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Judiciário

A corrupção, no enfrentamento às avessas, é socialmente adequada

Examina-se a triste realidade de uma fila de corruptos que aumentará, mas pela razão de que a omissão no seu ataque efetivamente virou regra, constituindo a corrupção, pelo relaxamento ministerial, uma prática “socialmente adequada”

um adendo didático à (in)competência ministerial

O Brasil, remontando aos primórdios de 1º de maio de 1500, é um país corrupto por natureza. A História retrata, como se fosse uma “certidão de nascimento”, um vezo de corrupção advinda dos colonizadores portugueses. Trata-se do primeiro registro oficial de corrupção: a carta de Pero Vaz de Caminha (escrivão da armada de Pedro Álvarez Cabral). Tal mensagem, direcionada ao rei D. Manuel, não obstante relatasse o então “descobrimento” do Brasil — uma terra que já tinha donos, os índios —, teria sido escrita com o propósito de possibilitar uma vantajosa forma de banimento ou pena de desterro ao genro do próprio escritor, Jorge Osório, o qual seria libertado da prisão, na ilha de São Tomé.[1]

Não por acaso, malgrado a cruel matança do povo indígena protagonizada pela cobiça dos novos portugueses abrasileirados, a famigerada frase do Padre António Vieira já faria um exórdio icônico do Brasil hodierno: “o ladrão que furta para comer não vai nem leva ao Inferno: os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são os ladrões de maior calibre e de mais alta esfera“.[2] Nessa ordem de fatores, a ausente meritocracia do Brasil-colônia, a qual cedeu espaço para a troca de favores e conchavos palacianos, passou pela venda de cargos, subserviência, tradicionais amizades de mão dupla, enfim, quase tudo o que ainda se acompanha no noticiário nos recentes anos.[3] Deveras, está-se descrevendo fatos de um pouco mais do que meio milênio, mas há algo em comum que remanesce na atualidade — a vezeira corrupção.

Não há novidade alguma, visto que havia uma simpatia tácita predominante no já longínquo limiar do século XVIII no contrabando de ouro. Aí estava consumada a corrupção pela secular complacência das autoridades religiosas. Tanto assim ocorrera que a máxima “santinho do pau oco” ganhou robustez em função do preenchimento de estátuas de madeira com o ouro em pó, o que facilitava a premeditada ocultação com fim ímprobo.[4]

Revivescência moderna do “bom ladrão” e do “santinho do pau oco”, proveniente do período colonial/imperial registrado em sermão pelo Padre, o Brasil descortina neste século a diária matança que se repete na cobiça daqueles que continuam matando em troca de bens materiais. É dizer, nada mudou, em verdade, piorou! Há, é evidente, maior pudor na cultura do apadrinhamento na distribuição de cargos, as constantes trocas de favores, a manutenção de “vantagens”, atos administrativos maquiados de fim público, desídia, omissão e, por incrível que pareça, toda espécie de formalidades retóricas que desviam o escopo de uma devida apuração, mas redundando na real impunidade, o que se confunde com a gênese da própria corrupção nos idos do império/colônia.

Por seu turno, tirante aqueles que roubam para matar, ou matam para roubar, é digno de massacre o resultado da corrupção. Desde superfaturamento em obras públicas, até atos administrativos com fim particular, tudo, mas absolutamente tudo redunda nos bilhões e mais bilhões que mensalmente faltam aos hospitais, escolas, segurança, saneamento e o mais. O detalhe é que a falta de formação educacional, também porque efetivamente há má-educação (aquele que se acha esperto tirando proveito), possibilita a disseminação de ignorantes astutos por todo o país. E eles são facilmente encontrados no trânsito, nas chicanas tributo-fiscais, nos presídios, nas casas legislativas e até nas instituições estatais de controle. Sim, “o santinho do pau oco” também é encontrado nas instituições estatais e oficiais de controle e enfrentamento da corrupção, reitera-se.

