ECONOMIA
O oásis do funcionalismo público brasileiro na crise
Milhões de desempregados no setor privado; emprego garantido e zero centavo a menos no setor público
No deserto, convivendo com a escassez de água e comida, o oásis é um refúgio temporário para viajantes em travessias difíceis. Não sendo propriedade de alguém, oferece algum conforto para todos que passam pelo mesmo difícil caminho.
Não é o caso do sentido aqui empregado, já que no mesmo território, e no mesmo caminho, o abrigo só serve para poucos.
No Brasil, antes da pandemia, de acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) divulgada em março, tínhamos no setor privado aproximadamente 33,6 milhões de pessoas com carteira assinada e 38 milhões de trabalhadores informais. Estes incluem desde os trabalhadores sem carteira assinada (11,6 milhões) até trabalhadores por conta própria (24,5 milhões).
Os grupos acima, quando somados à força de trabalho desocupada no mesmo período, equivalente a 12,3 milhões de desempregados, significam 84 milhões de brasileiros que lutam no dia a dia para procurar ou manter seus empregos e sua renda (veja todos os números aqui).
Nesse sentido, enfrentar a crise é uma batalha que os torna semelhantes como brasileiros.
No universo de trabalhadores brasileiros ainda faltam os trabalhadores do setor público, também chamados de servidores públicos pela sua natureza universal de servir ao público (compreendida, corretamente, como uma nobre atividade desde o Império Romano). Somadas as diferentes esferas de governo, civis e militares, os servidores públicos no Brasil são aproximadamente 11,4 milhões.
A crise econômica é global. E, como em vários outros países, no Brasil milhões de trabalhadores já perderam seus empregos e salários. Atualmente, mais da metade dos brasileiros não tem trabalho.
Governos, incluindo o brasileiro, adotam programas bilionários (que serão pagos com os impostos de todos contribuintes) para tentar mitigar o sofrimento dos que perdem sua renda, integralmente ou parcialmente, da noite para o dia.
Brasileiros, todos, navegam na mesma crise econômica, correto? Não. Nem todos da mesma forma. Para uma minoria, os trabalhadores do setor público, os empregos são garantidos por lei. E os salários, obviamente, são garantidos pelos impostos pagos pelos trabalhadores do setor privado.
Austeridade portuguesa e grega
Além do estatuto da estabilidade no emprego, sequer é possível admitir algum pequeno ajuste temporário de salários no serviço público.
No fim de junho, o STF negou a possibilidade de reduções temporárias de salários condicionadas à redução de jornadas de trabalho (no julgamento de matéria relativa à Lei de Responsabilidade Fiscal), algo já feito em larga escala pelos trabalhadores do setor privado – e, ainda assim, só para aqueles que tiverem a sorte de manter seus empregos em meio à crise.
Muitos países procuram reforçar sua identidade e propósito de união em momentos mais difíceis, como guerras, epidemias, desastres naturais ou crises econômicas. Em todas essas situações, a estabilidade da sociedade, em meio à exigência de maior sacrifício pessoal, passa também pela percepção da maioria de que o sacrifício temporário é distribuído de maneira justa e solidária.
Tratamento igual entre iguais, sacrifícios maiores para aqueles que podem contribuir mais em períodos excepcionais. Tudo em nome de uma união necessária para a travessia de um caminho difícil. Um teste, que pode sinalizar o quão próspero pode ser o futuro de uma nação.
Para não voltarmos muito longe no tempo, como nos períodos das grandes guerras mundiais – que moldaram o sentimento de união de países como o Japão, Alemanha, Itália, França, Inglaterra, Estados Unidos e tantos outros —, fiquemos com algumas crises econômicas mais recentes.
Em Portugal, depois da crise de 2008/2009, o déficit nominal do setor público atingiu o recorde de 11% do PIB em 2010, com um crescimento negativo do PIB de 3% no mesmo ano. Vale lembrar que as atuais projeções para o déficit nominal do Brasil em 2020 já estão em 16% do PIB.
O programa de ajuste português, que anos mais a frente permitiu aquele país ser saudado como um exemplo de recuperação econômica (e com participação conjunta de partidos de direita, centro e esquerda), procurou distribuir esforços entre o setor privado e o setor público.
Na aprovação da primeira fase do programa, em 2010, ao incluir a redução e congelamento futuro dos salários no serviço público, o primeiro-ministro de Portugal da época, José Sócrates, ressaltou a importância de um algum esforço solidário do setor público, em meio a uma grande onda de demissões e reduções salariais no setor privado.
