Judiciário
Juíza brasileira vai presidir Tribunal de Apelação do Sistema de Justiça da ONU
A juíza do Trabalho Martha Schmidt explicou ao JOTA suas atribuições na ONU e como chegou ao posto
A juíza do Trabalho Martha Halfeld Furtado de Mendonça Schmidt, da 3ª Vara do Trabalho de Juiz de Fora, será a partir do ano que vem presidente do Tribunal de Apelação do Sistema de Justiça Interna das Nações Unidas, em Nova York, nos Estados Unidos. A magistrada faz parte do tribunal desde 2016 e é a primeira integrante brasileira, além de ser a única latino-americana na atual composição.
Em conversa com o JOTA, a juíza explicou as atribuições que tem no Tribunal de Apelação do Sistema de Justiça Interna da ONU, como foi o processo seletivo para chegar ao cargo e quais são suas perspectivas na magistratura.
O Tribunal de Apelação é a segunda e última instância da justiça interna da ONU, que geralmente trata de causas trabalhistas e administrativas. “A ONU tem imunidade de jurisdição em face dos Estados membros onde atua”, explica Schmidt. “Por isso teve que criar um sistema de Justiça interno para responder às demandas dos seus próprios servidores, porque senão eles não teriam onde reclamar de um eventual descumprimento por parte da própria organização”.
Marta Schmidt é juíza do Trabalho desde 1994, é graduada em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora, especialista e Mestre em Direito do Trabalho e de Previdência Social pela Université de Paris II e doutora em Direito Privado pela mesma instituição.
Na ONU, o processo de seleção foi dividido em duas etapas. “Há uma seleção técnica, tive que fazer prova, uma entrevista oral e depois disso a gente foi para uma eleição”, lembra. “Depois há uma recomendação para uma votação na Assembleia Geral da ONU. Então teve uma fase técnica e teve uma fase política”.
Questionada sobre o assunto, a juíza considera difícil no futuro vir a fazer parte de Cortes Superiores no Brasil, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF). “A minha trajetória na magistratura nacional acho que vai ser bem mais modesta”, diz. “Eu comecei a trabalhar muito cedo, com 18 anos, e acho que me aposento antes de ter a chance de ser promovida para grau de desembargadora”.
Confira a conversa que o JOTA teve com a juíza Martha Halfeld Furtado de Mendonça Schmidt:
O que é o Tribunal de Apelação do Sistema de Justiça Interna das Nações Unidas? Quais são suas atribuições?
A ONU tem imunidade de jurisdição em face dos Estados membros onde atua. Por isso teve que criar um sistema de Justiça interno para responder às demandas dos seus próprios servidores, porque senão eles não teriam onde reclamar um eventual descumprimento por parte da própria organização.
Inicialmente, esse sistema de Justiça interno era prestado por altos servidores da ONU, mas com o tempo houve reclamações de falta de imparcialidade, de excesso de tempo para o julgamento desses casos e de um acúmulo de processos muito grande.
Há cerca de dez anos houve uma reformulação pela assembleia-geral desse sistema e houve a criação de dois graus de jurisdição. O primeiro grau é o tribunal de disputas, que tem sedes em Nova York, Genebra e Nairóbi, no Quênia. O Tribunal de Apelação, que fica em Nova York, é o segundo grau de jurisdição e instância final para julgamento desses casos.
Quais são as naturezas das causas?
São causas de natureza trabalhista ou administrativa. Envolvem todos os tipos de reclamações concernentes a descumprimentos de obrigações por parte da organização ou de alguma das agências afiliadas do sistema das Nações Unidas.
Existem alegações de descumprimentos de diversas ordens. Por exemplo, a ONU adota um sistema de contratação temporária. Quando esse contrato não é renovado, como a pessoa gostaria, existe a possibilidade de reclamação se essa pessoa achar que teria algum direito. A não renovação de contrato é uma decisão que é muito desafiada e analisada por esses tribunais internos.
Outro descumprimento alegado que temos muito é o de descriminação. Por exemplo, a não seleção para um cargo ou a não promoção.
A gente também analisa questões do fundo de pensão da ONU. Direitos de dependentes quando uma pessoa morre, direitos de pensão ou direitos após a aposentadoria.
Essas são as reclamações mais frequentes, mas temos reclamações mais delicadas. Por exemplo, as reclamações ligadas a direito disciplinar, quando tem uma punição e a alegação de que aquela punição não foi proporcional ou não cumpriu todas as formalidades necessárias.
Além disso, há casos mais delicados que transcorrem em segredo de justiça, como aqueles relacionados a assédio, que pode ser de ordem sexual ou moral.
Há regulamentos internos que balizam as decisões?
Há regras e regulamentos internos do sistema de justiça interno da ONU. Existe um regulamento geral e existem regulamentos específicos aplicáveis a cada agência do sistema das Nações Unidas.
Por exemplo, se a agência dos refugiados da Palestina tem uma reclamação, tem uma regulamentação específica dela, que não é exatamente a que regulamenta o secretariado em Nova York.
Qual foi o caminho para chegar até o posto?