Daí se afirmar, conclusivamente, que está sedimentada a cultura corruptível dessa máquina desejante que todos somos, a (mau) exemplo do Estado. Nem os índios que morreram neste chão, tampouco os que se dizem donos da terra tomada daqueles podem fugir da responsabilidade. Sendo assim, pontua-se a responsabilidade, que não é mais de Portugal, e sim das autoridades e agentes públicos, em especial os cidadãos de bem, no que concerne ao tratamento que o Brasil destina à corrupção, e mais complexamente aos efeitos dela.

A título de minúcia periférica, mas a erigindo ao aspecto principal com a incitação da dialética, suponha-se que, após denúncias de corrupção devidamente encaminhadas por parte de um agente público, haja processos administrativos eivados de nulidade, arquivamentos indevidos, provas suficientes da materialidade e autoria acerca de atos de corrupção no âmbito de uma empresa estatal. Suponha-se, outrossim, que haja sido noticiado, entre diversos, ao menos um fato capital e capaz de ensejar crime contra a Administração Pública e até ato de improbidade administrativa. A despeito dessas situações hipotéticas, um tanto corriqueiras na seara do Estado, o que fazer quando a instituição “suprema” de acusação (Conselho Superior do Ministério Público, por exemplo) trivializa a corrupção, conferindo tratamento desidioso e omissivo a provas curiais?

Seria o paulatino resgate da acepção de “bom ladrão”, agora não mais pelo jesuíta antes citado, ascendendo à tentativa de justificar a incapacidade do Estado-acusador de enfrentar a corrupção? Sendo um pouco mais exato, em que se fundamentaria o ato de prevaricar uma acusação formal quando há prova da materialidade e autoria suficientemente fornecida pelo informante do bem? Não se está aqui a escrever acerca de prevaricação, conivência, omissão etc. descobertas por denúncias de um agente que observa crimes no cotidiano de seu labor junto ao serviço público estatal. Não, pois é bem mais grave que isso! Está-se a enquadrar um retrocesso na atuação pública, o passo seguinte ao crime denunciado pelo observador (informante do bem): a negativa do dever de persecução penal, pelo Estado-acusador, quando há prova cabal de materialidade e autoria.

Imagine-se sequencialmente a situação do informante do bem, que hipoteticamente é o agente público do enredo a seguir:

  1. O informante do bem flagra seu colega, também agente público, cometendo ato de improbidade em empresa estatal;
  2. O informante denuncia esse crime ao seu superior hierárquico;
  3. O superior hierárquico então é conivente, pela omissão, e igualmente pratica ato de improbidade;
  4. O informante, percebendo estes crimes em continuação, denuncia-os ao superintendente (instância superior) para que sejam apurados;
  5. Já há muito tempo desconfiado, o informante do bem descobre que as apurações não ocorreram e que o superintendente, com o aval de diretor (outra instância superior), resolveu arquivar as denúncias;
  6. O informante do bem então pede abertura de sindicância, a qual, passados mais de dois (2) anos, não ocorre, sob grande suspeita de influências indevidas;
  7. Percebendo e relatando novos crimes, o informante do bem passa a receber retaliações diversas, comunica a diretoria da empresa estatal acerca de antigos e novos casos, mas descobre que, quando do começo de determinada sindicância, este processo está eivado de nulidade por culpa da atuação negligente da Comissão Sindicante. A tal sindicância, passados quatro (4) anos, continua, ou prossegue mal, mesmo com nulidade flagrante;
  8. O Ministério Público é acionado pelo informante do bem, todavia, sobre os fatos narrados e provados, o órgão ministerial conclui que são meros dissabores enfrentados pelo denunciante;
  9. O informante do bem recorre argumentando que provas foram ignoradas pelo órgão ministerial, mas complementa o recurso com novos fatos e provas adicionais, na certeza de que as questões consumadas estão bem embasadas. Há de lembrar que uma elevada suspeita já bastaria para que o MP abrisse apuração, sem provas;
  10. O Conselho Superior do Ministério Público então delibera pelo arquivamento das denúncias, referendando a negativa das provas ignoradas anteriormente.