Em 2011, em mais uma onda de ajustes, o governo português extinguiu o 13º e o 14º salários para o funcionalismo público e aposentados portugueses que recebiam mais de mil euros. (Leia tudo sobre o ajuste de Portugal aqui).
Na Grécia, a crise de 2008/2009 levou o déficit nominal a patamares ainda mais altos: acima de 13% em 2013, com uma queda do PIB que havia chegado a 10% no ano anterior.
O ajuste grego também envolveu partidos de diferentes orientações ideológicas, incluindo o Syriza, partido radical de esquerda e antigo crítico de medidas de ajuste fiscal.
O processo de ajuste grego foi ainda mais longo e sofrido do que o de Portugal, mas o país voltou a ter superávit nominal entre 2016 e 2019, a dívida pública voltou a ficar estável — ainda que em patamar extremamente elevado — e o crescimento econômico também retornou (antes da Covid-19), ainda que a taxas modestas.
Na Grécia, até pelo peso maior do setor público na economia local, os cortes de salários e benefícios foram ainda maiores do que em Portugal. Entre 2010 e 2012 foram cinco rodadas de ajustes, que na soma significaram mais de 30% de reduções salariais no funcionalismo público, além da revisão de outros benefícios.
Em cada uma das rodadas de ajuste na Grécia, mesmo com diferentes coalizações políticas, a justificativa de reduções salariais no setor público foi a mesma de Portugal: o esforço precisava ser de todos, num país onde a taxa de desemprego havia saído de 7,5% em 2008 para quase 30% no início da década passada.
Salários no setor público brasileiro
Segundo estudo do Banco Mundial divulgado em conjunto com o Ministério da Economia no ano passado, intitulado “Gestão de pessoas e Folha de Pagamentos no Setor Público Brasileiro – o que dizem os dados?“, servidores federais no Brasil ganham 96% a mais do que recebem trabalhadores da iniciativa privada que exercem funções semelhantes.
O número acima, chamado de “prêmio salarial”, é o mais alto na amostra de 53 países pesquisados pelo Banco Mundial, como mostra o gráfico abaixo.
Prêmio Salarial do Setor Público em Relação ao Setor Privado por País
No caso dos estados, aquele número é de 36% mais elevado do que a média do setor privado. Nos municípios o prêmio salarial é equivalente ao do setor privado.
O mesmo estudo mostrou que, em 2019, 44% dos servidores do executivo federal, o poder federal com a menor média salarial, recebiam mais de R$ 10 mil reais por mês. Essa remuneração coloca esses servidores nos 5% superiores da distribuição de rendimentos domiciliares per capita dos brasileiros calculada pelo IBGE para o ano de 2019.
Como essa distribuição foi verificada antes da atual crise econômica, a tendência é piorar a performance relativa dos rendimentos do setor privado.
O teto salarial do setor público brasileiro foi reajustado no ano passado em 16,3%, aproximadamente quatro vezes a inflação de 2019, de 4,31%. O valor, R$ 39,2 mil, coloca esse teto entre o 0,5% superior do rendimento domiciliar per capita.
Dado que em 2019 a metade mais pobre da população viveu com uma renda média de R$ 850 por mês, R$ 39,2 mil equivalem a 46 vezes mais do que ganharam em média a metade dos brasileiros.
O teto salarial já seria uma belíssima remuneração, mas há milhares de servidores no Executivo, Legislativo e Judiciário, na União e nos estados que recebem muito além desse valor. Perde-se a conta de remunerações acima de 60-70-80 mil reais por mês infladas por todos os tipos de adicionais e auxílios — os famosos “penduricalhos” — que fogem de uma definição legal mais rigorosa para o conceito de teto remuneratório. Outra pendência esquecida nas gavetas do governo e do Congresso Nacional.
As distorções dentro da própria máquina garantem privilégios ainda mais imorais
É preciso ser dito também que, na outra ponta da distribuição salarial do setor público, há milhões de funcionários públicos em estados e, principalmente municípios, com rendimentos baixos ou comparáveis aos praticados no mercado.
Há enormes desigualdades no tratamento dentro do próprio setor público. E são tratamentos desiguais no sentido de privilegiar exatamente quem ganha mais.
Alguns estados atrasam suas folhas de pagamento pelas suas crises financeiras, agora agravadas com a pandemia da Covid-19. No entanto, há um agravante: quando a receita de todo o setor público estadual cai de forma inesperada, como em 2020, os poderes executivos estaduais são proibidos de pedir que o legislativo, o judiciário e o Ministério Público estaduais compartilhem o “sacrifício”.
