Judiciário
INCISO XV – LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO
“É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”
INCISO XV – SOBRE A LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO
Em nossa série sobre o Artigo 5º da Constituição Federal (CF) de 1988, chegou a hora de falar da Liberdade de Locomoção no Brasil, direito fundamental assegurado pelo inciso XV. Ligado aos ideais da Revolução Francesa, por que ele foi adotado no Brasil? Além disso, existem limitações à nossa mobilidade? Descubra as respostas para essas e muitas outras perguntas em mais um capítulo do conteúdo didático e descomplicado do Politize!
Para conhecer seus outros direitos fundamentais, confira a página do Artigo 5º, um projeto desenvolvido pelo Politize! em parceria com o Instituto Mattos Filho.
O QUE DIZ O INCISO XV?
Art.5º, XV, CF – “É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”
O inciso XV da Constituição vigente trata do direito de ir e vir, da liberdade de locomoção do indivíduo dentro e para fora do Brasil. De maneira geral, ele permite às pessoas que aqui estão, tanto brasileiros (nativos e naturalizados) quanto estrangeiros (se estiverem com o passaporte de acordo com as normas estabelecidas), a possibilidade de andar nas vias públicas e frequentar espaços públicos de uso comum quando desejarem, sendo uma espécie de “poder exercitável” da população.
Porém, como o próprio inciso deixa claro em seu texto, existem limites à liberdade de locomoção. O primeiro deles é que esse direito só é válido em tempos de paz, podendo ser impedido esse exercício caso seja decretado Estado de Sítio (Art. 137, CF), como em casos de guerra. Durante esse período, o Artigo 139 (CF) diz que o Presidente pode “obrigar a permanência (das pessoas) em localidades determinadas” (inciso I) e também “suspender a liberdade de reunião” (inciso IV), que são formas de impedir a livre mobilidade dos civis em momentos de emergência nacional.
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Outro ponto importante é que a liberdade de locomoção vale apenas para os espaços públicos, dando poder de restrição às propriedades privadas. Logo, se, dentro da sua casa, você proibir que entrem em determinado cômodo, não há infração do inciso XV do Artigo 5º. Além disso, se invadirem seu território, os responsáveis responderão legalmente pelo ato, que é considerado uma infração da legislação. Dessa forma, há a proteção dos interesses do dono da área, que controla o fluxo dentro do que é seu.
Dentro do próprio artigo 5º, no inciso LIV, apresenta-se mais uma forma de privação da liberdade de locomoção, mas a partir de decisão do Poder Judiciário. Nele, é consentido ao Estado, seguindo os devidos processos legais (Art.93º, inciso IX, CF), a privação de liberdade e/ou dos bens da pessoa. Um exemplo é a prisão após julgamento. O indivíduo é proibido de andar livremente pelo país, ficando restrito às instalações das unidades prisionais.
A liberdade de locomoção no cenário internacional é diferente, pois não depende só das leis brasileiras. Para viajar aos EUA, por exemplo, é necessário que o brasileiro tenha um visto no passaporte, que é uma autorização concedida pelo governo estadunidense após ele analisar seus dados e o motivo da estadia no país. Para entrar no Brasil, os estrangeiros devem seguir a Lei de Migração, sancionada em 2017. Considerada humanitária, a norma facilita o processo de obtenção de documentos para legalizar a permanência do imigrante em solo nacional, seu acesso ao mercado de trabalho e aos serviços públicos, como o Sistema Único de Saúde (SUS).
A HISTÓRIA POR TRÁS DO INCISO
Você já ouviu as pessoas chamarem a Constituição de Magna Carta? Esse segundo nome remete ao primeiro documento ocidental de restrição ao poder dos monarcas da história.
Em junho de 1215, o rei inglês João Sem Terra assinou, forçado pelos barões da região, a Magna Carta, que limitou seu exercício no trono. Em seus artigos 41 e 42, havia a forma prematura do que hoje entendemos como liberdade de locomoção. Os artigos concediam “aos comerciantes e homens livres apenas, a liberdade de sair e entrar na Inglaterra, nela residir e percorrer, tanto por terra como por mar, ressalvadas as situações de guerra”.
