Judiciário
Aposentadoria de Celso de Mello gera expectativa sobre equilíbrio de forças e recados pelo decano
Prestes a deixar o STF, ministro tem destacado, em suas decisões, a defesa da democracia; Líder na Corte, ele costuma ser consultado por colegas em momentos de crise
A notícia recente de que o decano do STF (Supremo Tribunal Federal), ministro Celso de Mello, havia sido internado e poderia ter que passar por uma cirurgia alimentou especulações de que sua aposentadoria, prevista para o início de novembro, fosse antecipada.
A saída de Celso de Mello, que completa 75 anos no dia 1º de novembro, promete trazer barulho à corte, abrindo o caminho para a primeira indicação de Jair Bolsonaro para o STF e gerando mudanças no equilíbrio de forças sobre temas polêmicos, como o pedido de suspeição contra o ex-juiz da Lava Jato Sergio Moro apresentado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Por conta da pandemia, a discussão pode entrar na pauta da Segunda Turma do STF só depois da saída de Mello, e então os votos de Gilmar Mendes e de Ricardo Lewandowski já garantiriam uma vitória da defesa de Lula.
A proximidade da aposentadoria, no entanto, fez com que Celso de Mello se preocupasse em deixar sua marca na reta final. Ele renunciou ao comando da segunda Turma do Supremo neste ano para se dedicar exclusivamente aos processos que relataria em 2020. Culminou de cair com ele o inquérito que apura se Bolsonaro interveio para fins pessoais na Polícia Federal, conforme acusou o ex-ministro Sergio Moro. O magistrado tem dado recados a cada decisão. E é assim que quer deixar a Corte: reconhecido por sua trajetória, mas sobretudo por suas ideias.
Na apuração sobre Bolsonaro é onde o ministro tem mandado a maioria dos recados. É a mais importante que tem hoje em suas mãos – e pela qual, inclusive, é alvo de ataques de apoiadores do presidente e já esteve na mira do próprio.
Na realidade, os estatutos do poder, numa República fundada em bases democráticas, não podem privilegiar o mistério, porque a supressão do regime visível de governo – que tem na transparência a condição de legitimidade de seus próprios atos – sempre coincide com os tempos sombrios em que declinam as liberdades e transgridem-se os direitos dos cidadãos.Decisão de 5 de maio pela quebra do sigilo das investigações sobre Bolsonaro.
Ao derrubar o sigilo do fatídico vídeo da reunião interministerial do dia 22 de abril – aquela em que o ex-chefe do Ministério da Educação Abraham Weintraub chamou os integrantes do STF de “vagabundos” –, Celso de Mello se viu vítima de agressões e ameaças de bolsonaristas. O clima de tensão, que já estava elevado, acirrou-se ainda mais – também por conta das decisões da Corte contrárias ao Executivo sobre coronavírus e do ministro Alexandre de Moraes, em especial que proibiu a nomeação do delegado Alexandre Ramagem para o comando da Polícia Federal.
Bolsonaro já havia tecido críticas públicas a Celso de Mello, sem o mencionar nominalmente, em outras ocasiões. Em 24 de maio, porém, publicou em suas redes sociais um trecho da Lei de Abuso de Autoridade, algo visto como um recado ao magistrado. Também participou naquele domingo de uma manifestação em Brasília em que havia cartazes com críticas à Suprema Corte.
A tentativa do presidente àquela altura era buscar o descrédito do decano do STF de forma a levantar sua suspeição para julgar a ação contra si no STF.
Uma semana depois, no privado, o ministro desabafou com conhecidos, mas a mensagem acabou se tornando pública. Mais uma vez, Celso de Mello marcava sua posição e, como muitos o descrevem, demonstrou sua “coerência”.
″É preciso resistir à destruição da ordem democrática para evitar o que ocorreu na República de Weimar quando Hitler, após eleito por voto popular e posteriormente nomeado pelo Presidente von Hindenburg, em 30/01/1933, como chanceler (primeiro-ministro) da Alemanha, não hesitou em romper e em nulificar a progressista, democrática e inovadora constituição de Weimar, de 11/08/1919, impondo ao país um sistema totalitário de poder viabilizado pela edição, em março de 1933, da Lei (nazista) de Concessão de Plenos Poderes (ou Lei Habilitante) que lhe permitiu legislar sem a intervenção do Parlamento germânico!”, escreveu o ministro no texto que enviou a conhecidos em 31 de maio, um domingo.
