Judiciário
Lei n° 14132 pode prender policiais que fiscalizam o lockdown? Entenda!
No dia 31 de março de 2021, foi acrescentado ao art. 147-A o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal)
A resposta para essa pergunta é não. A princípio, a lei nº 14.132, de 31 de março de 2021, não tem nada a ver com a fiscalização policial para assegurar o distanciamento social e combate ao novo Coronavírus – cujo número de mortos no Brasil já ultrapassou a marca dos 350 mil. Mas a sua relação pode causar alguma confusão. Talvez por isso tenha circulado a falsa notícia que associa o Decreto se associa a Lei ao lockdown.
Para te ajudar a compreender melhor o teor do Decreto nº 14132, criamos esse artigo para tirar todas as suas dúvidas. Nele você vai encontrar
- O que é a Lei nº 14.132, de 31 de Março de 2021?
- Se a Lei nº 14132 não interefere no lockdown, o que ela muda na prática?
- Como advogado, quais os aspectos processuais relevantes relacionados a Lei n º 14132?
- Como a Lei 14132 impacta os processos que já estão em curso?
- Sofri stalking ou conheço alguém que é vítima do crime. O que devo fazer?
Confira!
O que é a Lei nº 14.132, de 31 de Março de 2021?
A nova Lei 14.132, de 31 de Março de 2021 adiciona um novo tipo ao Decreto-Lei nº 2848 (nosso Código Penal), destinado a combater uma prática infelizmente comum hoje em dia: a perseguição, também conhecido na sua tradução em inglês (stalking). Além disso, ela revoga um artigo da Lei de Contravencoes Penais antes dedicado a disciplinar conduta semelhante.
Vamos ver abaixo os dois artigos alterados pela Lei 14132. Primeiro, o que foi adicionado ao Código Penal:
Art. 147-A. Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.
Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
§ 1º A pena é aumentada de metade se o crime é cometido:
I – contra criança, adolescente ou idoso;
II – contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código;
III – mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas ou com o emprego de arma.
§ 2º As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência.
§ 3º Somente se procede mediante representação.” (destaque nosso)
Agora, o artigo da Lei das Contravencoes Penais que foi revogado:
Art. 65: Molestar alguem ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável:
Pena – prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis. (destaque nosso)
Para fazer uma boa prática de checagem de fatos, tão necessária com o volume de fake news em circulação, o primeiro passo é verificar as fontes. No caso de uma lei, a fonte principal é sua redação literal.
Uma leitura da Lei 14132 por alguém que não está muito familiarizado com o Direito pode levar à falsa conclusão de que um policial se encaixa na figura do perseguidor ao fiscalizar as medidas de distanciamento social. Afinal, ele não estaria restringindo minha liberdade de locomoção e interferindo na minha vida íntima? Ainda mais se o artigo fala em “qualquer meio” ou “de qualquer forma”?
Na verdade, não é bem assim que acontece.
Os policiais que fiscalizam o lockdown não estão restringindo a locomoção ou perturbando a intimidade de ninguém. Quem faz isso são as normas criadas com o intuito de combater a disseminação do Covid-19.
Ao editar essas normas, o poder público restringe, de forma legítima e temporária, o direito de locomoção das pessoas em prol de um outro bem jurídico: a saúde pública. É o que se chama de princípio da concordância prática ou harmonização.
A partir do momento em que há lei formal instituindo e regulamentando o lockdown, a administração pública pode usar de seu aparato para fazer cumprir as disposições da lei. Ela o faz investida nos princípios da legalidade e da supremacia do interesse público, e através do chamado poder de polícia administrativa.
Se a Lei nº 14132 não interfere no lockdown, o que ela muda na prática?
Para melhor entender as normas sob o seu aspecto teleológico, ou seja, sob o ponto de vista da finalidade para a qual foi criada, é necessário analisar seu contexto de criação e autoria. Em outras palavras, podemos entender melhor o sentido da Lei e seus objetivos fazendo um estudo da sua origem.
Origem da Lei nº 14132
A Lei 14.132 veio do Projeto de Lei nº 1.369, de 2019, de iniciativa da Senadora Leila Barros (PSB/DF), em cujo texto consta a seguinte justificação:
“A presente iniciativa corresponde a um apelo da sociedade e a uma necessária evolução no Direito Penal brasileiro frente à alteração das relações sociais promovidas pelo aumento de casos, que antes poderiam ser enquadrados como constrangimento ilegal, mas que ganham contornos mais sérios com o advento das redes sociais e com os desdobramentos das ações de assédio/perseguições.”
Como podemos ver do texto acima, as mudanças trazidas pela Lei 14132 vêm para combater o novo tipo de assédio que existe atualmente, principalmente em vista dos meios de comunicação virtual.