O texto da Magna Carta soa familiar? É porque o inciso XV do artigo 5º é bastante parecido com essa sua passagem. A principal diferença é que em nossa Constituição há a liberdade de locomoção para todas as pessoas, enquanto na Inglaterra era para um grupo seleto da população, eliminando esse direito dos servos, por exemplo.
Esse conceito de liberdade de locomoção se propagou durante a história, tendo sido defendido fervorosamente durante a Revolução Francesa. Depois desse acontecimento histórico, muitas Constituições beberam do Iluminismo apresentado naquele período, que colocava a razão como a melhor maneira de se conquistar liberdade e autonomia, opondo-se ao absolutismo que dominava a Europa. A Constituição Portuguesa de 1822 é uma das que mais seguiu esse viés e foi base para nossa primeira Constituição nacional, promulgada em 1824.
INTRODUÇÃO DA LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO NO BRASIL
A liberdade de locomoção está presente desde o início do nosso ordenamento jurídico, no texto da Constituição de 25 de março de 1824. Era representada pelo artigo 178, contido no título VIII, que garantia os direitos civis ao cidadão brasileiro; mas, era subentendida, não fazendo distinção entre o direito de ir e vir e outras liberdades individuais.
A primeira vez que houve uma redação que expressava abertamente esse direito foi em 1934, em nossa 3ª Constituição, que vigorou oficialmente só por um ano. Já na 4ª Constituição, de 1937, ele estava presente até 1942, quando um decreto presidencial assinado pelo Presidente Getúlio Vargas declarou o estado de guerra em todo o território nacional e fez deixar de vigorar esse trecho da Constituição. A Constituição de 1946, a 5ª do Brasil, foi a que abordou o tema em sua totalidade, tratando também dos estrangeiros (artigo 142), em que assegurou o direito de circulação em território nacional a qualquer pessoa, respeitando os limites da lei.
Durante o Regime Militar, durante a vigência da Constituição de 1967, a liberdade de locomoção sofreu limitações graças à emenda constitucional radical adotada pelo presidente da época, Artur da Costa e Silva, em dezembro de 1968, o Ato Institucional Número Cinco (AI-5). Entre as suas diversas arbitrariedades, as que atacavam o direito de ir e vir eram, principalmente, a ilegalidade das reuniões políticas não autorizadas pelo Estado e os toques de recolher que foram implementados por todo o País.
Após esse período turbulento da história brasileira, ouvindo os anseios populares, como o movimento Diretas Já, foi elevado um Poder Constituinte que elaborou e promoveu a redação da atual Constituição, implementada em 1988, conhecida também como a Constituição-Cidadã. A voz do povo pedia a volta das liberdades individuais e assim chegamos onde estamos hoje, em que a liberdade de locomoção é assegurada no inciso XV do artigo 5º.
COMO ESTÁ A LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO?
A maioria dos regimes democráticos do mundo adota o direito de ir e vir como fundamental e o expõe em suas Constituições. Porém, a liberdade de locomoção não é apenas permitir a entrada e movimentação em locais públicos, mas também promover os meios para tal. No Brasil, a acessibilidade fornecida às pessoas com deficiência é precária, mesmo com cerca de 45 milhões de habitantes com algum tipo dela, o equivalente a 23,9% da população nacional, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE – 2016). Essas deficiências podem ser de natureza visual, auditiva, motora ou intelectual. A mais frequente no país é a visual (18,6%), seguida da motora (7%), auditiva (5,10%) e, por fim, a deficiência intelectual (1,40%).
A superintendente do Instituto Brasileiro dos Direitos de Pessoas com Deficiência (IBDD), Teresa d’Amaral, entende que não há a efetivação do direito de ir e vir: “Entre outras coisas, falta acessibilidade nos transportes públicos, nos prédios públicos e privados de uso coletivo, em restaurantes, universidades, hotéis e espaços públicos, em geral. Isso é um desrespeito a um dos direitos mais básicos da população, a liberdade de locomoção”. Outro ponto salientado pelos especialistas é a precariedade das calçadas, que dificultam a circulação de cadeiras de rodas, deficientes visuais e cães-guia.