Ora, reiteradas condutas de desídia, prevaricação (arquivamentos indevidos de denúncia, por exemplo) e omissão para fatos provados deveriam ser perquiridas na esfera cível, sob o abrigo da normatização específica da Lei n. 8.429/1992 (Art. 11, II), diploma este aplicável a todos os agentes públicos, inclusive àqueles do Conselho Superior do Ministério Público, como no caso hipotético preteritamente aventado. Noutro sentido, arquivamentos indevidos pelo órgão ministerial também se enquadrariam nas medidas previstas no art. 801 do CPP, vez que o atraso no andamento de eventual apuração poderia estar diretamente relacionado ao aumento de retaliações contra o próprio denunciante. Atende, assim, ao reclamo de Dirceu de Mello:

É certo, outrossim, que, no plano hierárquico, comprovada a relapsia do representante do Ministério Público, ficaria o mesmo sujeito às sanções de direito, ordinariamente previstas nas bases institucionais da carreira. De minha parte, bem de ver, como meio eficaz de combate à desídia ministerial, advogo a mantença da punição prevista no art. 801 do CPP. Verificado o atraso, injustificável, decretariam tais sanções os escalões hierárquicos.[5]

Bastante razoável esse pensamento, inclusive considerado quando se expõe as mazelas pragmáticas de informantes do bem sob o pálio de um conjunto de provas fáticas e autorais que nada servem para “especialistas em acusação”, que, em tese, deveriam primar exemplarmente pela fiscalização da lei e da probidade em funções estatais, epicentro axiológico de incumbências demarcadas constitucionalmente. Em breves linhas, contextualiza-se demonstrando que o exemplo que vem de cima — tone of the top —, no exercício específico de membros do Ministério Público e dos seus misteres de fiscalizar e fazer valer a lei, apresenta um traço contraditório na consecução da justiça — a que tarda e, portanto, falha, em esteio à corrupção.

Demais disso, importante consignar que aqui estaria ocorrendo improbidade proveniente de outras práticas faltosas denunciadas anteriormente. Bem por isso, não suficiente a complexidade já existente na conduta do agente denunciante (pelos corolários nefastos do dever de denunciar), por apenas ter empregado efetividade ao seu dever funcional, muito mais agora terá de agir da mesma forma, isto é, ensejar nova denúncia atinente à atuação do órgão ministerial. Do contrário, acaso assim não aja, restará sua omissão/conivência para fatos que tem, reitera-se, o dever de informar às autoridades, sujeitando-se a antagonizar um dever posposto a outro de igual ou maior responsabilidade funcional.

Sem embargo, é bem de ver que a negativa reiterada de denúncia (que prova materialidade e autoria) por parte do órgão ministerial soa como prêmio à impunidade de criminosos e à desídia flagrante de membros daquela instituição. Ademais, não se pode descurar que a inércia ministerial face aos crimes denunciados não põe termo à controvérsia, pelo contrário, pois pode fazer com que, nesse suposto caso, agentes públicos da empresa estatal tenham um salvo-conduto para continuar delinquindo e amedrontando denunciantes.

Augurando uma leitura ativa, para, além da responsabilidade do Estado-acusador, nesse momento, perquirir do leitor o que este faria no presente caso. Vamos às hipóteses de sua função pública, na responsabilidade ínsita ao informante do bem:

  • Levaria em frente a denúncia, pois tem certeza, ou elevada suspeita, de que membros do Ministério Público estão prevaricando no trato de provas de materialidade e autoria?

Perceba que o desgaste, que já lhe estaria assaz penoso pelas retaliações, tenderia a ampliar pela abrangência do que passaria a denunciar.

Ou então…

Na menor dúvida, silenciaria a respeito do que observa no Ministério Público, permitindo que os crimes que antes denunciou na Administração Pública consolidem maiores efeitos retaliativos para o que sequer no âmbito da empresa estatal foi objeto de efetiva apuração?

