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Judiciário

‘Bolsa estupro’, um projeto de lei que vitimiza o agressor

O Projeto de Lei n° 5435 de 2020, cunhado de “Bolsa estupro” [1], não só é muito ruim sob o ponto de vista das várias de suas proposições, que estão longe de se resumirem a um “auxílio” à criança em ajuda à mãe que optou por tê-la fruto do ato de estupro, como também é mal escrito, confunde conceitos e não se harmoniza, em nada, com institutos evoluídos sobre as matérias de que cuida, notadamente no âmbito penal.

A explicação da ementa cria uma falsa ideia de que alguém está sendo protegido com esse projeto de lei (que se espera que conserve essa natureza de projeto eternamente e jamais seja promulgado), ao tratar que “dispõe sobre a proteção da gestante e põe a salvo a vida de uma criança por nascer desde a concepção. Cria auxílio para o filho de mulher vítima de estupro”.

O projeto cria uma miscelânea em conceitos de políticas sociais, públicas, criminais, Direito de Família e Penal. Tudo, porém, de modo distorcido, mal posto e com interpretações equivocadas de institutos importantes num Estado social.

Repete, em muitos dos seus dispositivos, o óbvio; o que já era assegurado por lei e (e isso é o mais grave) deixa desvelar um intento do legislador em estimular que mulheres vítimas de um ato violento e criminoso gestem uma futura criança, produto, certamente, dos piores momentos que podem ter experimentado na vida.

Pois bem. Enquanto o país passa por uma evolução e dá indicativos de que a “descriminalização do aborto” é o caminho que será perfilhado em uma realidade próxima, cria-se um projeto de lei em que se quer fomentar a concretização de um ato de extrema selvageria, sob a infundada justificativa de preservação dos “direitos da criança por nascer”.

Os problemas deste mal feito projeto são multidisciplinares
Primeiro: Coloca no centro da alegada proteção o nascituro, pondo-se, em segunda ordem, o resguardo, amparo, salvaguarda, de uma mulher que teve sua dignidade sexual vilipendiada e, especificamente, a liberdade sexual malferida. Há, nesse ponto, um equívoco do que seja uma verdadeira proteção aos direitos fundamentais da gestante, a alegada “assistência médica adequada, apoio e orientação do Estado por meio de políticas públicas, entre outros” (justificativa do projeto).

No particular, é de se registrar que assistência, apoio e orientação já seriam obrigação do Estado, seja lá em que circunstâncias em que essa criança foi concebida. Portanto, diz o projeto de lei o que já era assegurado, omitindo, contudo, quais seriam as tais políticas públicas a serem implementadas. Ponto de esclarecimento de notória importância e que poderia demonstrar, ao menos em tese, o que esse projeto traria de relevante. Todavia, utilizou-se a expressão como mera retórica.

Lado outro, se se tem o desígnio de proteger “os direitos fundamentais da gestante”, dever-se-ia compreender que garantir direitos fundamentais passa, antes, por manter hígida a dignidade da mulher. Futura (ou não) mãe que não teve o direito de exercer, com a liberdade devida, com quem se relacionar sexualmente e que, agora, vê-se obrigada a gestar uma criança concebida a partir de uma ação de abuso, de disposição violenta do seu corpo. Querer que se preserve essa circunstância é um ato indigno, ignóbil e uma autoafirmação da agressão sofrida.

No artigo 10 do projeto de lei, garante-se ao genitor “o direito à informação e cuidado quando da concepção com vistas ao exercício da paternidade, sendo vedado à gestante, negar ou omitir tal informação ao genitor, sob pena de responsabilidade”.

Aqui jaz uma inevitável indagação: um projeto de lei que se autointitula como garantidor de direitos fundamentais da gestante, que é o mesmo que garante que ao agressor exerça a “paternidade”, cominando, ainda, à vítima uma responsabilidade, na hipótese de se negar ou omitir a informação quanto ao cuidado dessa criança e desde a concepção, almeja realmente proteger a mulher ou quer, de modo escamoteado, perpetuar uma cultura machista, preconceituosa, subversiva do pater família da antiga Roma?

Decerto, o projeto declara um propósito e preserva valores opostos. Não protege a vítima, vitimiza o agressor.

E mais: como alçar esse indivíduo à condição de educador e capaz de participar da orientação desta criança? Sob quais valores? De quem não se deve respeitar as liberdades sexuais alheias? Os questionamentos são afirmações em si. As respostas subjazem no subconsciente de cada um.

Segundo: O Código Penal em vigor atribui como excludente de ilicitude o aborto no caso de gravidez resultante de estupro (inciso II do artigo 128 do Código Penal) [2]. Há um conflito aparente de princípios. Ou se bem prestigia esse direito de escolha da mulher violentada, inclusive compreendendo como justificada a sua ação de interrupção de gravidez em caso de estupro (tornando sua conduta lícita, portanto), ou se, em pleno retrocesso, reverencia-se a atitude do agressor, premiando-lhe com o direito de (des)educar sua cria.

Terceiro: O STF, por meio da ADPF n° 442 [3], discute a possibilidade da mulher, nas 12 primeiras semanas de gestação possa, voluntariamente, interrompê-la, ainda que a concepção não tenha tido origem em ato violento. Aqui, busca-se um prestígio ao direito à igualdade, dignidade da mulher, de um planejamento familiar, entre outros.