Esse problema não é exclusivo do Brasil. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, cerca de 10% da população mundial possui algum tipo de deficiência e os países encontram dificuldades para adaptar suas instalações a esse público. Entretanto, existem governos que conseguiram implementar políticas públicas de acessibilidade praticamente universais, como a Suécia, que se tornou referência no assunto. O país nórdico, com quase 10 milhões de habitantes, tem 1,5 milhão deles com alguma deficiência. O governo, percebendo a necessidade de inclusão dessa parcela da sociedade no trânsito público, reuniu o povo em grupos mensais de diálogo para a fiscalização e sugestão de novas estruturas de acessibilidade pelo país. Anualmente, são realizadas duas varreduras de especialistas por todo o território nacional para checar a situação das adaptações.
A violência e a falta de transportes públicos para algumas regiões também são impeditivos para o exercício da liberdade de locomoção do cidadão no Brasil. O número de assaltos em nosso País é o dobro da média mundial, com 8% da população dizendo que foi assaltada nos últimos 12 meses. Quanto à violência contra a mulher, temos números bastante elevados: são 12 assassinatos e 135 estupros por dia, em média, no Brasil. Se a população tem medo de andar na rua, como há a garantia da liberdade de locomoção?
A precariedade do transporte público também impede a locomoção, sendo um problema comum em todas as regiões do país. Os civis, para conseguirem chegar ao trabalho, suas casas ou viajar, optam por carros, que congestionam o trânsito e aumentam a poluição. Se compararmos o maior sistema metroviário do Brasil, que é o da cidade de São Paulo, com o de Londres, percebemos que existe uma defasagem no desenvolvimento dessa tecnologia. Inaugurado em 1974, o metrô de São Paulo tem 74,3 km de extensão e uma média de expansão de 1,91 quilômetro por ano. Em contrapartida, o de Londres, ativo desde 1863, tem 402 km, com expansão média de 2,68 quilômetros anualmente. Para o fluxo da maior cidade do País, com 3,7 milhões de usuários desse tipo de transporte diariamente, há insuficiência de oferta. Não à toa, cidadãos que têm a possibilidade de comprar veículos particulares o fazem, o que diminuiu a quantidade de usuários do metrô em 12 milhões em 2017. Portanto, é fundamental o investimento para ampliar a malha de transportes coletivos de qualidade no Brasil e conceder, de fato, a liberdade de locomoção ao povo.
PEDÁGIOS VIOLAM O DIREITO DE IR E VIR?
O inciso XV do artigo 5º é costumeiramente citado para questionar a existência de pedágios nas rodovias públicas. Quem nunca ouviu, em alguma reunião de família, uma reclamação dessa natureza, falando que esse tipo de tributo fere a liberdade de locomoção?
A verdade é que, apesar das vias serem bens públicos de uso comum (artigo 99, inciso I, Código Civil), ou seja, de uso livre do povo, a Constituição prevê e legaliza a cobrança do pedágio. Essa validação está presente no artigo 150, inciso V. Nele, é vedado ao Estado “estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada (com exceção à) a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público”.
Logo, o Governo não pode impedir a sua liberdade de locomoção – ou de seus bens – entre cidades e estados, mas pode cobrar pela utilização das rodovias com o objetivo de conservá-las, mantendo sua qualidade (artigo 103, Código Civil). Também é permitido ao Estado conceder a manutenção das vias a ente privado, que, com a arrecadação do pedágio, promoverá sua gestão.
CONCLUSÃO
A Liberdade de locomoção acompanha a história do Estado brasileiro independente desde o seu início. Viveu momentos turbulentos, como na Ditadura, mas ressurgiu e foi fixada em nossos direitos fundamentais, petrificada no artigo 5º, inciso XV. Porém, estar na Constituição, por mais que seja altamente relevante, não garante sua eficácia prática. Ainda precisamos ter segurança, transporte público e acessibilidade para proclamarmos, definitivamente, que somos livres para ir e vir de onde e para onde quisermos no Brasil.
Veja o resumo do inciso XIV do artigo 5º no vídeo abaixo:
Sobre os autores:
Willer Costa Neto
Advogado de Tributário
Pedro Parada Mesquita
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