Judiciário
O crime de maus-tratos e uma história trágica
Há alguns meses, tive contato com um caso bastante peculiar envolvendo a morte de uma criança.
Como o tema envolve a suposta prática de um crime que provoca muita confusão nas pessoas (e nos veículos de imprensa), resolvi compartilhar a história com os amigos do Jusbrasil.
Obviamente, os verdadeiros nomes dos envolvidos serão preservados.
Porém, com a finalidade de conferir um ar de pessoalidade à minha narrativa, darei a eles nomes fictícios.
O caso: morte suspeita
Maria era uma garotinha de seis anos de idade. Ela tinha dois irmãos, Pedro, de três anos e Isabela, de oito anos.
Há alguns dias, Maria vinha se sentindo bastante indisposta e quieta. Não sentia vontade de comer, nem mesmo de brincar.
Em um finalzinho de tarde, no mês de agosto de 2019, a menina, em tom de choro, disse para a mãe dela, Joana, que estava sentindo fortes dores na barriga.
Quando Joana foi verificar a temperatura da criança, viu que ela estava ardendo em febre.
Rapidamente, Joana comunicou ao pai da criança, de nome Márcio, que levaria a criança ao hospital.
No hospital, mãe e filha aguardaram o atendimento por certo tempo, mas nada além do razoável.
Quando foram atendidas, o médico, ao verificar que Maria apresentava um quadro estável, receitou uma medicação para a dor na barriga e concedeu alta a ela.
Tão logo retornaram para casa, uma vez que já era noite, Márcio e Joana colocaram as crianças para dormir e, em seguida, também foram eles se deitar.
Maria e Pedro dormiam juntos no mesmo quarto. Ele, em uma cama; ela, em um colchão.
Durante a madrugada, Pedro se levantou e foi ao quarto dos pais.
O menino acordou o pai e disse que estava com sede. Disse também que havia tentado acordar Maria para que ela pegasse a água para ele, mas a irmã não acordava.
O pai se levantou, foi até a cozinha, encheu um copo d’água e, enquanto o menino bebia, foi ao quarto dar uma olhada na filha.
Ao acender a luz, Márcio foi tomado por um sentimento de pavor.
Maria estava deitada na cama, com os olhos abertos e algumas manchas visíveis no pescoço. Ela estava imóvel.
Imediatamente, ele se aproximou da filha e notou que ela não estava respirando.
Tomado pelo desespero, Márcio começou a gritar, o que acabou acordando Joana, que, também assustada, foi até o quarto das crianças.
Ao perceber o que havia acontecido com a sua filha, Joana saiu pela rua gritando, clamando por socorro, o que chamou a atenção de uma vizinha, Clarissa.
Preocupada com o que poderia ter ocorrido, Clarissa foi até a residência da família. Ao se deparar com a cena de Maria desfalecida sobre o colchão, Clarissa voltou para a casa dela e acionou o SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência).
O socorro não tardou muito para chegar.
Logo que tiveram contato com a criança, o médico e os enfermeiros do SAMU verificaram que ela já estava morta há algumas horas.
Outro detalhe chamou a atenção dos profissionais: Maria estava com diversas “manchas roxas” espalhadas pelo corpo, principalmente na região do tronco. Manchas essas que muito se assemelhavam a hematomas.
Diante da suspeita de que a menina pudesse ter sido vítima de crime violento, a Polícia Militar foi chamada a comparecer ao local.
Quando entraram na residência, os policiais fizeram uma rápida vistoria. A cena que viram causou arrepios neles.
A casa se encontrava bastante suja, com os móveis em péssimo estado de conservação. Haviam roupas sujas espalhadas por todos os cantos. A louça estava acumulada sobre a pia. As paredes estavam completamente mofadas.
Pior, bem ao lado do quarto em que as crianças dormiam, havia um cômodo completamente cheio de entulhos.
No referido cômodo, havia areia, além de muito lixo e diversos objetos empilhados.
Diante deste cenário, reforçado pelas “manchas roxas” encontradas no corpo da menina, surgiu nos militares a desconfiança de que a morte de Maria tivesse alguma relação com eventual crime de maus-tratos praticado pelos pais dela.
A partir disso, comunicada a Polícia Civil, instaurou-se um inquérito policial.
A primeira providência tomada foi a realização de uma espécie de entrevista entre os dois irmãos de Maria com membros da Assistência Social, cuja finalidade era a descoberta de informações que pudessem ser úteis para a solução do caso.
Mais uma vez, um susto.
Quando foram dar um banho em Pedro, os assistentes sociais logo notaram que a criança estava usando a mesma frauda durante semanas. Por conta disso, o menino, além de bastante sujo, apresentava sinais de assadura.
Pedro também estava arranhado em várias partes do corpo.
Por sua vez, Isabela, que também se encontrava suja, estava com piolhos.
A situação acima narrada contribuiu ainda mais para as suspeitas de que Maria tivesse sido vítima de crime de maus-tratos com resultado morte.
As investigações apontaram outro caminho…
Os fatos que narrei acima, suponho, devem ter provocado certa revolta em alguns dos queridos leitores.
De fato, em um primeiro momento, tudo indica a prática de um crime por parte dos pais da criança. Pior, um crime envolvendo emprego de violência!
Ocorre que, com o avançar das investigações, a conclusão foi oposta.
