Internacional
Uma vitória para os palestinos?
TPI abre investigações sobre situação da Palestina após a confirmação da jurisdição pela Câmara de Pré-Julgamento
Em 3 de março de 2021, o Tribunal Penal Internacional (TPI) publicou uma declaração da procuradora, Fatou Bensouda, confirmando a abertura de uma investigação sobre crimes internacionais perpetrados em território palestino.
Apenas um mês antes disso, a situação da Palestina no TPI já havia sido objeto de outra importante decisão: a da Câmara de Pré-Julgamento I que estabeleceu que a Palestina poderia transferir jurisdição para o Tribunal sobre os territórios ocupados.
A decisão da Câmara de Pré-Julgamento I, de 5 de fevereiro de 2021, foi proferida em resposta a uma interpelação do Gabinete da Procuradora sobre o exercício da jurisdição do TPI na situação da Palestina.
Com base no artigo 19(3) do Estatuto de Roma, a Procuradoria questionou se, em face de sua controversa situação perante o direito internacional, a Palestina pode ser considerada um Estado para os fins da aplicação do artigo 12(2)(a) do Estatuto de Roma e, em caso afirmativo, sobre qual extensão dos territórios ocupados o Tribunal poderia exercer sua jurisdição.
Tanto o pedido da Procuradoria quanto a decisão da Câmara de Pré-Julgamento I fazem a ressalva de que deve haver uma distinção entre determinar a extensão do território sobre o qual o Tribunal pode exercer a sua jurisdição e a delimitação territorial de um Estado.
O exercício da jurisdição e o reconhecimento da soberania, então, não devem ser confundidos. A decisão da Câmara tem apenas o papel de estabelecer o status da Palestina perante o Estatuto de Roma e não o de definir de maneira mais ampla sua situação sob o direito internacional.
A decisão da Câmara de Pré-Julgamento I, portanto, examina separadamente as duas questões colocadas pela Procuradoria: se a Palestina pode ser considerada um Estado para efeitos do Estatuto de Roma; e, em caso afirmativo, sobre quais territórios o Tribunal pode exercer sua jurisdição.
Ao avaliar se a Palestina pode ser considerada um “Estado em cujo território a conduta em questão ocorreu” acionando-se o artigo 12(2)(a), a Câmara leva em consideração o papel ativo da Palestina na Assembleia dos Estados Partes do Estatuto de Roma[1] e a ausência de qualquer procedimento contra sua adesão ao TPI, além da falta de competência da Câmara para revisar a própria adesão em si, para afirmar que a Palestina deve ser tratada como um Estado para os fins do Estatuto de Roma.
A lógica é que a revisão do processo de adesão de um Estado seria uma extrapolação da análise da aplicação do artigo 12(2)(a) para um escrutínio do significado de Estado para o direito internacional, uma avaliação que não compete à Câmara de Pré-julgamento.
Por não ser competente para se pronunciar sobre a adesão da Palestina e tendo em mente que o Estatuto de Roma entra em vigor automaticamente para cada Estado Parte, a Câmara considera que a Palestina é um Estado apenas para os fins de aplicação do Estatuto de Roma.
De acordo com a Câmara, adotar uma postura diferente seria contraditório, uma vez que não faria sentido deixar a Palestina se tornar membro da Corte e decidir contra sua capacidade de transferir o exercício da jurisdição para o TPI.
Uma vez avaliada a questão do status palestino perante o Estatuto de Roma, resta à Câmara avaliar a delimitação do território sobre o qual o TPI pode exercer sua jurisdição.
Aludindo ao fato de que fronteiras disputadas nunca serviram como obstáculo à adesão de um Estado ao Estatuto de Roma e ao reconhecimento do território palestino como aquele ocupado em 1967 por Israel, a Câmara decidiu que a Palestina pode transferir jurisdição para o TPI sobre a Cisjordânia (incluindo Jerusalém Oriental) e Gaza.
Com base nos argumentos acima, a Câmara decide, por maioria, que a Palestina se qualifica como um Estado para os fins do artigo 12(2)(a) do Estatuto de Roma e a jurisdição territorial do TPI abrange os territórios ocupados por Israel desde 1967 (Faixa de Gaza e Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental). O juiz Kovács foi o voto contrário.
Porém, não discorda da ideia de que o TPI tenha jurisdição sobre a situação da Palestina. Sua divergência se deve ao fato de que essa jurisdição está limitada pelas barreiras estabelecidas pelos Acordos de Oslo.[2]
A decisão da Câmara de Pré-Julgamento I é um passo positivo em direção ao reconhecimento de que a Palestina não está em um limbo jurídico no qual crimes sob o direito internacional não são responsabilizados.