Os executivos estaduais acabam tendo de resolver sozinhos a crise, sem dividi-la com os outros poderes e órgãos independentes (como o Ministério Público), onde exatamente se encontram os salários mais altos.
Os poderes executivos estaduais estão proibidos de tentar reduzir os repasses da execução orçamentária (os chamados duodécimos) para os outros poderes quando há frustração de receitas. Mais uma decisão recente do STF, junto com a que proibiu a redução salarial no setor público associada à redução de jornada de trabalho.
Vejamos apenas um exemplo das muitas distorções que se acumulam no setor público brasileiro, seja pela legislação vigente ou por decisões do STF já mencionadas.
No Rio Grande do Sul, hoje, uma professora do ensino fundamental com doutorado que receba uma remuneração pouco superior a R$ 3.000 receberá a totalidade do seu salário com mais de 30 dias de atraso. No mesmo estado, no mesmo setor público, um desembargador que tenha uma remuneração total mensal de R$ 60.000 (20 vezes maior) receberá a integralidade de seus vencimentos rigorosamente em dia.
A constatação é de que a atual estrutura de remunerações no setor público brasileiro, comparativamente ao setor privado, não é só desconectada em relação ao que acontece em outros países, mas é também parte agravante da descomunal desigualdade de renda que vigora no País.
Voltando à crise atual no Brasil
No momento em que o mundo volta a discutir o compartilhamento de esforços entre setor privado e público no enfrentamento de uma crise, isso ainda parece ser uma barreira intransponível no Brasil. E temos exemplos recentes muito próximos do país indo em outra direção.
A Colômbia aprovou em abril deste ano um imposto adicional transitório para servidores públicos que ganham acima de 10 milhões de pesos (o equivalente a 10 mil reais no Brasil).
No Chile, o parlamento discute de maneira avançada a extensão de reduções salariais temporárias no serviço público, depois do salário de parlamentares e outras autoridades públicas terem sido reduzidos em até 50% ao final de 2019.
No Uruguai, depois de cortar 20% do seu próprio salário e de outros dirigentes públicos, o presidente Lacalle Pou avançou na aprovação de um desconto temporário entre 5% e 20% para servidores com remuneração mensal superior a 80.000 pesos (o equivalente a R$ 9.000).
No Brasil, qualquer iniciativa recente de propor alguma redução temporária de salários, seja pelo Ministro da Economia Paulo Guedes, pelo presidente da Câmara Rodrigo Maia ou alguns outros poucos parlamentares, não passa de uma primeira manifestação de intenções.
Além da enorme força das corporações do setor público, aparentemente o próprio presidente da República não enxerga prioridade neste esforço. O máximo que se fez até agora, após forte trabalho de convencimento do ministro Paulo Guedes, foi congelar os atuais salários do serviço público de apenas alguns categorias até o final de 2021.
Mesmo nesse esforço louvável, há muitas dúvidas sobre como será possível controlar aumentos disfarçados, como promoções de carreiras e concessões de auxílios diversos.
Para concluir
Toda essa bonança é bancado pelos impostos pagos por quem trabalha e produz riqueza — e que, consequentemente, ganha bem menos.
E que agora está desempregado.
Enquanto a alta casta do funcionalismo ganha entre R$ 10.000 e R$ 60.000 por mês (em alguns casos, ganham mais de R$ 100 mil), o trabalhador do setor privado, que é quem produz e é tributado para sustentar toda essa farra — não houvesse trabalhador do setor privado, não haveria salário para funcionalismo público —, está com uma renda média de R$ 2.300 por mês.
A injustiça causada pelo estado não poderia ser mais fragorosa.
Quando terminarmos o ano de 2020, deveremos ter a maior queda da história do PIB brasileiro (algo entre menos 7% e menos 9% pelas últimas estimativas), alguns novos milhões de desempregados e muitos outros milhões de empregados do setor privado com salários muito abaixo do início da atual crise.
Será uma travessia muito difícil até o Brasil voltar a crescer e começar a recuperar os empregos perdidos nessa crise. Para aqueles que têm a felicidade de mantê-los por lei, um verdadeiro oásis no deserto, seria no mínimo um gesto de solidariedade e união compartilhar uma pequena parte do sacrifício. Uma demonstração de que a crise, assim como o país, é de todos.
Mises Brasil