Amigos que costumam receber análises de Celso de Mello afirmaram em condição de anonimato ao HuffPost que faz parte do estilo dele o uso de muitas exclamações e caixas altas para destacar os termos nas mensagens de texto por celular. Foi assim que chegou a nota naquele dia.
Nela, em mais um trecho, estava escrito, que a “INTERVENÇÃO MILITAR, como pretendida por bolsonaristas e outras lideranças autocráticas que desprezam a liberdade e odeiam a democracia, NADA MAIS SIGNIFICA, na NOVILÍNGUA bolsonarista, SENÃO A INSTAURAÇÃO, no Brasil, DE UMA DESPREZÍVEL E ABJETA DITADURA MILITAR !!!!”.
INTERVENÇÃO MILITAR, como pretendida por bolsonaristas e outras lideranças autocráticas que desprezam a liberdade e odeiam a democracia, NADA MAIS SIGNIFICA, na NOVILÍNGUA bolsonarista, SENÃO A INSTAURAÇÃO , no Brasil, DE UMA DESPREZÍVEL E ABJETA DITADURA MILITAR !!!!.Mensagem enviada a conhecidos em 31 de maio
Outro motivo de ataques ao ministro – mas que teve em troca uma resposta –, teve início em 22 de maio, quando o decano, a partir de um pedido de partidos de oposição para apreender o celular de Jair Bolsonaro e do filho Carlos, solicitou uma manifestação da PGR (Procuradoria-Geral da República).
Horas depois, o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência, general Augusto Heleno, divulgou uma nota interpretada no mundo político e jurídico como uma “ameaça”.
“O pedido de apreensão do celular do presidente da República é inconcebível e, até certo ponto, inacreditável. Caso se efetivasse, seria uma afronta à autoridade máxima do Poder Executivo e uma interferência inadmissível de outro Poder na privacidade do Presidente da República e na segurança institucional do País. O gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República alerta as autoridades constituídas que tal atitude é uma evidente tentativa de comprometer a harmonia entre os poderes e poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”, escreveu Heleno.
Uma reportagem da revista Piauí publicada neste mês afirma que foi Heleno, no entanto, que conteve Bolsonaro naquele dia. O presidente, segundo a revista, teria avisado aos militares palacianos que iria intervir no STF após a decisão de Celso de Mello.
Em 1º de julho, o decano do STF negou o pedido dos partidos políticos – aos quais disse que não cabe atuar no processo judicial. Deixou claro, porém, que o presidente e seus ministros não estão acima da lei e não podem descumprir uma ordem judicial.
O pronunciamento imputado ao mencionado sujeito passivo da presente ‘notitia criminis’ [general Augusto Heleno], hoje no desempenho de cargo temporário de natureza civil, veiculou declaração impregnada de insólito (e inadmissível) conteúdo admonitório claramente infringente do princípio da separação de poderes. Tudo isso é inaceitável, porque o respeito indeclinável à Constituição e às leis da República representa limite inultrapassável a que se devem submeter os agentes do Estado, qualquer que seja o estamento a que pertençam, eis que, no contexto do constitucionalismo democrático e republicano, ninguém – absolutamente ninguém – está acima da autoridade da Lei Fundamental do Estado.’Recado’ dado por Celso de Mello em decisão de 1º de julho em que nega apreensão de celular de Bolsonaro.
O decano dos negritos e conselhos
Celso de Mello chegou ao STF em 1989, indicado pelo ex-presidente José Sarney. Tido como um dos maiores constitucionalistas do País, o ministro sairá do STF em novembro deixando vários legados. O mais fácil de reconhecer deles são os longos votos que, como o próprio decano gosta de dizer, funcionam não só para os recados, mas para que nenhum dos julgados tenha dúvida sobre as decisões dele.
Não é preciso muita atenção para perceber que as decisões do ministro são recheadas de negritos, itálicos e sublinhados. De acordo assessores dele têm um “manual” de como usar as formatações para sobressaltar determinados elementos, de acordo com a intenção do ministro em cada decisão.
Há 13 anos é ele que, como decano, ocupa a cadeira mais próxima ao procurador-geral. Ele se tornou o ministro mais velho do Supremo com a aposentadoria do ex-ministro Sepúlveda Pertence, em agosto de 2007. Na época, o tribunal julgava o mensalão, o que deu a Celso de Mello um outro peso.
