Judiciário
Perseguição/Stalking no âmbito da estrutura das violências de gênero (Art.147- A, §1º, II, do CP)
Rascunhando pensamentos e possibilidades
“Cada suspiro que você der, cada movimento que você fizer, cada laço que você quebrar, cada passo que você der, eu estarei te observando” (Every Breath You Take – The Police).
“O cara que pensa em você toda hora, que conta os segundos se você demora, que está todo o tempo querendo te ver, porque já não sabe ficar sem você. E no meio da noite te chama, pra dizer que te ama. Esse cara sou eu” (Esse cara sou eu, Roberto Carlos).
Hunting High And Low … a música é belíssima, mas a cultura por de trás é muito problemática.
Não é difícil perceber: a pretensão constante em relação à alguém, de maneira insistente, obsessiva, desproporcionalmente obstinada, que objetiva vincular a mulher ao patrimônio (moral) do homem, é ainda romantizada. Tal prática sufoca, intimida, restringe a liberdade de locomoção da assediada, indica riscos à integridade física e/ou psicológica da vítima, levando-a a um estado de ansiedade e de pavor que acaba degradando a sua condição emocional. Mais do que tudo, indica risco de vida, violência inefável.
Do violento homem dócil-romântico acomodado pela ideologia do patriarcado, pessoa familiar que inadmite a rejeição e a independência feminina, ao “predador”, o desconhecido obcecado e sorrateiro, talvez parcialmente descritível pelas categorias psicológicas aptas ao auxílio da análise a respeito da (capacidade de) culpabilidade (no momento do ato), o homem stalker não é incomum.
Neste ano, sobretudo no contexto social e político em que vivemos, indicado inclusive pela misoginia explícita do chefe do Poder Executivo, os feminicídos aumentam. O Brasil é o quinto país em mortes violentas de mulheres no mundo. No final das contas, muitas mortes são anunciadas.
Foi também nesse contexo (paralelamente, enfatizo toda a minha crítica à expansividade do sistema penal stricto sensu), e em razão desse cenário, a promulgação da Lei 14.342/2021, que adicinou o tipo penal de Perseguição ao Código Penal Brasileiro, assim descrito (a) e copiado (a):
Perseguição
Art. 147-A. Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade. (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)
Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)
§ 1º A pena é aumentada de metade se o crime é cometido: (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)
I – contra criança, adolescente ou idoso; (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)
II – contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código; (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)
III – mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas ou com o emprego de arma. (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)
§ 2º As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência. (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)
§ 3º Somente se procede mediante representação. (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)
Levando-se em conta que os bens jurídicos vida e liberdade (ii) servem como critério valorativo legítimo para a construção típica da norma proibida – ter critério é limitar o poder punitivo- e que (ii) são objeto de proteção do sistema de leis penais orientado pela CRFB/88, que insere como objetivo republicano – democrático a erradicação das violências de gênero (art. 3º, III e IV, da CRFB/88) e como princípio civilizatório o repúdio às violências contra as minorias políticas (art. 4º,VIII, da CRFB/88), essa lei insere-se na lógica da proteção da dimensão sócio-política do corpo da mulher (Cisgênero e Transgênero).
O machismo é estrutural, uma forma de enxergar o mundo, a partir do falo – Pir (denominação curda para “a ponte”) oca – , fato que maximiza a reponsabilidade dos homens, da sociedade e do Estado. Nesse sentido, instrumentos político-jurídicos, principalmente aqueles de caráter educacional, social (como Rede de Atenção Psicosocial e Centros de Atenção), cível-administrativo, devem ser pensados como ferramentas principais para a proteção das vítimas. Não obstante a ultima ratio da prisão preventiva e da prisão-pena na democracia, às vezes (sobretudo na forma social ainda constituída), torna-se necessária a neutralização de um sujeito capaz de retirar a vida de uma mulher.
