Judiciário
A mulher que foi presa por usar calças no tribunal
Em 1938, juiz californiano mandou professora para cadeia porque ela se recusou a comparecer à corte trajando vestido
Estamos no finalzinho do mês da mulher, mas ainda em tempo de refletir sobre como o machismo afeta, até os dias de hoje, os espaços judiciários onde há presença feminina, seja na condição de profissionais ou mesmo de frequentadoras eventuais de salas de audiências, como partes ou testemunhas. Não é raro ouvirmos que advogadas recebem reprimendas em razão do traje com que comparecem a cortes de justiça e isso parece atravessar o tempo e o espaço, como lembrado recentemente pela grande artista brasileira Marina Amaral, em um post no Twitter, sobre o caso de uma americana que foi presa na década de 1930 por usar calças em uma audiência. A história é realmente instigante e curiosa, por isso resolvi pesquisar os seus detalhes.
Em 1938, quando a professora de jardim de infância Helen Hulick, de 28 anos, testemunhou um assalto à residência em seu bairro, não poderia imaginar que o seu comparecimento à Justiça californiana para prestar depoimento viraria notícia no Los Angeles Times. E o interesse da imprensa pela figura da testemunha não tinha nenhuma relação com o crime em julgamento; o que chamou a atenção dos jornalistas foi a reação do juiz à indumentária da professora Helen, que compareceu à sala de sessões vestida em calças largas, ao estilo pantalona, coisa que era inusual naquela época.
O magistrado Arthur S. Guerin admoestou a testemunha, informando-a de que não poderia depor vestida daquela forma. Por este motivo, adiou a audiência e determinou que ela comparecesse na próxima ocasião em trajes adequados, isto é, com um vestido. Entrevistada por um repórter, a professora Helen informou: “Digam ao juiz que vou manter-me fiel aos meus direitos. Se ele insistir em que eu use um vestido, não o farei. Eu gosto de calças pantalonas. Elas são confortáveis”.
A audiência adiada ocorreu cinco dias depois, e Helen compareceu novamente à corte vestindo suas adoradas pantalonas. Como é de se imaginar, o juiz sentiu-se desafiado em sua autoridade e lançou à Helen uma severa advertência, assim transcrita pelo Los Angeles Times na época:
“A última vez que a Senhorita esteve nessa corte vestida como se encontra agora, reclinada nesta poltrona, chamou mais atenção dos espectadores, réus e servidores do judiciário do que o próprio caso em apreciação. A Senhorita foi instada a retornar em trajes adequados ao ambiente forense. E hoje retorna vestida em calças, desafiando a corte e o seu dever em conduzir os procedimentos de forma ordenada. (…) Assim, esta corte ordena e determina que volte amanhã para o depoimento vestindo uma roupa adequada. Se insistir em usar calças novamente, será impedida de testemunhar porque isso representaria uma obstrução à administração da justiça. E esteja preparada para ser punida de acordo com a lei por desobediência à autoridade judicial (contempt of court)”.
O advogado da testemunha tentou protestar, invocando alguns precedentes judiciais em favor de sua cliente. A própria Helen pediu a palavra e dirigiu-se ao juiz, explicando suas razões: “Ouça, eu visto calças desde os quinze anos. (…) Eu voltarei amanhã em calças, e se quiserem me colocar na prisão, espero que isso pelo menos liberte as mulheres para sempre do anticalcismo”.
Dito e feito. No dia seguinte, a professora, atrevida e convicta de seus direitos, mais uma vez apareceu diante do Juiz Guerin, com as mesmas pantalonas. O magistrado, furibundo, sentenciou Helen a cinco dias de cadeia. Após ser detida e conduzida à county jail, recebeu um vestido usado pela detentas, que desta vez não pôde declinar.
Ela permaneceu na cadeia por apenas uma noite, pois o seu hábil e expedito advogado obteve uma ordem de habeas corpus no dia seguinte junto a Corte de Apelações da Justiça Estadual californiana. A decisão lhe concedia ainda o direito de depor como testemunha trajando calças.
Quando a audiência foi finalmente remarcada, o juiz Guerin possivelmente ficou imaginando que teria que disfarçar sua contrariedade e engolir sua irritação quando a testemunha Helen aparecesse diante de si em suas calças largas. Mas não foi necessário. A professora já havia obtido vitória inconteste e não precisava espicaçar o magistrado; por isso, compareceu desta vez usando um belo vestido.
Helen Hulick casou-se alguns anos depois com um homem que não se importava que ela usasse calças e de quem incorporou o sobrenome Beebe. A professora se mudou para o Estado de Nova Iorque na década de 1940 e lá especializou-se no desenvolvimento de métodos de ensino para crianças surdas, tendo desenvolvido técnicas que a transformaram numa das maiores autoridades no assunto dos EUA, com duas obras publicadas sobre o tema. Faleceu aos 80 anos em Easton, Pennsylvania, em 1989.
O grande poder que os juízes americanos têm de determinar prisão por desobediência às suas ordens (contempt power), durante ou depois de um julgamento (e que não encontra paralelo em sistemas de Civil Law como o brasileiro), não raro desborda para o abuso de poder, como retratado nos filmes “O Povo contra Larry King” e “Os 7 de Chicago”. Frequentemente, o contempt power se choca com a liberdade de expressão, quando juízes punem réus, testemunhas ou espectadores por palavras proferidas no tribunal, e a Suprema Corte já analisou um caso emblemático (Cohen v. California, 403 U.S. 15 (1971)), em que um réu compareceu em juízo com uma camiseta com dizeres agressivos (“fuck the draft” – foda-se o alistamente militar) e foi preso por isso. Na decisão, a Suprema Corte concluiu que a ordem de prisão violava a liberdade de expressão da Primeira Emenda.