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Judiciário

A fonte em que o direito brasileiro precisa beber

Não é uma simples caricatura o fato de sempre escutarmos que as leis brasileiras são desconexas com a realidade das pessoas. O direito brasileiro age como se fosse autossuficiente, quando deveria beber das fontes que as ciências sociais fornecem

1 – INTRODUÇÃO À POSSÍVEL DESCONSTRUÇÃO DE UMA PESQUISA

É normal que cause estranheza o fato de um pesquisador colocar seu próprio trabalho de vida em uma espécie de desconstrução crítica, podendo levar ladeira abaixo todos os anos dedicados e todo o esforço direcionado na construção de um raciocínio principal. Porém, penso que uma pesquisa nunca se esgota, sempre deve ser revista, aprimorada, alterada, enriquecida, pois o conhecimento não se esgota em determinado ponto, segue sendo produzido no tempo, não se restringindo somente a afortunar pesquisas, mas também em modificar seus paradigmas. 

É importante que se note que o objetivo não é, necessariamente, desconstruir as teses, mas sim, conseguir refletir sobre a possibilidade de sua aplicação no mundo real, bem como sobre se a regulamentação será realmente positiva, considerando o ponto de vista dos grupos atingidos pela possibilidade da medida, sem nenhum receio de abandonar as convicções levantadas em outro momento, mediante a força das evidências que se apresentam.

Representa um imenso desafio levar questões que são abordadas unicamente sob aspecto jurídico, pelos operadores do direito, para as ciências sociais, principalmente porque o caminho deve ser inverso, com a antropologia e a sociologia levando suas contribuições para a elaboração das leis. Assim, a proposta aos renomados senhores do direito é a seguinte: confirmar, ou não, as teorias do campo jurídico e ampliar o escopo das discussões para trazê-las a realidade, considerando as peculiaridades das relações entre os diversos atores presentes em toda a sistemática que envolve o mundo dos destinatários das leis e teorias que são constantemente elaboradas.

São inegáveis como inspiração a esse tipo de reflexão, dentre outros, os trabalhos de Franz Boas, Bornislav Malinovisk e Clifford Gertz, obviamente no que trata da pesquisa de campo e na riqueza de detalhes e conclusões que ela propicia, abrindo horizontes e nos fazendo entender que é preciso um exercício de alteridade e humildade para abandonar conceitos de senso comum, e em enxergar outras realidades não como inferiores, ideais ou diversos outros tipos de julgamentos baseados em nossa própria realidade e em nossos próprios valores, mas sim que se trata de algo simplesmente “diferente do nosso mundo”, o que não é o mesmo que bom ou ruim, em uma perspectiva simplória, porém de fácil compreensão.

Assim, a pretensão é que as ciências sociais, em especial a antropologia, tragam sua contribuição de forma basilar para as discussões, se tornando úteis, de alguma forma, para discutir as consequências de implantação ou não de regulamentações e de interpretação das leis existentes.


2 – DA DIFERENCIAÇÃO ENTRE AS INFERÊNCIAS DO PESQUISADOR E A REALIDADE PESQUISADA

Como encaramos determinadas situações ou interpretamos atos e fatos? A resposta é simples: depende. Nossos conceitos de vida, as expressões que temos como verdadeiras ou falsas, o que julgamos como ideal ou defeituoso, não são somente resultados do meio onde nossa vida se desenvolveu ou das experiências que vivemos, mas, fundamentalmente, todas elas produzem um resultado na forma como olhamos para o mundo, identificamos atitudes ou fazemos nossos julgamentos. Tal complexidade é esboçada, por exemplo, na Teoria do Julgamento Social, do psicólogo alemão Brunswik que, embora não seja basilar para essa pesquisa, traz uma ótima dimensão de como funciona a interpretação humana sobre tudo o que ocorre ao seu redor, uma vez que, segundo suas teorias, a interpretação humana do ambiente sofre influência da formação intelectual do juiz e proximidade ou distância dele com as situações as quais está julgando (BRUNSWIK, 1952).

Por tal, é necessário que o pesquisador mantenha certo distanciamento entre seus conceitos próprios e a realidade a qual pesquisa, para que não contamine as conclusões da análise com suas próprias concepções, devendo, no mínimo, separar suas conclusões pessoais dos dados que coleta e, diferente do que até aqui foi utilizado como regra neste trabalho, deve abandonar o “vício” das ciências jurídicas em fazer afirmações e ditar o que é “certo ou errado” ou que é “ bom ou mal”, esquecendo-se de que esses conceitos variam de acordo com o ponto de vista do grupo pesquisado que, em muitos casos, é completamente avesso ao ambiente de formação de vida do operador do direito.