Assim, retornando à lei criminal: trata-se de um tipo penal que descreve uma conduta habitual, que pode ser realizada por meio virtual (Whatsapp, Instagram, Facebook, Gmail etc) ou físico-presencial. A pena cominada prevista é de reclusão (atenção para a possibilidade de interceptação telefônica no âmbito do processo e para o preenchimento dos requisitos de Cabimento e de Fundamento das medidas cautelares e pré- cautelares), embora possa alcançar apenas o tempo de 03 anos.
Lei nº 14.132, de 2021 + Medida Protetiva + Polícia Civil: Pensando a ameaça atual.
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher “Convenção de Belém do Pará“, promulgada pelo Decreto no 1.973, de 1º de agosto de 1996, determina aos Estados Partes que incorporem na sua legislação interna normas penais, processuais e administrativas para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, bem como que adotem as medidas administrativas e jurídicas necessárias para impedir que o agressor persiga, intimide, ameace ou coloque em perigo a vida ou integridade da mulher, ou danifique seus bens (art. 7º, c e d).
Artigo 1 – Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.
Artigo 7 – Os Estados Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios apropriados e scan demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em:
c) incorporar na sua legislação interna normas penais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, bem como adotar as medidas administrativas adequadas que forem aplicáveis;
d) adotar medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir, intimidar e ameaçar a mulher ou de fazer uso de qualquer método que danifique ou ponha em perigo sua vida ou integridade ou danifique sua propriedade;
No mesmo sentido, ano passado, foi promulgada a Resolução Conjunta nº 05/2020 CNJ/CNMP, inaugurando o Formulário Nacional de Avaliação de Risco, capaz de demonstrar às autoridades com atribuição e competência o Prenúncio de feminicídio.
Art. 3º O Formulário Nacional de Avaliação de Risco será preferencialmente aplicado pela Polícia Civil no momento do registro da ocorrência policial, ou, na impossibilidade, pela equipe do Ministério Público ou do Poder Judiciário, por ocasião do primeiro atendimento à mulher vítima de violência doméstica e familiar.
Ademais, a Lei nº 14.149/2021 instituiu, definitivamente, o FNAR, instrumento muito interessante à proteção das vítimas. Embora a menção às relações domésticas e familiares, o Formulário Nacional de Avaliação de Risco pode e deve ser utilizado em casos de Stalking, mesmo naqueles externos ao ambiente doméstico e social da vítima. Consigno aqui essa orientação.
Com efeito, deve ser plenamente possível a decretação de medida protetiva em favor de uma mulher contra um desconhecido perseguidor que, por exemplo, a ameaça reiteradamente de violência, de morte, de estupro etc. De igual sorte, a adequação da conduta do homem ao tipo penal da perseguição, que possui como característica a habitualidade, abre a possibilidade para a prisão em flagrante do perseguidor ameaçador, bem como normalmente vem cumulada com a prática pelo sujeito de outra conduta primariamente criminalizada (injúria, ameaça, extorsão etc), sendo assim possível a decretação da prisão preventiva.
Algumas hipóteses legais de cabimento da cautelar mais gravosa:
Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
I – nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
III – se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 1º Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
Ainda: defendemos que não deve existir qualquer tentativa de análise de periculosidade do sujeito: nomenclatura de parâmetro positivista e biologista, incompatível com o princípio da responsabilidade subjetiva orientado pela alteridade e, consequentemente, com a culpabilidade democraticamente condicionada perante o ato e com a própria democracia. Ademais, patologizar o machismo é um péssimo modo de não querer enxergar o problema e de tirar a vítima do centro da discussão protetiva.
Por outro lado, devem ser averiguados o grau de vulnerabilidade da vítima em relação ao homem pego em flagrante e o risco à vida da mulher no contexto concreto da perseguição, que não é deflagrada em uma sociedade abstrata.
Nesse sentido , a vítima e sua defesa devem exigir em delegacia a lavratura de Auto de Constatação do celular, se a prática antissocial e criminalizada ocorre por meio virtual, e o preenchimento (com auxílio profissional adequado) e anexação do Formulário Nacional de Avaliação de Risco aos autos de Inquérito.
Não deixemos o silêncio em relação às violências estruturais prevalecer.