ECONOMIA
A proteção internacional dos consumidores
O futuro do Direito Internacional Privado
O lema do fundador da Academia de Haia de Direito Internacional Privado, Tobias Asser, era “paciência e coragem”. Realmente parece que lema resume o lento, mas forte progresso da proteção internacional dos consumidores no mundo. Se a economia se tornou global, o consumidor foi o personagem ou o “ator” esquecido da globalização nos primeiros tempos.[1]
As regras e os esforços mundiais só se concentram nas empresas, nas transnacionais, nos Estados e nos fluxos globais de produção, comércio e financeiro. Hoje, o consumidor ganha espaço no Direito Internacional Privado e tende a ser um personagem ainda mais principal, de forma a criar confiança neste mercado global.
Três fenômenos foram decisivos para esta mudança:
a) O consumidor passou a ser personagem principal da economia de muitos países – no Brasil, por exemplo, 65,5% do PIB vem do consumo das famílias[2]-, e com a pujança das sociedades de consumo nacionais produtos e serviços estrangeiros passaram a ser oferecidos no dia-a-dia das pessoas aumentando a concorrência, incentivando as cadeias globais de fornecimento e a procura por qualidade.[3]
b) O turismo internacional massificou-se e atraiu cada vez mais consumidores domiciliados nos países emergentes, democratizando-se, chegando a atingir em 2019 – antes da Covid-19 – a marca histórica de 1,5 bilhões de turistas internacionais,[4] sendo que agora os destinos turísticos escolhidos diversificaram-se e o turismo internacional passou a voltar-se para países emergentes e em desenvolvimento (46,7% dos destinos turísticos internacionais não eram países tradicionais do turismo do século XX).[5]
c) a evolução da tecnologia popularizou o comércio eletrônico – por exemplo, no Brasil, no primeiro semestre de 2020 com o isolamento social da Covid-19, tivemos 146,4 milhões de pedidos no comércio eletrônico –,[6] e como o mundo digital não conhece fronteiras nacionais, os consumidores passaram a usar plataformas digitais internacionais e o comércio eletrônico internacional popularizou-se, levando consigo também os dados pessoais destes consumidores.
Em interessante caso que envolve o direito de imagem de pessoa domiciliada no Brasil, e que se não é de consumo, bem demonstra, que o comércio de dados, imagens e informações não encontra fronteiras, mas que a proteção das pessoas na globalização deve ser garantida, o e. STJ afirmou: “9. A comunicação global via computadores pulverizou as fronteiras territoriais e criou um novo mecanismo de comunicação humana, porém não subverteu a possibilidade e a credibilidade da aplicação da lei baseada nas fronteiras geográficas, motivo pelo qual a inexistência de legislação internacional que regulamente a jurisdição no ciberespaço abre a possibilidade de admissão da jurisdição do domicílio dos usuários da internet para a análise e processamento de demandas envolvendo eventuais condutas indevidas realizadas no espaço virtual. 10. Com o desenvolvimento da tecnologia, passa a existir um novo conceito de privacidade, sendo o consentimento do interessado o ponto de referência de todo o sistema de tutela da privacidade, direito que toda pessoa tem de dispor com exclusividade sobre as próprias informações, nelas incluindo o direito à imagem.” (REsp 1168547/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão,j. 11/05/2010, DJe 07/02/2011).
O Ramo Brasileiro da ILA propôs, em 2008, a criação de um comitê de proteção internacional dos consumidores. A International Law Association, uma instituição de mais de 100 anos, aceitou a ideia de um Direito Internacional mais protetivo dos consumidores, criou e mantém desde então um comitê especializado em proteção dos consumidores, seguindo uma tendência mundial.
Nas Américas, depois da proposta na OEA de uma CIDIP VII de proteção dos consumidores (2004-2010), a América Latina começou a legislar sobre proteção dos consumidores e hoje Argentina, Panamá e República Dominicana já tem regras especiais para a proteção dos consumidores em suas leis de conflitos de leis.[7] No Mercosul, o Acordo Mercosul sobre lei aplicável aos contratos com consumidores, de 2017, é um grande avanço e já pode ser usado ex vi Art. 7° do CDC.[8]
No Brasil, o CPC (Art. 22,II) e o processo de atualização do Código de Defesa do Consumidor (Projetos de Lei 3514,2015 e 3515,2015) incluíram várias regras de conflitos de leis, seguindo o mandamento constitucional do Art. 5,XXXII da CF/1988. Na Europa, a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia assegura um nível elevado de proteção dos consumidores consubstanciado em normas especiais sobre proteção do consumidor, materiais, de Direito Internacional Privado e de Processo Civil Internacional.[9]
Na Ásia, Japão e China também distinguem as relações de consumo e tem normas especiais de conflito de leis para contratos entre fornecedores e consumidores. Hoje, a Conferência de Haia (HCCH) discute a proteção dos turistas internacionais, e projeta a sua proteção como consumidores.