Baseado em tais constatações, levanta-se como uma possibilidade real de contribuição para essa obra a pesquisa etnográfica, cujo método, então inovador, do antropólogo Bronislaw Malinowski, na obra “Os Argonautas do Pacífico Ocidental”, surge como principal inspiração, quando ensina, dentre tantas outros pontos de grande relevância, que “um trabalho etnográfico só terá valor científico irrefutável se nos permitir distinguir claramente, de um lado, os resultados da observação direta e das declarações e interpretações nativas e, de outro, as inferências do autor, baseadas em seu próprio bom-senso e intuição psicológica.” (MALINOWSKI, 1978).

Assim, torna-se óbvio que o caminho a ser seguido, exige, fundamentalmente, a saída do gabinete e o mergulho profundo na realidade a ser pesquisada, desafiando a concepção de que todas as respostas podem ser encontradas no Direito, e buscando, muito além da própria realidade do grupo pesquisado, demonstrar que o caminho para melhorar a vida das pessoas deve sair das ciências sociais para, posteriormente, incorporar-se às Leis, e não agir como se a “ciência jurídica” fosse um ramo descolado de quaisquer outros, alimentado por si próprio através das doutrinas jurídicas e das teorias derivadas das decisões reiteradas dos tribunais.

Retomando a ideia de distanciamento dos conceitos do pesquisador, com relação à realidade pesquisada, é importante frisar que a realidade do autor pode fazer com que seus conceitos próprios obscureçam suas conclusões sobre a pesquisa. Tais conceitos, muitas vezes eivados de um senso comum particular a realidade do autor, fazem com que o mesmo possa partir de ideias construídas de forma equivocada, devido a uma hierarquização das categorias sociais, que atribuem a determinados grupos certos adjetivos às funções preestabelecidas, como ensina Gilberto Velho: “A hierarquia organizada, mapeia e, portanto, cada categoria social tem o seu lugar através de estereótipos como, por exemplo: o trabalhador nordestino, “paraiba” é ignorante, infantil, subnutrido; o surfista é maconheiro, alienado etc”. (VELHO, 1978).

Ademais, o senso comum produz algumas disparidades que podem desqualificar a qualidade de sua pesquisa, sendo uma delas a capacidade que tem de classificar todo um grupo da mesma maneira, de forma simplória e com uma objetividade que é inexistente no campo prático, desconsiderando a existência de subgrupos dentro de um grupo maior ao qual se estuda. Dessa forma, a obra etnográfica de Franz Boas, com relação à vida dos esquimós, em determinado ponto, nos faz entender bem tal fator: “Acredita-se em geral que os esquimós são sujos, mas posso lhes assegurar que não é assim em todos os lugares. Em algumas cabanas no estreito de Cumberland, encontrei os habitantes limpos e com uma boa aparência, sob todos os aspectos, enquanto em outros lugares dava-se exatamente o contrário”. (BOAS, 1999)

Então, pode-se notar, pelo bom exemplo extraído da obra de Franz Boas, que um determinado grupo pode ter subgrupos, cujos estereótipos estabelecidos pelo senso comum muitas vezes não irão aplicar-se, além de dificultarem a apuração da realidade na pesquisa, quando os assumimos como verdadeiros em todos os casos. Assim, por exemplo, a questão dos profissionais do sexo também deve ser pesquisada, levando em consideração todas as realidades, das mais pobres às mais luxuosas, mulheres, travestis, transexuais, homens, proprietários de casas de prostituição e consumidores dos serviços, afastando-se não só das concepções próprias, mas, fundamentalmente, dos rótulos estabelecidos pelo senso comum, numa espécie de “esqueça tudo que você acha que sabe sobre esse assunto” que permitirá a verdadeira formação do conhecimento sobre o assunto, bem como o levantamento dos dados relevantes para responder a questão proposta.


3 – DA NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DE COLETA DE DADOS ETNOGRÁFICOS

Ultrapassadas as demais considerações, o próximo passo parece ser um tanto quanto óbvio: a pesquisa de campo. Porém, o modo como ela será instrumentalizada trata-se do real desafio, no entendimento deste pesquisador.

O notório contexto pandêmico que o mundo, e em especial o Brasil, vive no momento da elaboração deste artigo parece ser o principal empecilho e, por tal, a discussão neste ponto ficará restrita apenas a abordar a importância da pesquisa de campo para a real conclusão sobre a utilidade ou não de regulamentar determinada atividade, por exemplo.

