Judiciário
Saneamento básico: novo marco regulatório e suas contradições
A política neoliberal parece fazer tábula-rasa das duras lições trazidas pela pandemia da Covid-19
Não cessam as críticas ao novo marco regulatório do saneamento básico fixado pela Lei nº 14.026/2020, editado sob o pretexto de tornar mais eficiência a prestação desses serviços, e efetivar a sua almejada universalização até o ano de 2033. O ponto central da nova disciplina é a regra que estabelece que a prestação desses serviços, por entidade que não integre a administração dos municípios, depende da celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação, nos termos do art. 174 da Constituição, vedada, agora, a utilização de contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária (Lei nº 11.445/2007, art.10).
Assim, o novo marco pretende promover uma progressiva substituição dos contratos de programa por contratos de concessão, com o ingresso progressivo de empresas privadas na exploração dos serviços de saneamento. Procedeu-se, também, por meio de mecanismos diversos, a submissão da regulação desse setor a uma agência reguladora federal, a ANA (Agência Nacional de Águas), agora reforçada e denominada Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico.
Observa-se de forma bastante clara que a “abertura” dos serviços de saneamento à concorrência e a sua consequente prestação por empresas privadas se constituiu na pedra de toque do novo modelo. A despeito das costumeiras invocações retóricas das perspectivas modernizadoras do novo modelo, o marco regulatório aprovado se apresenta como mais um passo, dessa vez o mais ousado, do avanço das políticas neoliberais sobre os serviços públicos, hoje abertamente assumido sem os escrúpulos do passado como política governamental no Brasil.
Alardeia-se que a concorrência aliada à gestão privada de serviços públicos seria a forma mais eficiente de sua prestação à sociedade. Sustenta-se que as empresas privadas, ao operarem em substituição aos entes públicos, seriam mais reativas, mais responsivas, mais inovadoras e tecnicamente mais eficientes, uma vez que seriam menos sujeitas aos inconvenientes políticos e jurídicos que pesam sobre os entes públicos, mesmo quando estes revestem uma forma empresarial, como as companhias estaduais de águas e esgotos.
Recorde-se que a prestação dos serviços de saneamento por empresas estatais chegou a alcançar o percentual de 94% dos municípios brasileiros, com muitas dessas empresas se destacando no cenário nacional, como a Sabesp e a Sanepar, companhias de saneamento dos Estados de São Paulo e do Paraná respectivamente.
O que na prática está a se desenvolver é um projeto de reestruturação neoliberal mais ampla dos serviços públicos, de tal forma a se produzir as condições nacionais e locais mais adequadas para a valorização do capital. Ou, como vem se dizendo no jargão do mercado e das consultorias especializadas, trata-se de promover um ambiente de negócios saudável na área do saneamento básico. As peculiaridades dos serviços de saneamento básico demandam infraestruturas físicas que incitam a um certo monopólio natural.
Qualquer que seja suja dimensão e amplitude, sempre demandam grandes redes de adução de água e robustas tubulações de coleta de esgotos articulados com inúmeros domicílios e estabelecimentos em âmbitos territoriais regionalizados mais ou menos amplos. Assim, quer tais serviços sejam prestados por empresas públicas, quer sejam prestados por empresas privadas, serão costumeiramente prestados em regime de monopólio, sendo, portanto, uma falácia alardear-se os benefícios da concorrência neste setor naturalmente monopolizado.
Para Milton Friedman, o papa do neoliberalismo contemporâneo, as vantagens da concorrência somente de fazer sentir em cenários com múltiplos prestadores de serviço, onde o consumidor soberano poderia fazer uma escolha mais livre e racional, o que não se aplica, evidentemente, no setor de saneamento. O que se pretende na prática é a substituição de um monopólio público por um monopólio privado, gerido por grandes conglomerados. E isso com todas as vantagens dos contratos celebrados com o Estado, como a garantia do equilíbrio econômico-financeiro, o compartilhamento de riscos e, principalmente, a disponibilidade de uma exploração em larga escala.
Talvez fosse recomendável revisitar o conceito de serviços públicos essenciais, hoje um tanto fora de moda, difundido entre nós pelo saudoso administrativista Hely Lopes Meirelles, que os diferenciava dos serviços de utilidade pública. Para Hely, serviços públicos essenciais “são os que a Administração presta diretamente à comunidade, por reconhecer sua essencialidade e necessidade para a sobrevivência do grupo social e do próprio Estado”.
Por isso, “a Administração deve prestá-los, sem delegação a terceiros, mesmo porque geralmente exigem atos de império e medidas compulsórias em relação aos administrados”. Como exemplo de tais serviços Hely elencava aqueles necessários à preservação da saúde pública.
Ao contrário, os serviços de utilidade pública “são os que a Administração, reconhecendo a sua conveniência (não essencialidade, nem necessidade) para os membros da coletividade, pode prestá-los diretamente ou aquiesce em que sejam prestados por terceiros (concessionários ou permissionários), nas condições regulamentadas e sob seu controle, mas por conta e risco dos prestadores, mediante remuneração dos usuários”. Citava como exemplos desses serviços públicos a energia elétrica e a telefonia.
A água potável e esgotamento sanitário é o que existe de mais básico e essencial, e se inserem entre as medidas de caráter preventivo das quais dependem diretamente as condições de saúde da população. O saneamento básico é indissociável do conceito de saúde, dele sendo parte integrante. Nesse contexto, não deixou de causar uma certa perplexidade que uma mudança tão drástica na gestão dos serviços de saneamento viesse a ocorrer no meio de uma pandemia global, quando tanto se destacou a importância vital dos sistemas públicos de saúde.
A política neoliberal parece fazer tábula-rasa das duras lições trazidas pela pandemia da Covid-19. O que está em jogo no caso dos serviços de saneamento básico públicos são necessidades vitais, inadiáveis, indisponíveis e impostergáveis, e não meras “utilidades” ou “comodidades”.
Numa perspectiva mais atual, o que deve balizar o debate jurídico-político em torno da “essencialidade” de determinados “serviços públicos” é o caráter “fundamental” dos direitos que estão em jogo e das necessidades básicas em questão. Por isso a prestação de tais serviços não se coaduna com uma lógica do mercado, cuja regra básica numa economia capitalista é a maximização do lucro. Tais serviços, em razão do seu caráter de indisponibilidade, deveriam se sujeitar aos critérios de legalidade e racionalidade que fundam a administração pública moderna. Isso significa uma gestão universal e igualitária conectada como os interesses públicos e as exigências de uma cidadania sanitária há muito postergada.
ROBERTÔNIO PESSOA – Doutor em direito administrativo pela UFPE; Professor do Programa de Mestrado em Direito da UFPI.
Jota