Conforme leciona o Professor Rogério Greco, o verbo-núcleo do tipo (“perseguir”) traz a ideia de insistência, obsessão, comportamento repetitivo. Isso é confirmado pelo advérbio “reiteradamente” que consta do novo art. 147-A do Código Penal.
Segundo o mesmo autor, o stalking seria “espécie de terrorismo psicológico, onde o autor cria na vítima uma intensa ansiedade, medo, angústia, isolamento pelo fato de não saber exatamente quando, mas ter a certeza de que a perseguição acontecerá, abalando-a psicologicamente, impedindo-a, muitas vezes, de exercer normalmente suas atividades”.
Essa noção também é confirmada no texto da Lei 14132, que qualifica a perseguição combatida: “ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica”. Essa característica é confirmada também por uma interpretação sistemática do Código Penal. O crime de stalking vem logo depois do crime de ameaça (artigo 147 do Código Penal), e segue a mesma numeração.
Representações do stalking na televisão podem ser encontradas no clássico Atração Fatal, filme de 1987, e mais recentemente na série Você, da plataforma Netflix, além do filme Ingrid Vai Para o Oeste.
Combate à violência contra a mulher
Não é sem motivo que a Lei 14132 estabelece causa de aumento de pena se o crime for praticado contra mulheres, em razão do gênero. A autora Luciana Gerbovic, em sua tese de mestrado, bem afirma que “a mulher é tradicionalmente a maior vítima nos casos de stalking. Por isso o stalking acaba sendo tratado, nos países onde é estudado e pesquisado, como uma das formas de violência contra as mulheres”.
Sobre o tema também dispõe a Lei Maria da Penha, em seu art. 7º, inciso II, quando identifica vigilância constante e perseguição contumaz como formas de violência doméstica e familiar contra a mulher. A perseguição é também uma prática comum nos relacionamentos abusivos.
O combate à violência de gênero deve ser tratado como prioridade. Em 2020, cinco mulheres por dia foram vítimas de feminicídio no Brasil.
As alterações que a Lei nº 14132 traz na conjuntura atual
Basicamente as alterações da Lei nº 14132 tangenciam: casos de Cyberstalking e Violência Contra Mulher. Confira”
Cyberstalking
O ato de perseguição obsessiva que a Lei 14.132 procura combater é agravado com o uso cada vez maior de ambientes de comunicação online, como as redes sociais. Muitas pessoas cometem atitudes agressivas e persecutórias nas redes, blindadas pelo conforto de suas casas, por perfis falsos e pelo escudo de uma tela de computador.
Esse fenômeno tem tomado proporções cada vez maiores, podendo inclusive chegar à sua expressão em massa no caso da cultura do cancelamento ou, até mesmo, ao extremo do linchamento virtual.
O assunto tem sido bastante discutido na edição atual do Big Brother Brasil. Os próprios participantes do programa foram considerados “canceladores” em várias ocasiões, com destaque para a dinâmica de exclusão que culminou com a saída “voluntária” do participante Lukas Penteado.
Contraditoriamente, muitos internautas, como um tipo de punição ao cancelamento perpetrado pelos participantes do BBB21, praticaram atos ainda piores contra os brothers. A situação chegou inclusive ao extremo de familiares dos participantes receberem ameaças de morte por pessoas aleatórias na Internet, numa configuração clara do terrorismo psicológico que procura combater o crime de stalking da Lei 14.132.
A depender do caso concreto, caso configurado o elemento repetitivo da perseguição do novo artigo 147-A, é possível que condutas como essa sejam enquadradas no tipo penal criado com a Lei 14.132 de 31 de Março de 2021.
1º de abril?
Em artigo escrito por Veiga, Martins Junior e Araujo, os autores chamam atenção para outras circunstâncias importantes no contexto de criação da norma.
A questão é que o dispositivo revogado pela Lei 14.132/2021 (art. 65 da Lei de Contravencoes Penais) punia apenas condutas orientadas por “acinte ou motivo reprovável”. Essa elementar do tipo não foi transportada para o novo crime de perseguição.
Levando também em conta os vários conceitos abertos empregados na redação do novo crime (“por qualquer meio”, “de qualquer forma”), pode-se dizer que o legislador não foi muito feliz com o alcance que deu à caracterização do delito.
O que preocupa mais em relação a essa extensão é a brecha aberta para que críticas a governantes políticos sejam enquadradas como a perseguição obsessiva a que se refere o novo artigo.
É por isso que os autores questionam se “poderia o crime de perseguição se converter em um substituto menos espetaculoso à Lei de Segurança Nacional?”.
Na falta de uma boa delineação pelo legislador, cabe ao Poder Judiciário caracterizar ou não a conduta no caso concreto. Pode ser que os Tribunais não apliquem, de fato, essa interpretação deturpada, que inclusive ameaça a liberdade de expressão.