Depois de novembro, quem vai passar a ocupar o lugar é o ministro Marco Aurélio Mello, que completa 75 anos em julho de 2021 – toda vez que um ministro deixa o Supremo ou há troca no comando da Corte, há uma dança das cadeiras, em ajustes conforme a antiguidade do magistrado. O próximo a ficar próximo ao procurador-geral ou seu representante nas sessões é Gilmar Mendes, que só se aposenta compulsoriamente, segundo as regras atuais, daqui a 10 anos – o ministro completa 65 anos em dezembro de 2020.
São 13 anos no mesmo lugar, e todo esse tempo sendo considerado pelos colegas como um líder não somente por ser o decano, mas também por seu temperamento. Quem convive com o magistrado o descreve como “calmo”, “apaziguador”, uma pessoa que tenta a “convergência com os demais”. Em vários momentos, o ministro é “buscado” por colegas para “conselhos, conversas e desabafos”.
É frequentemente lembrado como da ala garantista – apesar de suas decisões rígidas –, defensor de que o acusado possa recorrer em liberdade até o último recurso judicial.
Um de seus melhores e mais antigos amigos, o ex-ministro do STM (Superior Tribunal Militar) Flavio Bierrenbach – eles se conheceram em 1975 –, afirmou ao HuffPost que “o ministro Celso de Mello está destinado a integrar a restrita galeria dos maiores ministros do Supremo Tribunal Federal, em todos os tempos”. Para ele, o amigo posará ao lado de Pedro Lessa e de Paulo Brossard. “Os três grandes”, classificou.
Há quem diga que Celso de Mello tem “aversão” a militares. Bierrenbach, que conviveu com o ministro na época da ditadura, não concorda com essa posição e diz que se trata, sim, de uma “aversão às ditaduras, civis ou militares”. “Não compartilho da equivocada opinião de que o ministro Celso de Mello tenha qualquer sentimento negativo em relação aos militares. Ambos temos aversão às ditaduras, civis ou militares”, disse o advogado. “A democracia, quando vai embora, não costuma dizer adeus. Quem já passou por isso teme, sempre.”
Pelo que o ministro já demonstrou em seus votos até agora, interlocutores no Supremo e outras pessoas próximas a Celso de Mello destacaram ao HuffPost que, até o fim de seu mandato, ele deve manter a linha de raciocínio de importantes decisões que proferiu até o momento.
Há algumas questões gerais que ele tem sempre sublinhado: as liberdades, a de imprensa, inclusive; a importância da transparência e a necessidade de defesa da democracia.
Veja abaixo trechos de algumas das decisões recentes do ministro.
De 5 de maio, da quebra de sigilo do inquérito que investiga o presidente
A ampla difusão da informação, o exercício irrestrito de criticar e a possibilidade de formular denúncias contra o Poder Público representam expressões essenciais dessa liberdade fundamental, cuja prática não pode ser comprometida por atos criminosos de violência política (ou de qualquer outra natureza), por interdições censórias ou por outros artifícios estatais, como a arbitrária imposição de regime de sigilo, utilizados para coibi-la, pois – cabe sempre insistir – esse direito básico, inerente às formações sociais livres, não constitui, ao contrário do que supõem mentes autoritárias, concessão estatal, mas representa, sim, um valor inestimável e insuprimível da cidadania, que tem o direito de receber informações dos meios de comunicação social, a quem se reconhece, igualmente, o direito de buscar informações, de expressar opiniões e de divulgá-las sem qualquer restrição, em clima de plena liberdade.
Ninguém ignora que, no contexto de uma sociedade democrática, mostra-se intolerável a repressão estatal ao pensamento, ainda mais quando a busca de informações, a circulação de notícias e a crítica jornalística revelem-se inspiradas pelo interesse público e decorram da prática legítima de uma liberdade fundamental de extração eminentemente constitucional.
É importante salientar, neste ponto, que o modelo de governo instaurado em nosso País, em 1964, sob a égide de um regime militar, mostrou-se fortemente estimulado pelo “perigoso fascínio do absoluto”, (…) pois privilegiou e cultivou o sigilo, transformando-o em “praxis” governamental institucionalizada, ofendendo, frontalmente, o princípio democrático.