Internacional
“Fomos lembrados de que somos mortais”, afirma Nobel de Literatura
Para a escritora polonesa Olga Tokarczuk, a pandemia mudou a atitude das pessoas perante a vida. Em entrevista à DW, ela reflete sobre o impacto da covid-19 no mundo
Quase um ano após receber o Prêmio Nobel de Literatura, a escritora polonesa Olga Tokarczuk vive num mundo dificilmente imaginado naquela época: pandemia, isolamento, incerteza – palavras que hoje fazem parte do cotidiano em mundo todo.
Para muitos, os últimos acontecimentos deram uma impressão de freada no tempo, mas Tokarczuk enxerga além disso. Formada em psicologia, a autora conversou com a DW sobre o atual momento que vivemos, sobre como o novo coronavírus mudou nossa atitude perante a vida e sobre sua missão como escritora.
DW: Olga Tokarczuk, sua vida ganhou impulso depois do Prêmio Nobel. Teria o coronavírus dado uma certa acalmada neste ritmo?
Olga Tokarczuk: Não tenho essa impressão. Criei uma fundação, que iniciou suas operações no início deste ano. Em fevereiro, estive em Ahlbeck o mês inteiro. Depois disso, eu realmente voltei para um mundo um pouco diferente, mas do meu ponto de vista, ainda era um mundo muito intenso. Escrevi, trabalhei na fundação, respondi solicitações, então não tenho a impressão de que meu mundo desacelerou.
Muitas pessoas tiveram uma percepção diferente do coronavírus: não apenas como uma desaceleração, mas como um verdadeiro freio. Provavelmente ainda precisaremos de tempo para avaliar corretamente o que realmente aconteceu. Você já tem alguma ideia do que a pandemia fez a nós, humanos, e às nossas sociedades?
Eu vejo muitos pontos positivos aqui. Sou formada em psicologia e não vejo o mundo da perspectiva da economia ou da sociologia, mas sim da perspectiva da psicologia. Logicamente, a pandemia produziu um claro aumento no nível de intranquilidade. O medo do futuro cresceu e, para as gerações mais novas, todo o processo de amadurecimento foi interrompido, pois as crianças não puderam mais se socializar nessa idade tão importante.
Mas, apesar de tudo, a situação também tem muitas vantagens. A principal é ter restaurado o ritmo natural de nossas vidas, permitindo que muitas pessoas passassem alguns meses com a família – isso eu ouço o tempo todo. E ela nos lembra que temos um corpo frágil. Não se trata do corpo no sentido de boa forma e dieta alimentar, mas sim desta dimensão universal, que evoca o lembrete barroco “memento mori” – o fato de sermos mortais e perecíveis e de não podermos manter tudo. Acho que é uma experiência muito profunda que muda a nossa atitude perante a vida, o mundo e as ações humanas no mundo.
Mas a pandemia também roubou nossos corpos. Refiro-me à maneira como nos comunicamos atualmente. Nos últimos meses, tem se conversado mais virtualmente…
Eu rejeito conversas online e tento evitar tais entrevistas, conferências e reuniões. Elas me parecem muito antinaturais e, paradoxalmente, também nos lembram o que é um corpo e quais sinais são enviados por um corpo vivo. Trata-se de vibrações, de “linguagem corporal”. Desse modo, isso que aconteceu nos mostrou a diferença entre a vida corporal, a vida física em toda a sua riqueza, que nem sempre percebemos, e a comunicação pura, que também pode acontecer online.
Qual será o impacto dessa pandemia na arte e na literatura?
Tenho um profundo pressentimento de que vamos viver um flashback do surrealismo, de que, a partir de agora, vamos perceber a realidade de uma forma neossurrealista. O mundo pandêmico e pós-pandêmico de hoje não pode ser entendido sem o uso de um paradoxo, sem ironia. Mas tampouco sem olhar para o passado, quando as pessoas estavam mais familiarizadas com o inesperado e o mortal, tais como pandemias ou fantasmas.
Acredito que o destino retornará à arte; o destino que há muito esquecemos. Nos últimos anos, ele só esteve presente na sociobiologia como algum tipo de maldição genética ou como um gene, mas o significado grego de destino desapareceu completamente.
Este poderá se tornar um momento muito interessante e ainda é difícil avaliar como será. Acredito que a pandemia nos conecta com o passado. Ainda não entendo exatamente como isso funciona, mas pode ter algo a ver com as experiências de nossos ancestrais em tempos difíceis. Embora há alguns anos eu ainda tendesse a olhar para o futuro e reivindicasse utopia e heterotopia, agora sinto que estou mais interessada na conexão com o passado, no fluxo da experiência. E que não se pode distanciar do passado.
Você falou em olhar para o futuro. Em alguns dos seus livros, você já havia escrito sobre tópicos que surgiram este ano, sobre a vingança da natureza, sobre o movimento e a estagnação…
É verdade e isso é um pouco assustador. Não tenho capacidade de avaliar, mas acredito que muitos artistas têm uma espécie de savantismo e espiam a realidade através de uma pequena janela, sendo muitas vezes capazes de dar nome às coisas. Mais tarde, eles se surpreendem quando elas se concretizam.
Falamos sobre a ilha de Usedom como parte dos Usedomer Literaturtage (Dias de Literatura de Usedom). A fronteira com a Polônia fica a apenas alguns quilômetros de distância. Daí uma pergunta sobre o tema “fronteiras e geografia”: quando você recebeu o Prêmio Nobel, havia críticas de que os dois vencedores eram da mesma região geográfica – Áustria e Polônia. É possível classificar a literatura assim geograficamente?
Não, não é. Pessoalmente, fiquei feliz em receber o prêmio junto com Peter Handke. Eu o conheço e aprecio seu trabalho. Se alguém ganha um prêmio a dois, pelo menos que seja com quem se conhece e entende. Assim dá uma sensação de irmandade. Mas justamente quando se trata de romances, usamos nossas ferramentas locais para contar algo universal. Ao avaliar uma obra, considero muito importante que ela também seja compreensível em outras culturas.
Acredito que a literatura, embora use línguas diferentes, busca o que está além da língua, onde não há distinções simples e banais como entre Polônia e Alemanha, por exemplo. Geneticamente, na verdade, é a mesma coisa: as culturas são muito parecidas, a culinária é quase idêntica, talvez com temperos diferentes. O século 20, ou mesmo o 19, são séculos de construção de diferenças, de fronteiras entre as pessoas, de construção de hierarquias e julgamentos. Talvez devamos lembrar que as pessoas são muito mais parecidas do que diferentes.
O mundo não para. O campo de refugiados de Moria pegou fogo, protestos estão ocorrendo em Belarus e as ruas de cidades americanas estão sendo protegidas pela Guarda Nacional. Como você lida com isso? É algo com que você se preocupa bastante?
Sim, penso nisso, lido com isso, me preocupo, tenho medo. Sinto a necessidade de extrair o significado mais profundo disso tudo e avaliar o que vai acontecer. Tento refletir isso em minhas reflexões e na minha escrita. Em tudo que escrevi há um eco do que está acontecendo ao meu redor. Mas sempre tento fazer algo diferente da mídia. Acredito que o trabalho do artista, e principalmente do escritor, é deixar esta ágora consolidada de formação de opinião e propor algo diferente, talvez algo excêntrico ou bizarro, mas definitivamente algo desse outro ponto de vista muito especial. É assim que entendo minha missão como escritora.