Apreenda que, nessa hipótese, você estaria se omitindo do dever funcional que lhe é destinado pela norma. Mais ainda, porque correria o risco de sofrer maiores sanções pelo fato de condescender criminosamente, não suficiente sua antecipada pena, de retaliações já amargadas por ter denunciado agentes públicos, possa perdurar.

Emerge clara a conclusão segundo a qual, na qualidade de informante do bem, incertezas, no mínimo éticas, pairam sobre a custosa aplicação da lei para com o dever que lhe cabe. Melhor dizendo: cruza o denunciante sobre uma corda bamba, que, se não lhe derrubar por ter cumprido o dever funcional de denunciar a corrupção junto ao serviço público estatal, pode lhe derrubar por novamente não faltar com seu zelo combatendo prevaricação, desídia e omissão praticada por agentes púbicos pertencentes dos quadros da “Função Essencial à Justiça”. Nesse interim, enquanto o balanço da corda compromete o informante do bem, o cansaço físico e mental, somado às diversas retaliações criminosas que lhe foram impostas por ter cumprido seu dever, podem fazê-lo repensar se vale a pena ou não fazer o que é certo, não importando contra o arbítrio de quem.

Não se vislumbra óbice a que, em alguns casos, as ameaças de morte, o medo, o isolamento, os vínculos afetivos acabados, o diálogo cessado no âmbito profissional, os assédios físicos e morais, a saúde e finanças prejudicadas etc. podem fazer o agente público optar entre uma vida que vira de ponta-cabeça, quando não se omite do seu dever funcional (denunciando); ou uma vida que é complacente com a corrupção, incentivadora de um fazer por omissão quando em serviço à coletividade, enfim, mas garantidora de uma paz e normalidade superficial (sendo conivente).

Denunciar ou não denunciar? Essa dúvida paira até para aqueles que representam os mais elevados ideais de boa-fé no ato de denunciar. Entretanto, é preciso alertar que o vertiginoso recrudescimento da corrupção, inclusive aquela trivial, tem revelado, com a abominável e odiosa chancela do Ministério Público (dada a hipotética exposição acima), a massiva escolha pela segunda alternativa. E é simples explicar: as consequências várias advindas da denunciação, genericamente escrevendo, transmudam-se para uma punição antecipada e sem contraditório ou ampla-defesa contra o informante do bem, cristalizando preceitos invertidos — a saber: com a escora ministerial rebuçando a ordem constitucional.

Se isso representa a revivescência moderna do “bom ladrão”, proveniente do período colonial/imperial registrado em sermão pelo Padre António Vieira, consoante se principiou, estaremos fadados a amargar ciclicamente as consequências da pequena corrupção. A propósito da trivial corrupção, vale a seguir tecer algumas considerações sobre a operação Lava Jato.

Prova da encimada assertiva, para a infelicidade do autor — o que não lhe frustra o objetivo profissional e nem lhe torna avesso ao respeito pela instituição —, o Ministério Público, sem desmerecer suas atuações com acerto indiscutível, tem culpa especial na cíclica e histórica corrupção. Fruto de seu tempo, enxugar gelo serve para alcunhar o cotidiano da ainda estimada instituição, e isso quem fala são seus próprios membros, contudo, muito mais do que operações famosas mundialmente reconhecidas — à guisa da Lava Jato —, a instituição peca justamente no que principiou essa operação: a pequena corrupção, cuja troca de favores, atos com desvio de finalidade e diversas outras artimanhas são irmãs siamesas, mas ainda aceitas com um quê de normalidade na Administração Pública e pela própria instituição ministerial.

