Judiciário
A decisão de Moraes e a reforma do STF: o próximo front?
Há sinais de que propostas que alteram o tamanho ou reduzem os poderes da Corte podem ser a próxima trincheira
Há um detalhe importante na decisão do ministro Alexandre de Moraes determinando a prisão de Daniel Silveira. Trata-se da menção às “cláusulas pétreas” da Constituição. Embora essa referência soe acessória para a decisão, ela não é necessariamente um simples floreio retórico. Pode ser uma sinalização, com consequências práticas.
Segundo o ministro, “a Constituição Federal não permite (…) a realização de manifestações nas redes sociais visando o rompimento do Estado de Direito, com a extinção das cláusulas pétreas constitucionais – Separação de Poderes (CF, artigo 60, §4º), com a consequente, instalação do arbítrio.”
Contudo, a vedação presente no art. 60 § 4° prevê que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir” cláusulas pétreas, incluindo a cláusula da Separação de Poderes.
A interpretação de Moraes criaria um controle geral e irrestrito sobre todo conteúdo emitido por parlamentares, em qualquer fórum, que possam se chocar com os parâmetros gerais e abstratos das cláusulas pétreas.
Assim, Moraes parece expandir o alcance dessa proibição para o mundo fora do Congresso. Trata-se de um controle “pré-legislativo”, cujo alcance se dá antes mesmo do parlamentar sentar-se para deliberar.
Para quem sabe que o contexto vai, mas o precedente fica, trata-se de interpretação problemática. Para quem crê que tempos difíceis exigem um constitucionalismo militante, amanhã pode ser tarde demais.
A visão de Alexandre de Moraes sugere um STF pronto para se defender no front das emendas constitucionais. De fato, há sinais de que propostas que alteram o tamanho ou reduzem os poderes do tribunal podem ser a próxima trincheira.
No Brasil, isso seria uma novidade em tempos democráticos. No passado, o Ato Institucional nº 5 possibilitou decreto aposentando três ministros do STF contrários à ditadura.
Hoje, para tristeza do deputado Daniel Silveira, balizar o STF só seria possível por meio de Emenda Constitucional. As manifestações públicas de Bolsonaro e seus seguidores demonstram que estão dispostos a tentar, e Alexandre de Moraes sabe disso.
As possibilidades de controle do tribunal via reformas são muitas, vide a malfadada PEC 33 de 2011. Além disso, são comuns na América Latina as tentativas de reformar as Cortes Constitucionais para retirar sua independência e autonomia.
No método mais conhecido, utilizado pelo ex-presidente argentino Carlos Menem, aumenta-se o número de cadeiras na corte para diluir o número de ministros contrários ao governo. Como diria Menem, em tom que lembra o de Bolsonaro ao falar da Constituição: “por que eu deveria ser o primeiro presidente argentino a não ter minha própria corte?”.[1]
O STF começou a se defender nesse flanco. Resistiu, nos bastidores, ao nome de Bia Kicis para a Comissão de Constituição e Justiça. Os ministros sabem que a predileção por seu nome entre os meios bolsonaristas não se deve somente às suas manifestações contra os ministros do STF. É dela a proposta de emenda que quer sua aposentadoria aos 70 anos (PEC 159/19).
O sucesso dessa PEC, por exemplo, permitiria a Bolsonaro uma influência desmedida sobre a Corte. Também declarou a deputada, em entrevista recente, que pretendia promover “pauta para combater a usurpação de poder do Legislativo, para podermos usar medidas de freio e contrapeso e não permitir ativismo judicial.”
Para além da batalha nos bastidores, a não ser que o entendimento de Alexandre de Moraes seja bem-sucedido, há pouco que o STF possa fazer para intervir na tramitação de uma emenda constitucional.
Uma possibilidade já existia desde o MS nº 257 de 1980, em que o STF se reservou ao direito de apreciar Mandados de Segurança impetrados por congressistas que entendem ter o direito subjetivo a não deliberar emendas tendentes a abolir cláusulas pétreas.
Com isso, o Tribunal já possuía uma espécie de controle preventivo. No entanto, ao sugerir um controle “pré-legislativo”, o ministro vai muito além do precedente anterior.
O ministro parece indicar que, após a vitória massiva do candidato de Bolsonaro à Presidência da Câmara, alcançar o quórum para reformar o STF por meio de PEC pode ser cada vez mais uma possibilidade, ainda que o jogo no Senado seja mais complexo. Desse modo, os tempos difíceis exigiriam interpretações extremas, e a resposta estaria no art. 60 § 4º.
Para aqueles mais céticos que tal enredo venha a se desenrolar, vale lembrar que não é preciso que o STF seja reformado para que os bolsonaristas colham os frutos desse embate.
Apenas ao mostrar à sua base eleitoral um perfil aguerrido contra a corte, explorando a ginástica interpretativa do Tribunal, apontando interferências no processo legislativo e violações à sua visão de liberdade de expressão, o Bolsonarismo já pode se sair vencedor. Já o STF, caso esse embate aconteça, dificilmente sairá totalmente incólume.