Porém, como nas das ciências jurídicas temos uma grande tendência de pensamento positivista, a elaboração de diretrizes e a realização da pesquisa de campo necessariamente deve ser precedida de uma mudança de visão do pesquisador, que deve se desprender de conceitos engessados e assumir a postura humilde e de empatia como leciona Gilberto Velho, no texto “Observando o familiar”, para aceitar que não há certezas predefinidas a respeito da realidade pesquisada e, só no contexto prático de observação participativa, inaugurado por Malinowski poderemos chegar a conclusões palpáveis e aplicáveis sobre a questão abordada (MALINOWSKI, 1978).

Torna-se, além de importante, de certa forma fantástico, pensar que, como ensina Clifford Geertz, a cultura é a “teia de significados que o homem teceu”, e, nesta perspectiva, devemos nos empenhar em tornar tais fenômenos típicos do grupo pesquisado menos bizarros ou menos enigmáticos aos olhos daqueles que não fazem parte daquela realidade. Assim, um recurso pode ser associá-las a situações que nos sejam mais familiares. Geertz lança mão do conhecido exemplo no âmbito da antropologia, para contextualizar essa ideia: uma piscadela. Podemos descrever uma piscadela como uma contração das pálpebras, mas, em que pese não haver erro na referida descrição, esse conceito biológico não nos auxilia a diferenciar um gesto voluntário de um mero tique nervoso ou, em uma perspectiva mais profunda, quando voluntária, o que significa tal gesto. (GEERTZ, 1978)

No contexto da realidade de determinado grupo, como o exemplificado nos parágrafos anteriores, o dos profissionais do sexo, uma piscadela, por exemplo, na imaginação deste pesquisador, pode significar a confirmação de um programa, a um cliente mais reservado, ou até mesmo um pedido de ajuda no caso de ser atormentado ou atormentada por alguém inconveniente. Tudo dependerá da realidade, das práticas e dos costumes do grupo pesquisado.

Portanto, seguindo a linha de raciocínio de Geertz, as metodologias tradicionalmente utilizadas, como atribuir acontecimentos a leis gerais, ou a construção de modelos teóricos que expliquem fenômenos, não nos permitem ter acesso ao real conhecimento do contexto pesquisado, não sendo suficientes a nos explicar o significado da “piscadela”. Devem, portanto, ser baseadas no método denominado “descrição densa”. Um ótimo exemplo da aplicação da “descrição densa” é quando identificamos o significado de determinado gesto, como a dita “piscadela”, como uma forma de confirmação de um programa, e não estacionamos no conceito biológico geral deste gesto. Assim, ao nortear a pesquisa por este aspecto, estamos trabalhando com um tipo peculiar de ciência, a nomeada por Geertz como “ciência interpretativa.”

Torna-se fundamental, portanto, a utilização da “descrição densa”, da “ciência interpretativa” e, na medida do possível, a observação participante, abandonando os argumentos de autoridade e as referências teóricas como fontes principais de estudo para formular teses, já que as mesmas são formuladas, na imensa maioria das vezes, por autores que estão completamente fora da realidade às quais essas regras se destinam, tendo como consequência a produção de resultados deturpados, fora da realidade daquele determinado grupo e, em muitos casos, acaba tendo o condão de “convencer” àquela realidade social de que a sua opinião deve prevalecer, pois o pesquisador é o dono da razão, sendo “academicamente mais preparado” que as pessoas que vivem na realidade pesquisada.

Por derradeiro, essa concepção de que o pesquisador é o detentor da verdade, é comum em diversas ciências, porém, o Direito traz essa abordagem como aspecto enraizado, que transforma a ciência jurídica, na prática, em um ramo que tem fim em si mesmo, e se nega a beber de qualquer outra fonte para formular seus regramentos, e os pesquisadores da área em formuladores de teses baseadas em regras generalistas e positivadas, que somente criam mais teorias gerais baseadas em outras teorias gerais, além de meros aspirantes a derrubadores de argumentos, tendo, de forma perceptível, uma marca etnocêntrica enraizada como diretriz de todos os estudos.


REFERÊNCIAS

BRUNSWIK, E. The conceptual framework of psychology. Chicago: University of Chicago Press. 1952. iv, 102 p.

MALINOWSKI, Bronislaw. Os Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril S.A. Cultural. 1978. p. 18

VELHO, Gilberto. Observando o Familiar. In NUNES, Edson de Oliveira. A Aventura Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores. 1978. p. 127

BOAS, Fraz. A Formação da Antropologia Americana 1883-1911 Antologia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. 1999. p. 79

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas, Zahar Editores, 1978, p. 15

AUTOR:

Manuel Flavio Saiol Pacheco

Advogado e funcionário público, graduado em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – Campus Três Rios. Atualmente é mestrando em Justiça e Segurança, pela Universidade Federal Fluminense. É Pós Graduado em Direito Administrativo, Direito Constitucional e Direito Tributário.

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