Aliás, o STF já havia, em 2016, quando do julgamento do Habeas Corpus 124.306 do RJ, firmando entendimento de que:

“(…) É preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios artigos 124 a 126 do Código Penal — que tipificam o crime de aborto — para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade.
— A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria.
5 — A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos.
6 — A
 tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: 1) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; 2) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; 3) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios”. (STF-HC: 124306 RJ-RIO DE JANEIRO 9998493-51.2014.1.00.0000, Relator: ministro Marco Aurélio, Data de Julgamento: 9/8/2016, 1° Turma, Data de Publicação: DJe-052 17/3/2017)

A decisão, por óbvio, fala por si. É uma aberratio imaginar-se que, num contexto das mais extremas violências, o legislador ainda queira proteger o direito daquele que não foi — e não é por essência — capaz de respeitar um bem da vida civilizatório (ou seja, aquele mínimo consensual para que se consiga conviver em sociedade em um status de civilidade), que são a dignidade e liberdade sexuais. O contrário disso é o retorno da barbárie. É tratar a sexualidade de forma rudimentar, tal qual os senhores de engenho com as suas escravas sexuais.

Quarto: Há em tramitação o Projeto de Lei 5.789/2016, cujo objetivo é justamente o contrário do projeto nomeado “Bolsa estupro”, para incluir nas causas de extinção do poder familiar a proibição de que o estuprador possa a vir a exercer o poder familiar sobre a criança gerada.

Enquanto um projeto busca, de certa forma, “legitimar” o pai que praticou estupro, outro pretende retirar-lhe o poder familiar. São incompatíveis, por natureza, de modo declarado e implícito.

Por fim, em âmbito legislativo, a matéria ganhou um “arremate” com a promulgação da Lei 13.715/2018 [4], que alterou o inciso II do artigo 92 do Código Penal, atribuindo como efeitos da condenação “a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela nos crimes dolosos sujeitos à pena de reclusão cometidos contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar, contra filho, filha ou outro descendente ou contra tutelado ou curatelado”.

Ainda, a indigitada lei alterou o §2º do artigo 23 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), arregimentando que “condenação criminal do pai ou da mãe não implicará a destituição do poder familiar, exceto na hipótese de condenação por crime doloso sujeito à pena de reclusão contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar ou contra filho, filha ou outro descendente”.

Em derradeiro, a citada lei modificou o artigo 1.638 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para retirar o poder familiar daquele que praticar contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar, estupro ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão.

Ou seja, a interpretação sistemática e até teleológica dessas leis permite estabelecer uma ratio essendi, no sentido de se alcançar o sentido dessas normas, quais sejam um duplo viés: sancionar aquele que praticou o estupro, retirando-lhe o direto de exercer o pátrio poder e ser tutor do seu filho (portanto, não poderá educá-lo) e, concomitantemente, ratifica a liberdade sexual da mulher e sua dignidade que lhes são próprias.

A tal da “bolsa”, que equivaleria aos custos respectivos de um salário mínimo até a idade de 18 anos da criança, parece ser mera alegoria num projeto de lei anacrônico, ultrapassado e em desconformidade com as legislações que já cuidam da matéria, bem como com os precedentes da Corte Constitucional. O auxílio desfoca a verdadeira discussão que deveria gravitar em torno do projeto: a proteção verdadeira da mulher violentada. É um simples adorno.

As justificativas do projeto são injustificáveis. Não se preserva dignidade da pessoa humana obrigando-lhe a gerir uma vida fruto de violência sexual. Esse ato, em si, é a própria violência e não há nada de digno nisso.

Tratar a situação sob a ótica do “capital humano” é mercantilizar uma circunstância que envolve muito mais que um fenômeno econômico. Promover cultura da vida é fomentar uma vida digna, com as liberdades sexuais preservadas. É ponto de partida e não de chegada.

O projeto de lei, ao contrário do que pretende fazer crer, não ressalta a responsabilidade civil e criminal do genitor, diante do processo gestacional. Ao revés, como dito, busca legitimar a atuação do agressor, inclusive permitindo-lhe participar da (des)educação do filho, exercendo o pátrio poder.

O projeto, ainda, faz uma interpretação malan partem sobre novas técnicas de “manipulação” e “congelamento embriões humanos”, bem como do que seja a inapropriada expressão de “condenação de bebês à morte por causa de deficiências físicas” ou “por causa de crime cometido por seus pais”.

Os primeiros seguem regras protocolares de níveis internacionais de medicina. O segundo não corresponde, nem de longe, à verdade dos fatos. Não se condena bebês à morte (o que está equivocado em todos os aspectos que se analise). As hipóteses em que se interrompem a gravidez por “deficiência física” deve corresponder, segundo a jurisprudência, notadamente com a decisão da ADPF 54 do STF [5], à impossibilidade de nascimento da criança com vida, da qual se concluiu inconstitucional a interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, todos do Código Penal.

Os últimos contrariam a própria excludente de ilicitude nos casos de aborto no caso de gravidez resultante de estupro, já aqui retratada.

O projeto de lei representa verdadeiro retrocesso social e contraria leis que tratam da matéria e a conformação jurisprudencial que lhe foi dada de acordo com a Constituição Federal, estabelecida pelo STF. Mais um projeto de lei simbólico e descompromissado com a evolução sociocultural da sociedade. A vítima é a mulher, e não o agressor, que se tornou quase protagonista nessa “Bolsa estupro”. Que não passe de um projeto, que seja abortada a ideia.


[1] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/145760.

[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm.

[3] http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5144865.

[4] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13715.htm.

[5] http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2226954.

AUTOR:

Pablo Domingues Ferreira de Castro é advogado criminalista, doutorando pelo IDP-DF, mestre pela UFBA, especialista pelo IBCCRIM, pós-graduado pela UFBA, professor de cursos de pós-graduação e coordenador adjunto da pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito.

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