Internacional
Os desafios da histórica visita do papa ao Iraque
Após décadas de perseguição no país de maioria muçulmana, muitos integrantes da minoria cristã têm pouca esperança de que a viagem do sumo pontífice contribua para mudar a situação
O papa Francisco iniciou uma viagem histórica de quatro dias ao Iraque nesta sexta-feira (05/03), marcando a primeira visita de um líder máximo da Igreja Católica ao país de maioria muçulmana. Na viagem, que tem com slogan “somos todos irmãos”, ou seja, a fraternidade inter-religiosa, o sumo pontífice de 84 anos deve percorrer o país de ponta a ponta.
O papa pousou na capital, Bagdá, onde foi recebido pelo ministro do Exterior iraquiano, Fuad Hussein, que disse que os iraquianos estão dispostos a receber a “mensagem de paz e tolerância” do papa. Hussein chamou a visita de um encontro entre “o minarete e os sinos”.
A turnê de Francisco inclui missas em Bagdá, e em um estádio na cidade de Irbil, no norte; um encontro com clérigos muçulmanos na cidade de Najaf, no sul; e um voo de helicóptero até a cidade de Mossul, no norte.
Os líderes cristãos iraquianos costumam dizer que estão ameaçados de “extinção” no país de maioria muçulmana e previram que as comunidades cristãs locais seguirão o mesmo destino que a outrora próspera população judaica do Iraque. Hoje, relatos individuais sugerem que menos de dez judeus permanecem em Bagdá.
Berço da civilização
Os cristãos estão presentes em áreas hoje conhecidas como Iraque desde o século 1 d.C. A Bíblia sugere que a antiga cidade de Ur – onde o papa Francisco rezará no sábado – é o local de nascimento de Abraão, pai das religiões abraâmicas, que incluem o cristianismo, o judaísmo e o islamismo.
Através dos séculos, o desenvolvimento da comunidade cristã do Iraque foi em grande parte determinado por quem estava no comando, fossem otomanos, mongóis, persas ou árabes. Ao longo deste século e no último, a minoria cristã – como muitas outras minorias no Iraque – enfrentou discriminação e perseguição da maioria muçulmana do país e de seus vários líderes.
Sob o regime de Saddam Hussein, os cristãos locais, que pertencem a uma das 14 seitas existentes, eram tolerados pela ditadura predominantemente secular. Mas depois da invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 2003, enquanto o país caía na violência sectária, os cristãos iraquianos passaram a sofrer um tratamento pior.
Em comunidades cada vez mais divididas, os cristãos locais eram frequentemente suspeitos de ajudar os invasores “cruzados” dos EUA – uma referência às guerras religiosas de séculos que começaram no final do século 11, quando os cristãos partiram do oeste para lutar contra os muçulmanos.
Impacto do papa
Mais recentemente, os cristãos fugiram de distritos do norte, que ocuparam por séculos, depois que o grupo extremista conhecido como “Estado Islâmico” invadiu a capital da província de Nínive, Mossul, e áreas vizinhas.
Cerca de 1,4 milhão de cristãos no país foram contados em um censo do governo iraquiano de 1987. Mas, nas últimas três décadas, seu número despencou, conforme os cristãos emigraram. Hoje, estima-se que haja entre 200 mil e 300 mil cristãos no Iraque.
Bashar Matti Warda, o arcebispo caldeu de Irbil, não acredita que a ida do papa tenha impacto concreto no cotidiano dos cristãos no Iraque. “Não vai ajudar os cristãos material ou diretamente”, diz Warda. “Porque estamos realmente em um sistema político e econômico muito corrupto. Não há dúvida disso. Ele [papa Francisco] ouvirá palavras bonitas. Mas quando se trata das questões do dia a dia, não. Acho que aí é uma história diferente”, afirmou o religioso em entrevista à agência de mídia da Conferência dos Bispos Católicos da Inglaterra e País de Gales (CNN).
“Venha ver nossa realidade”
Reemon Youssef Matti, cristão iraquiano que vive no campo de refugiados da Virgem Maria em Bagdá, após ser desalojado de sua casa em Nínive, gostaria que o papa Francisco o visitasse.
“Ele não deveria só ir a Bagdá e percorrer as ruas limpas; ou ir a lugares que foram especificamente montados [para a visita] como uma miragem. Queremos que ele venha aqui e viva a realidade”, diz Matti, cuja família decidiu não voltar para casa, apesar do fato de o Iraque ter iniciado o fechamento de campos de refugiados no ano passado.
“Venha ver a situação dos cristãos, venha ver as nossas condições. Você é o homem da paz, venha viver a nossa realidade”, apela.
Cerca de 8 mil famílias cristãs voltaram para suas casas em Nínive, mas a segurança continua sendo um problema na região, assim como a presença de grupos paramilitares pró-Irã.
Considerados hereges
“A vida não é necessariamente tão perigosa como antes para os cristãos no Iraque”, diz Mariam, uma cristã residente em Bagdá. Ela e sua família se mudaram para um subúrbio diferente em Bagdá depois que sua igreja foi destruída por uma explosão. A organização extremista Al Qaeda assumiu a responsabilidade pelo ataque em 2006.
Mas, muitas vezes, Mariam, que não diz seu nome completo por motivos de segurança, sente que sua fé não é respeitada. Sua família recentemente encomendou uma faixa com uma escritura bíblica para lembrar a morte de sua avó. O pedido foi recusado pela firma. “Eles disseram ao meu irmão: ‘Não vou escrever isso. É haram [proibido]. Eu considero blasfêmia’. Chegamos a esse nível, em que não respeitamos as crenças dos outros?”, diz Mariam.
Mas é nesse sentido que muitos iraquianos acreditam que a visita do papa Francisco fará bem. O arcebispo de Irbil Warda crê que a viagem do pontífice fará com que a maioria muçulmana pare para pensar.
“Isso vai levantar muitas questões e pensamentos”, acredita. “Alguns serão negativos. Provavelmente alguns muçulmanos linha-dura não vão gostar. Mas eu diria que a maioria dos muçulmanos vai gostar, vai ouvir, e começar a cavar fundo na história para descobrir: quem são esses cristãos? Eles são infiéis, como sempre ouvimos? Qual é a sua contribuição?”, ressalta. “Esse é o benefício de longo prazo da visita.”
“É também por isso que o curto, mas histórico encontro de sábado entre o papa Francisco e o aiatolá xiita Ali al-Sistani é tão importante”, afirma Saad Salloum, cientista político e um dos fundadores do Conselho Iraquiano para o Diálogo Inter-religioso. “Al-Sistani é como o papa para os muçulmanos xiitas, seu Vaticano é Najaf”, compara.
Coexistência pacífica?
Em fevereiro de 2019, o papa Francisco se encontrou com o líder religioso muçulmano sunita Ahmed al-Tayeb no Egito, e os dois assinaram uma declaração defendendo a coexistência pacífica entre as religiões.
Nenhuma declaração semelhante está planejada com al-Sistani – mas Salloum acredita que a reunião causará um grande impacto nos outros iraquianos. “Isso enviará uma mensagem forte à minoria xiita no mundo árabe e islâmico”, acredita o especialista.
“A visita do papa também deve fazer os líderes do país pensarem mais sobre a importância da diversidade em geral”, sublinha Salloum. Isso é algo que ele acredita ser a chave para o futuro do Iraque. “Nossa fortuna não está no petróleo. Está na diversidade”, destaca o cientista político.