nos próximos anos diz respeito à crescente complexidade do direito do mar que, por sua especificidade e tecnicidade, tende a se consolidar quase como uma disciplina autônoma do direito internacional público. O risco é o de perda de coerência e organicidade com outros ramos dessa esfera jurídica, em particular com o direito ambiental internacional, com o direito internacional econômico e com a proteção internacional dos direitos humanos. A nova fronteira econômico-tecnológica dos oceanos apresentará, em escala crescente, uma pervasividade do direito do mar, que deverá se relacionar com outras áreas do direito internacional sem perder o seu objeto e sem entrar em contradição com elas. No good deed goes unpunished.