Realizada necropsia no corpo de Maria, os laudos periciais foram inconclusivos no que se refere à causa da morte dela. A propósito, vejamos o teor do trechos destacado a seguir, extraídos do laudo pericial:
“Em face da ausência de ferimentos visíveis, bem como ausência de outros vestígios que pudessem sugerir morte violenta, fica este Perito impossibilitado de emitir um parecer categórico sobre o fato em tela.(…) Os resultados dos exames anatomopatológicos não demonstram achados conclusivos para se chegar a um diagnóstico preciso para a causa do óbito”.
E quanto às “manchas” encontradas no corpo da suposta vítima?
Os peritos esclareceram o seguinte:
Os achados com aspecto semelhante a hematoma no tronco, os quais chamaram a atenção do médico do SAMU que prestou atendimento, tratam-se de alterações cutâneas provocadas pela ação da força gravitacional, produzindo acúmulo de sangue dentro de micro vasos sanguíneos em áreas do corpo que ficam mais baixas, conhecidas como hipóstases e que podem cursar com pequenos extravasamentos do sangue acumulado e produzir o aspecto de hipóstases arroxeadas, sem contudo estarem relacionadas com qualquer tipo de traumatismo.”
Nota-se, assim, que, embora inicialmente pudesse haver certa suspeita de violência praticada pelos pais de Maria em face dela, tal suspeita não se confirmou.
Além do mais, ainda que tenham sido fartos os elementos que indiquem a forma precária como os pais e irmãos de Maria viviam, num ambiente sem higiene, no qual as crianças dividiam espaço com entulhos e roupas sujas jogadas pelo chão, bem como, ainda que tenha sido demonstrando que Marcio e Joananão eram diligentes quanto ao asseio de seus filhos, é errado entender que, no caso aqui narrado, possa ter ocorrido, em tese, o crime de maus-tratos com resultado morte (art. 136, § 2º, do CPB), conforme buscarei demonstrar a seguir.
Afinal, o que é o crime de maus-tratos?
O dispositivo legal acima mencionado traz a seguinte previsão:
Art. 136 – Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina:
Pena – detenção, de dois meses a um ano, ou multa.
§ 1º – Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena – reclusão, de um a quatro anos.
§ 2º – Se resulta a morte:
Pena – reclusão, de quatro a doze anos.
Há que ser observado, primeiramente, que o crime de maus-tratos só pode ser praticado por quem tenha autoridade, guarda ou vigilância de outra pessoa (crime próprio).
Além disso, aquele que se encontra em uma dessas situações deve agir com especial fim de educação, ensino, tratamento ou custódia. Do contrário, não há se falar em maus-tratos.
Para ficar mais clara a compreensão, observem o exemplo abaixo, extraído da obra do professor Rogério Greco, com algumas adaptações:
Pensemos no caso de um pai que, buscando educar seu filho, uma criança de 4 anos de idade, impede o menino de se alimentar durante sete dias, para que a criança entenda o valor dos alimentos.
Nesse caso, como se sabe, a imposição de jejum à criança pode causar danos graves ao organismo dela.
Assim, em tal caso, podemos raciocinar com a prática, em tese, do delito de maus-tratos, desde que da privação de alimento resulte perigo para a vida ou para a saúde da vítima [1] .
Por sua vez, voltando ao caso da morte de Maria, ainda que as condições do ambiente onde ela foi encontrada sejam péssimas; havendo indicativos suficientes de que os pais dela não vinham empregando o zelo necessário no que se refere à higiene dos filhos, não se apurou, no comportamento dos pais, a prática de quaisquer das finalidades especiais destacadas anteriormente.
Em resumo, o simples fato de Márcio e Joana conviverem com os filhos em um ambiente insalubre, ou mesmo dispensarem os cuidados mais básicos (como a higiene das crianças), não configura, por si só, o delito de maus-tratos, previsto no art. 136 do Código Penal.
Assim, embora os fatos apontassem para uma necessidade de acompanhamento social da família, o caso em tela não apresentou elementos suficientemente aptos a dar início a uma ação penal.
Por fim, ficou afastada qualquer possibilidade de erro médico. Isso porque, de acordo com o laudo pericial:
“(…) é comum na prática clínico-pediatrica a administração de medicamentos sintomáticos e o acompanhamento da evolução clínica. A alta hospitalar na vigência de estabilidade clínica não configura irregularidade (…)”.
Por conta disso, o inquérito policial foi arquivado por ausência de justa causa para o oferecimento da denúncia pelo órgão acusador.
Maus-tratos vs tortura
Finalizando o texto, vale lembrar que o crime de maus-tratos, estudado no presente artigo, não se confunde com o delito de tortura-castigo, previsto no art. 1º, inciso II, da Lei nº 9.455/97 (Lei de Tortura). Vejamos:
Art. 1º Constitui crime de tortura:
II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena – reclusão, de dois a oito anos.
Como se vê, no primeiro caso (maus-tratos), ao expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, o agente tem a finalidade de educar, ensinar, tratar ou custodiar essa pessoa.
Por outro lado, na tortura, a finalidade do agente ao sujeitar a vítima a intenso sofrimento físico ou mental é puramente a de castigar.
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Referência:
[1] Greco, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume II: introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra a pessoa / Rogério Greco. – 14. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2017, E-book, p. 329.