É um trabalho de uma vida inteira.
Eu soube do concurso três dias antes de as inscrições se encerrarem. Em três dias tive que preparar toda a documentação e me preparar para o concurso que seria realizado. É uma seleção técnica, tive que fazer prova, uma entrevista oral e depois disso a gente foi para uma eleição. Depois há uma recomendação para uma votação na Assembleia Geral da ONU. Então teve uma fase técnica e teve uma fase política.
Só foi possível ser bem-sucedida na fase técnica porque tive todo um preparo antes, que nem era dedicado especificamente para essa seleção. Isso foi um acaso da vida, um pouco de sorte de eu ter visto que aquele edital estaria em curso.
A senhora integra a ONU desde 2016. Qual função desempenhou nesses quatro anos?
Hoje eu sou a primeira vice-presidente do Tribunal de Apelação. Em 2019, desempenhei a função de segundo vice-presidente do tribunal. Nos dois anos anteriores, fui juíza do Tribunal de Apelação, compondo as turmas. Mesmo na qualidade de presidente, a partir do ano que vem, vou continuar no exercício da função jurisdicional internacional, porque o presidente acumula as funções administrativas do tribunal com as de jurisdição.
Quais são as nacionalidades dos demais integrantes do Tribunal de Apelação do Sistema de Justiça Interna das Nações Unidas?
Dos sete, quatro passaram a integrar o tribunal no mesmo momento: eu, um sul-africano, uma alemã e um grego. No ano passado, em outubro, tomaram posse três novos colegas, que são da Nova Zelândia, do Canadá e da Bélgica.
Quais foram os principais aprendizados que teve desde que ingressou no órgão?
Um deles foi uma contextualização melhor da aplicabilidade do sistema de Common Law no Direito. A ONU tem um sistema misto de Civil Law com Common Law. Então temos que dominar os dois sistemas jurídicos. Esse é um grande desafio e ainda é um grande aprendizado.
Um outro desafio que achei considerável no início foi que, vinda de uma esfera do Direito do Trabalho, eu tive que reaprender o Direito Administrativo e aplicar o Direito sob a ótica mais administrativista do que trabalhista. Também tendo em vista que a ONU é a maior organização mundial, mas não tem fins lucrativos. Isso é uma mudança de paradigma em relação ao conceito de direito do trabalho que estamos acostumados.
Isso dentro de um contexto de diversidade cultural muito grande, de diversidade linguística. Pela própria nacionalidade dos juízes componentes da corte, temos colegas que são nativos da língua inglesa, que é a língua utilizada na prática do tribunal, mas temos colegas também não nativos de língua inglesa. Para mim foi um desafio, e é até hoje um desafio muito grande, eu me expressar bem e me comunicar na língua inglesa.
Eu fiz toda minha seleção técnica em francês, uma vez que minha formação no exterior foi com doutorado na França. Mas na realidade do tribunal a língua utilizada é o inglês. Então até hoje estudo inglês, antes da entrevista, inclusive, estava tendo uma aula com um professor da Inglaterra.
O fato de a senhora, uma brasileira, ocupar esse cargo importante na ONU, pode ajudar o Brasil a, no futuro, tentar novamente galgar uma vaga no Conselho de Segurança da ONU?
Eu não tenho o alcance de visão estratégica para responder a essa pergunta. Isso é uma concepção muito mais larga do que a que eu tenho e foge totalmente à minha prática de jurisdição.
O que eu posso te responder é que em alguns países, sobretudo os países em desenvolvimento, existe uma certa percepção de sub-representação em tribunais e órgãos internacionais.
Lembro que o Itamaraty abraçou com muita intensidade minha candidatura quando chegou ao conhecimento que meu nome estava sendo levado para consideração da Assembleia Geral da ONU. E considerou que a candidatura era estratégica para representar os interesses nacionais de aumento de representatividade do Brasil perante a ONU. Então, acredito que minha nacionalidade brasileira presente lá seja um fator que pese favoravelmente aos interesses do Brasil.
Sou a única latino-americana atualmente presente no tribunal e sou a primeira integrante da magistratura brasileira a ocupar uma cadeira neste tribunal.
Pensa na possibilidade de um dia compor Cortes Superiores aqui no Brasil como STJ e STF?
A minha trajetória na magistratura nacional acho que vai ser bem mais modesta. Eu comecei a trabalhar muito cedo, com 18 anos, e acho que me aposento antes de ter a chance de ser promovida para grau de desembargadora.
Não é uma questão de não querer, é uma questão realística de achar que não vai dar.
Isso também é o motivo pelo qual eu, percebendo a falta de perspectiva na carreira nacional, busquei um outro viés de motivação profissional, começando uma carreira internacional.
Sem perder de vista que a minha profissão é nacional, porque é aqui que ganho o meu sustento, é aqui que eu garanto minha sobrevivência. Minha participação na ONU tem duração limitada, vai até junho de 2023, e não é possível renovar o mandato. Então é um parênteses na minha vida, um grande aprendizado e uma grande oportunidade de crescimento profissional e pessoal.
Fonte: Jota