Aqui muito se escreve “por tabela”, porquanto se põe a nu condutas faltosas, mas quem tem amor à Administração Pública — pelo que ela representa em nossos amargos tributos, pelo que deveria retribuir à desigual coletividade e ao próprio autor em serviços de segurança, saúde, saneamento e educação — não pode pensar se o agente público a ser denunciado por ser flagrado em corrupção é servidor “arigó” de uma prefeitura do interior ou se é Procurador do Ministério Público Federal em uma capital. Ambos têm o mesmo dever ético-moral, ambos deveriam seguir os mesmos princípios e valores, talvez um com mais intensidade representativa que o outro, dependendo da circunstância, ainda assim os dois agentes mereceriam o devido processo legal e todos os direitos cabíveis no caso de uma denúncia eventualmente praticada pelo noticiante, cujo ato esperar-se-ia não levar em conta a pessoa ou a função, senão a corrupção em si. Afinal, como aduzem os membros do Ministério Público do Rio de Janeiro, Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves:

A desonestidade e a desídia, pejorativos ainda comuns entre alguns agentes públicos, ramificam-se em vertentes insuscetíveis de serem previamente identificadas. Soltas as rédeas da imaginação, é inigualável a criatividade humana, o que exige a elaboração de normas que se adaptem a tal peculiaridade e permitam a efetiva proteção do interesse tutelado, in casu, o interesse público. É este, em essência, o papel dos princípios.[6]

Esclareça-se que falar em interesse público e em princípios é destinar, no papel de um agente estatal, efetividade prática, não apenas retórica. Não fosse esse supedâneo normativo de conduta esperada, bastaria ao informante do bem juntar suas provas de materialidade e autoria, jogá-las no lixo e seguir sua vida sem todo o estresse e efeitos diversos desse urdido dever de denunciar. Seguiriam normalmente os crimes todos junto à empresa estatal, eventualmente algum deles suscitariam uma mega operação, com a fama de juízes e promotores faturando milhões em venda de livros e palestras, quiçá, outrossim, bilhões no extrato final de valores recuperados dos esquemas apurados. Enfim, a corrupção continuaria dentro da “normalidade imperial”, com o Ministério Público dando carta branca a uma e a outra conduta criminosa, dependendo do interesse desse ou daquele Promotor Público que viesse a analisar ou ignorar provas.

Entremeado de fortes cargas valorativas, pode-se dizer, sem temor de erronia, que fique um sinal de alerta àquele corajoso ou corajosa que queira denunciar casos complexos junto à Administração Pública: sua existência, como informante do bem, pode acabar talqualmente a dos índios no período imperial, com seus bens arruinados, sua dignidade, saúde e paz logradas (a família acaba indiretamente penalizada), resultando que sua vida pouco sentido fará, se ainda a possuir, dependendo dalguma depressão que venha a desenvolver, ocasionalmente também se sujeitando à crueldade do ato volitivo e vingativo derivado do agente público denunciado. Depois de tudo isso, com muita sorte, talvez seu nome não acabe sendo eternamente estigmatizado entre os relacionamentos por via de formalidades e chicanas processuais que invertam a boa intenção de seus atos, ficando conhecido como “dedo-duro”, “agente público chato”; ou até pior, qual seja “portador de problemas mentais/psicológicos” a título de corolários de retaliações que sequer o Ministério Público valorará em seu respeito.

William Shakespeare,[7] ao escrever a peça The Tragedy of King Lear, em que conta a história de um rei que legou poder e bens para duas de suas três filhas, bem polemizou a corrupção pelo que somente as duas que tolamente bajularam e obsequiaram aquele monarca, com fim trágico, auferiram a tal benesse, expressando: “Nothing can come of nothing”.[8] À luz de similar exegese, a natureza impura do ser humano desafia o mérito ético-moral, consubstanciando-se na impunidade com que o Estado passa a incentivar, dada a forte carga criminológica, quando se abstém de apurar crimes. No mais, conquanto haja cizânia, o informante do bem, em tal situação, não deverá se calar. Afinal, nada pode surgir do nada, de modo que, em silenciando o denunciante, a “normalidade” do Brasil-colônia perdurará com o órgão ministerial prestando inegáveis contribuições à continuidade da corrupção.

Começam aqui um sem-número de certezas!

