Judiciário
Candidaturas avulsas: a nova aristocracia?
STF em breve se pronunciará sobre o tema
Com o encerramento do prazo para a formulação de requerimentos de registros de candidaturas, a Justiça Eleitoral se vê mais uma vez chamada a decidir sobre a possibilidade jurídica das chamadas candidaturas avulsas ou independentes, isto é, sobre requerimentos formulados por candidatos não filiados a partidos políticos. O tema não é novo e a sua repercussão geral já foi reconhecida pelo STF (ARE n. 1.054.490, Rel. Min. Barroso).
Um dos principais argumentos dos defensores das candidaturas avulsas vai na linha de que o art. 14, § 3º, V, da CF deve ser interpretado à luz do que estabelece o Pacto de São José da Costa Rica, cujo art. 23, incisos I e II, teria tornado desnecessária a prévia filiação partidária como condição de elegibilidade. Sustentam ainda que o monopólio partidário formaria oligopólios que tolhem a soberania popular e que, sendo a participação política um direito natural, não poderia ser restringido pela legislação eleitoral.
O pano de fundo do debate é a grande incredulidade nos partidos políticos brasileiros, historicamente dominados por grupos políticos formados a partir de critérios de parentesco e amizade. Em suma, as candidaturas avulsas encontrariam amparo no princípio democrático, no pluralismo político, na dignidade da pessoa humana e na liberdade constitucional de associação.
Como se sabe, a Carta de 88 prevê a filiação partidária como condição de elegibilidade (art. 14, § 3º, V), ao lado de outras, dispondo no mesmo sentido o art. 11, § 14, da Lei n. 9.504/97. As condições de elegibilidade, porque previstas no próprio texto constitucional, convivem harmonicamente com o princípio de que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (art. 1º, parágrafo único, da Carta Política), convivem harmonicamente com o princípio democrático.
Disso decore que o afastamento da exigência de filiação partidária em homenagem ao que prevê o art. 23, I e II, do Pacto de São José da Costa Rica exigiria que este último texto normativo apontasse tal possibilidade de forma clara e insofismável. Mas não é o que ocorre, muito ao contrário. De fato, o inciso I do referido art. 23 garante a todos os cidadãos o direito de participar da condução de assuntos políticos, diretamente ou por intermédio de representantes eleitos livremente.
Garante também o direito de votar e de ser eleito em eleições “periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a livre expressão da vontade dos eleitores”. Daí não se segue que a exigência de filiação partidária tenha sido abolida pelo Pacto. Já o Inciso II do mesmo artigo dispõe que “a lei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades, a que se refere o inciso anterior, exclusivamente por motivo de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal”.
A uma primeira leitura seria razoável concluir que esta última previsão normativa interditaria condições de elegibilidade para além dos marcos ali previstos. Mas uma reflexão mais detida parece conduzir à conclusão de que o que o art. 23, II, do Pacto deseja evitar é que as legislações nacionais limitem, de forma arbitrária, o direito político fundamental que o cidadão tem de lançar-se ao sufrágio universal e igualitário. Aliás, por tratar-se de um texto do final da década de sessenta, cabe a crítica, por exemplo, à possibilidade de restrição aos direitos políticos por motivo de “capacidade civil ou mental” (art. 23, II, do Pacto), o que colide com o art. 29 da Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência.
Veja-se também que o art. 23, II, do Pacto considera legítima a restrição de candidaturas em razão de condenação “em processo penal”, mas não se refere às inelegibilidades decorrentes de outras condenações (por atos de improbidade administrativa, por exemplo, art. 1º, I, “g”, da LC 64/90) ou mesmo a impedimentos decorrentes da rejeição de contas pelos Tribunais de Contas (art. 1º, I, “g”, da LC 64/90). Tais restrições à capacidade eleitoral passiva, ao que parece, não caracterizam óbices ilegítimos ou arbitrários ao pleno exercício dos direitos políticos, mas estariam interditadas pela Convenção Americana de Direitos Humanos.
O acolhimento de candidaturas avulsas, por outro lado, demandaria uma profunda reestruturação do sistema eleitoral brasileiro, que, a partir de uma condição de elegibilidade longeva, se estrutura em torno da realidade da existência dos Partidos e da necessidade de filiação partidária.
Sendo mais claro, seria o caso de indagar de que modo aspectos relacionados ao acesso gratuito ao rádio e à TV, à repartição dos recursos do FEFC, à obediência de cotas de gênero e de raça etc funcionariam se admitidas as candidaturas avulsas. É dizer, a admissão de tais candidaturas demandaria uma complexa atuação normativa do Judiciário, que não dispõe de legitimidade democrática nem tampouco de expertise institucional para enfrentar tais questões, a gerar um perigoso ativismo judicial e graves instabilidades ao sistema eleitoral.
Tudo isso nos remete à conclusão de que, sem prejuízo da relevância do debate suscitado pelos defensores das candidaturas avulsas, sobretudo sobre a profunda crise de legitimidade dos atuais modelos de democracia e a necessidade de incremento de formas de participação direta, cabe ao parlamento, e não ao Judiciário, promover um amplo debate com toda a sociedade e a classe política a respeito da conveniência de um novo modelo.
Nesse debate cabem todas as críticas formuladas pelos defensores das candidaturas avulsas (a patronagem, as legendas de aluguel etc) e, sobretudo, a avaliação sobre se a admissão de tais candidaturas realmente será capaz de superar os problemas de representação.
Um dos questionamentos, talvez o principal, é saber se de fato as candidaturas independentes promoverão um maior aprofundamento da democracia e da participação, ou se não aprofundarão as desigualdades através de acessos privilegiados a elites ilustradas, formadas nas melhores escolas e universidades, e não propriamente das populações vulneráveis. Ou seja, em que medida as candidaturas “avulsas” não representariam a forma contemporânea de um tipo de aristocracia, “o governo dos melhores”, que facilmente pode degenerar em oligarquia?
Como dito inicialmente, o STF em breve se pronunciará sobre o tema. Naturalmente, é possível que o guardião da Constituição aceite as candidaturas independentes; mas é possível também que não, sobretudo se tivermos em conta os precedentes sobre “fidelidade partidária” (MS 26.602, ADI’s 3.999/DF e 4.086/DF etc), em que, em certo sentido, nossa corte constitucional valorizou os partidos em detrimento de “carreiras solo”. A ver.
O voto de despedida do ministro Celso de Mello no STF e a mudança de regimento interno da Corte envolvendo julgamentos da Lava Jato são os assuntos discutidos no episódio 38 do podcast Sem Precedentes. Ouça:
ROGÉRIO PACHECO ALVES – Doutor em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense. Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro.
Jota