Mas, no atual contexto, não parece coincidência que a redação final da Lei 14.132 tenha sido publicada dessa forma, no dia 1º de abril – dia da mentira.
Como advogado, quais os aspectos processuais relevantes relacionados à Lei n º 14132?
A Lei 14132 institui um crime comum a que se aplicam alguns dispositivos da Lei 9.099, de 1995: é de menor potencial ofensivo, admite transação penal, suspensão condicional do processo e segue o rito sumaríssimo (arts. 61, 76, 89 e 77, respectivamente). No entanto, se praticado contra mulher, em razão do gênero, tais institutos não serão aplicados (conforme disposição do art. 41 da Lei Maria da Penha).
De acordo com os princípios de aplicação da lei penal no tempo, só poderão ser tipificadas como crime de stalking as condutas praticadas após entrada em vigor da Lei 14.132, que se deu no dia 1º de abril de 2021 (data da publicação da lei, conforme dispõe seu art. 4º).
Segundo o § 3º do novo art. 147-A, trata-se de crime de ação penal pública condicionada à representação. Sendo assim, a vítima ou seu representante legal possuem prazo decadencial de seis meses para oferecer representação à autoridade policial, judicial ou Ministério Público, contados do dia em que se tomou ciência da autoria.
No entanto, caso ocorra na modalidade virtual e o autor do crime se utilize de perfil falso, o prazo decadencial só começa a correr quando houver a real descoberta de sua identidade.
É crime, a princípio, de competência da Justiça Estadual, podendo atrair a competência federal caso praticado pela Internet de forma transnacional (segundo art. 109, V da Constituição Federal) ou se a vítima for servidor público federal em exercício (segundo art. 109, IV da Constituição Federal).
Para entender melhor a forma como os Tribunais irão lidar com o revogado crime de perturbação de tranquilidade e com o novo crime de stalking, você pode fazer uso de ferramentas de consulta processual. Pesquisando os padrões nas decisões judiciais você consegue operar melhor com o Direito e prestar serviço de qualidade a quem precisar.
Como a Lei nº 14132 impacta os processos que já estão em curso?
Em relação aos processos em curso relativos à revogada contravenção de perturbação de tranquilidade, pode ocorrer uma de duas situações:
- A conduta do caso se ajusta à nova figura da perseguição, por haver no caso concreto o elemento da reiteração e ameaça contra a vítima. Nesse caso, aplica-se o princípio da continuidade normativo-típica e, se o processo já tiver sido sentenciado, permanecem os efeitos condenatórios.
- A conduta não possui o elemento da repetição e de ameaça à integridade física ou psicológica: aqui ocorre o fenômeno do abolitio criminis, e a nova Lei retroage em benefício ao réu para extinguir-lhe a punibilidade, encerrar a execução da pena e seus demais efeitos.
Diante das mudanças vigentes, é muito importante buscar estar atualizado e acompanhando os seus processos formas prática e ágil.
Sofri stalking ou conheço alguém que é vítima do crime. O que devo fazer?
Se você for ou conhecer alguém que é vítima do crime de stalking, a primeira coisa a fazer é conversar com uma pessoa de confiança sobre a situação e procurar uma rede de apoio. Os perseguidores procuram te desestabilizar emocionalmente. Por isso é importante também que a vítima procure ajuda psicológica para falar sobre a situação.
Procure também manter registro da perseguição – se ela ocorrer no meio virtual, isso é mais fácil. Guarde prints de todas as mensagens que você receber, e faça também um boletim de ocorrência na unidade policial.
Caso queira tomar as medidas processuais cabíveis, procure um advogado e peça aconselhamento jurídico.
Lembre-se que você tem prazo de seis meses, contados do dia em que se descobrir quem é o autor do crime, para oferecer representação. Ou seja, seis meses para comunicar a ocorrência do fato e o desejo de iniciar a persecução penal à autoridade competente, que pode ser tanto Ministério Público, autoridade policial ou autoridade judicial.
A autoridade policial responsável pela investigação é, na maioria dos casos, o delegado de Polícia Civil. Se o crime for praticado envolvendo pessoas de diferentes países na Internet, ou se a vítima for servidor público federal no exercício de suas funções, o responsável será o delegado da Polícia Federal.
Só é possível processar alguém pelo crime de stalking se a conduta for praticada a partir da vigência da Lei 14.132, que é o dia 1º de abril de 2021 (segundo dispõe seu art. 4º). No entanto, pode ser que a conduta ameaçadora se enquadre como outros crimes. Para saber melhor sobre cada caso, é necessário conversar com um advogado criminalista.
Texto escrito por: Tulio de Oliveira Campos
Fonte: Jusbrasil