Presta o Conselho Superior do Ministério Público prova cabal de que o crime compensa, de que a sua denunciação se reverte em pena antecipada ao denunciante e de que o débito da corrupção acaba ficando, tanto com o informante do bem, quanto com a sociedade, cujos tributos são um incentivo aos vencimentos de membros de uma instituição que falta com seu dever constitucional. Subverte-se, gritantemente, o âmago dos limites, porquanto o Estado-acusador trivializa a corrupção.

Depreciando preceitos normativos — em pleno momento normativo no qual vigora o Pacote Anticrime (Lei 13.864/2019), não menos importante no que toca ao whistleblower (Lei 13.608/2018) —, o Ministério Público não consegue se desvencilhar de hábitos centenários, também incrustados no “estado” falho de acusação do Estado, vez que permite a corrupção ignorando provas, mas destina desdém à descarga retaliatória. Resta notória, pois, a lacuna entre a lei e a realidade, muito mais à utopia em honrar os códigos de ética profissional estabelecidos. Acaba que a corrupção ganha corpo, enquanto sua denunciação, verdadeira guerra psicológica, torna-se falsa esperança que alimenta o medo daqueles receosos em relatar algum fato criminoso. E a corrupção, logicamente, prospera, gerando um paradoxo que escapa aos deveres e princípios, conforme pontua Emerson Garcia:

Evitar que a corrupção se generalize e se torne sistêmica é dever de todos, o que importará na preservação de todas as instituições dotadas de poder decisório e evitará que utilizem este poder de forma discricionária em favor de determinados grupos e em detrimento do interesse público.[9]

Fragmento da miséria moral, a corrupção se mostra organizada, um tanto institucionalizada, já que enraizada no Estado-acusador, cuja subserviência à impunidade é imposta ao informante do bem. Sobeja pífia a liça penosa do denunciante, o whistleblower, ao observar que provas contundentes de crimes são um chamariz à prevaricação, omissão e desídia no enfrentamento da corrupção, demonstrando que a desonestidade é o padrão, pois o brasileiro tem pouquíssimas razões para ser honesto. Essa é a triste realidade de uma fila de corruptos que aumentará, mas pela razão de que a omissão no seu ataque efetivamente virou regra, constituindo a corrupção, pelo relaxamento ministerial, uma prática “socialmente adequada”.

Despontando como réstia momentânea de esperança do autor, o Brasil precisa ser redescoberto, não para que tomem terras que não nos pertençam, mas, agora, preferencialmente para um Estado que efetivamente não simpatize com a corrupção junto à própria instituição que deveria fiscalizá-lo, prestando socorro e um mínimo de respeito àqueles que se submetem à lealdade moral e legal, mesmo que sob efeitos colaterais, de denunciar.

OBS.: Sendo, ou não, um esboço baseado em fatos em curso, o autor tem MEDO.


NOTAS

[1] ALVES FILHO, Ivan. Brasil 500 anos de documentos. Rio de Janeiro: Editora Mauad, 1999, p. 22.

[2] VIEIRA, Antonio. Sermões. Organização e introdução de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2014, p. 395.

[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito parte especial: arts. 213 a 361 do Código Penal. 3. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2019. Parte 6, cap. 1. E-book.

[4] CAVALCANTI, Pedro. A corrupção no Brasil. São Paulo: Siciliano, 1991, p. 30.

[5] MELLO, Dirceu de. Ação penal privada subsidiária: origem, evolução e efeitos de sua extinção, em perspectiva, no campo da desídia funcional do Ministério Público no direito brasileiro. Revista de Processo, n. 2, 1976, p. 212-213.

[6] GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 7. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. E-book.

[7] LAMB, Charles. Contos de Shakespeare. Tradução de Mario Quintana. 8. ed. São Paulo: Globo, 2013. E-book.

[8] BONFIM, Edilson Mougenot. Júri: do inquérito ao plenário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 59.

[9] GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 7. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. E-book.

Créditos da imagem: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Pedro-e-297-a_0001_1_p24-C-R0150_cropped.jpg

AUTOR

Elton Rockenbach Baron

Bacharelando em Direito, Empregado Público Estadual e aspirante a Promotor de Justiça.

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