Em 2015, a ONU atualizou as Diretrizes de Proteção do Consumidor (1985), apontando que os desafios da proteção do consumidor no mundo globalizado exigem atualização das regras nacionais e cooperação internacional. O Comitê da ILA faz parte do Intergovernment Group of Experts da UNCTAD e de seus grupos de trabalho e podemos afirmar: a dimensão internacional da proteção dos consumidores é um dos pilares do mundo do futuro!
“Direito Internacional: Percursos e Perspectivas” é uma série de artigos quinzenais resultante de uma parceria entre o JOTA e o Ramo Brasileiro da International Law Association (www.ilabrasil.org.br), a mais antiga e tradicional agremiação dedicada ao Direito Internacional e às Relações Internacionais em atuação no país. A série reúne grandes nomes do internacionalismo brasileiro. A International Law Association foi fundada em uma conferência internacional em Bruxelas, em 1873. Hoje, está presente em mais de 60 países e regiões. O Ramo Brasileiro da ILA, denominado ILA Brasil, foi fundado em 1950 pelo embaixador Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva.
[1] Também é verdade no Mercosul, veja ARRIGHI, Jean Michel, La Protección de los Consumidores y el Mercosul, in Revista Direito do Consumidor, n. 2 (1992), São Paulo, p. 126.
[2] Veja: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-03/consumo-das-familias-e-grande-motor-da-economia-diz-ibge>. Acesso 17 de julho de 2020.
[3] Veja MARQUES, Claudia Lima. A Proteção do Consumidor de Produtos e Serviços Estrangeiros no Brasil: primeiras observações sobre os contratos à distância no comércio eletrônico. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, v. 21, p. 65-99, 2002. Veja recente decisão do e. STJ sobre produto importado comprado em supermercado: “ 5. Quando campanhas publicitárias massivas e altamente sofisticadas são veiculadas de maneira a estimular sentimento, percepção e, correlatamente, expectativas legítimas dos consumidores, de um produto ou serviço único, que dilui e supera fronteiras nacionais – tornando irrelevante o país em que a operação negocial venha a se realizar -, justifica-se afastar a formalidade burocrática do nome do fornecedor ocasionalmente estampado na Nota Fiscal ou no contrato. Desarrazoado pretender que o consumidor faça distinção entre Sony Brasil Ltda. e Sony America Inc. Para qualquer adquirente, o produto é simplesmente Sony, é oferecido como Sony e comprado como Sony.” (REsp 1709539/MG, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 05/06/2018, DJe 05/12/2018)
[4] UNWTO. World Tourism Barometer – v. 18. January 2020. United Nations World Tourism Organization. Disponível em: <https://webunwto.s3.eu-west-1.amazonaws.com/s3fs-public/2020-01/UNWTO_Barom 20_01_January_excerpt_0.pdf>. Acesso em: 17 de agosto de 2020.
[5] Em 2016, por exemplo, a China recebeu 59,27 milhões de turistas – mais do que a Itália no mesmo período (52,37 milhões). A Tailândia recebeu 32,53 milhões de turistas em 2016, quase os mesmos números da Alemanha (35,55 milhões) e do Reino Unido (35,81 milhões), que, por sua vez, recebem aproximadamente o mesmo valor que o México (35,08 milhões). Por sua vez, a Índia recebeu 14,57 milhões de turistas em 2016, mais do que Portugal (11,22 milhões). O Brasil também recebeu muitos turistas (6,58 milhões em 2016) – quase o mesmo número que a Bélgica (7,48 milhões) no mesmo período (UNWTO, 2017). Veja MARQUES, Claudia Lima; SQUEFF, Tatiana. Novos caminhos do turismo internacional: perspectivas para a proteção do consumidor turista no âmbito da Conferência da Haia, in MAIOLINO, Isabela; TIMM, Luciano. Direito do Consumidor, Brasília: Ed. Singular, 2019, p. 108-133, p. 112.
[6] Veja: <https://mercadoeconsumo.com.br/2020/05/13/e-commerce-fatura-r-60-bilhoes-impulsionado-por-autosservico/>. Acesso 27 de agosto de 2020.
[7] MARQUES, Claudia Lima. International Protection of Consumers as a Global or a Regional Policy. Journal of Consumer Policy (Dordrecht Online), v. 43, p. 57-75, 2020, p. 57 e seg.
[8] MARQUES, Claudia Lima. Nota ao Acordo do Mercosul sobre direito aplicável em matéria de contratos internacionais de consumo, in Revista de Direito do Consumidor, vol. 118, ano 27. P. 561-569, São Paulo: Ed. RT, jul.-ago. 2018, p. 561 ss..
[9] Artigos 4(2)(f), 12, 114(3) e 169 TFEU e artigo 38 da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia e commentários feitos por REICH, Norbert , Micklitz, Hans.-W., Rott, Peter, & Tonner, Klaus (2014). European Consumer Law. Intersentia: Cambridge, p. 290 e seg.