Ao mesmo tempo, significa um pequeno passo na busca por justiça para a Palestina. Tanto a Câmara de Pré-Julgamento I quanto a Procuradoria, em suas manifestações, enfatizaram reiteradamente que se trata apenas de uma definição com o objetivo de determinar a jurisdição territorial do Tribunal.
A avaliação jurisdicional, portanto, foi feita da forma mais restrita possível para que as conclusões permaneçam limitadas à definição dos parâmetros territoriais da investigação no TPI e não ocasionem implicações políticas que ultrapassem os propósitos do Estatuto de Roma.
Além disso, mostra um excesso de cautela com medidas aparentemente redundantes. A “necessidade” do reconhecimento da Palestina como Estado se afirma apesar de já haver ocorrido no momento de sua adesão ao Estatuto de Roma, fato que já havia sido mencionado como suficiente pela própria Procuradoria em instâncias anteriores. A reiteração sugere uma relutância dos órgãos do Tribunal de adotar uma posição assertiva sobre o status da Palestina sob o direito internacional.
Alguns acadêmicos têm destacado que a decisão da Câmara de Pré-Julgamento I, entretanto, não é definitiva. A Câmara de Apelações seria o órgão do Tribunal com a autoridade final em matéria de jurisdição.
E, aparentemente, a Câmara de Pré-Julgamento I tem isso em consideração, já que afirma, no último parágrafo da decisão, que suas conclusões apenas “dizem respeito à fase atual do processo, nomeadamente o início de uma investigação pela procuradora.”
A história da relação palestina com o TPI
A decisão da Câmara de Pré-Julgamento I decorre de uma longa batalha da Autoridade Palestina pela responsabilização criminal por crimes perpetrados nos territórios ocupados. A primeira tentativa ocorreu em 2009, quando a Palestina entregou ao TPI uma declaração ad hoc aceitando o exercício da jurisdição do Tribunal em seu território.
O então procurador do TPI, Luis Moreno Ocampo, entretanto, opinou, em 2012, que, devido à falta de clareza sobre a situação da Palestina sob o direito internacional e à falta de uma disposição no Estatuto de Roma que defina o órgão competente do Tribunal para determinar se essa entidade poderia constituir um Estado não-Parte, a decisão caberia a dois órgãos políticos que teriam o poder de reconhecer se a Palestina seria ou não um Estado sob o direito internacional: a Assembleia dos Estados Partes do Estatuto de Roma e o Secretário-Geral da ONU.
Esta decisão invalidou a declaração entregue em 2009 ao TPI e encerrou os exames preliminares sobre a situação da Palestina. No entanto, deixou em aberto a possibilidade de uma futura investigação sobre as alegações de crimes cometidos nos Territórios Ocupados da Palestina, nos termos do artigo 12(2)(a) do Estatuto de Roma, caso fosse reconhecida como Estado sob o direito internacional.
Paralelamente às discussões no TPI, a Conferência Geral da UNESCO votou em 2011 a favor da admissão da Palestina como Estado membro pleno. No ano seguinte, a Assembleia Geral da ONU alterou o status da Palestina na Organização de “entidade não-membro” para “Estado não-membro”.
A percepção de grande parte da comunidade jurídica internacional era a de que esse passo significava que no âmbito da ONU começou a prevalecer uma visão favorável ao reconhecimento da Palestina como um Estado.
Em seguida a esse último evento, a procuradora do TPI, Fatou Bensouda, declarou que, embora a mudança no reconhecimento da Palestina não valide retroativamente a declaração de 2009, a Palestina daquele momento em diante poderia aderir ao Estatuto de Roma.
Assim, em dezembro de 2014, a Autoridade Palestina apresentou novamente uma declaração ad hoc ao TPI permitindo-lhe exercer jurisdição racione loci desde 13 de junho de 2014. Dois dias depois, a Palestina enviou à ONU documentos para aderir ao Estatuto de Roma, tornando-se um membro do TPI a partir de 1º de abril de 2015. Com isso era concedido ao TPI dupla jurisdição temporal: retroativamente, desde 13 de junho de 2014 e a partir de abril de 2015.[3]
Em 16 de janeiro de 2016, Bensouda abriu um exame preliminar sobre a situação da Palestina. Após cumprir as etapas iniciais dos exames, a Procuradoria afirmou ter encontrado uma base razoável para a abertura das investigações formais, de acordo com o artigo 53(1) do Estatuto de Roma.
Isso significa que todos os critérios legais para abrir uma investigação nos termos do Estatuto foram atendidos. No entanto, em vez de seguir o procedimento normal que conduziria às investigações formais, Bensouda solicitou em janeiro de 2020 à Câmara de Pré-julgamento I a confirmação judicial da extensão da jurisdição territorial do Tribunal nos Territórios Palestinos Ocupados.
Com a resposta positiva da Câmara, em 3 de março de 2021, a Procuradoria anunciou a abertura da investigação acerca da situação na Palestina.