Judiciário
A suspensão do contrato de trabalho da empregada gestante e a Lei 14.151/2021
A lei editada por conta da pandemia preconiza que a empregada gestante deverá permanecer afastada das atividades de trabalho presencial, sem prejuízo de sua remuneração. Quando não é possível trabalhar à distância, pode o empregador suspender o contrato?
I – A CONTROVÉRSIA INAUGURADA PELA LEI 14.151/21
Em 13 de maio de 2021, entrou em vigor a Lei 14.151, que dispõe sobre o afastamento da empregada gestante das atividades de trabalho presencial durante a emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do novo coronavírus.
De acordo com o artigo 1º da norma, durante a emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do novo coronavírus, a empregada gestante deverá permanecer afastada das atividades de trabalho presencial, sem prejuízo de sua remuneração.
O artigo 2º da lei preconiza que a empregada gestante afastada do trabalho presencial ficará à disposição para exercer as atividades em seu domicílio, por meio de teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho à distância.
Ocorre que há diversas situações nas quais a função para a qual a empregada foi contratada é incompatível com o trabalho remoto, a exemplo de caixa de supermercado, garçonete, cozinheira e doméstica.
Nessas situações, o empregador terá, obviamente, que pagar a remuneração da empregada sem a correspondente prestação de serviços, pelo menos até que ela inicie a licença-maternidade e passe a receber o salário-maternidade, pago pela Previdência Social.
Isso gera significativo ônus adicional para o empreendimento, sobretudo porque o empregador, grande parte das vezes, terá que contratar outro empregado para o lugar da gestante enquanto perdurar seu afastamento, dobrando os encargos trabalhistas nesse período.
Sem dúvidas, esse encargo financeiro adicional, surgido abruptamente no excepcional momento da crise financeira trazida pela pandemia e que se arrasta por mais de um ano, é capaz, em determinadas situações – talvez na maioria delas – de comprometer a própria subsistência da empresa e, consequentemente, dos empregos por ela gerados.
Frente a essa nova realidade, passou-se a cogitar a possibilidade de utilização do mecanismo da suspensão de contrato de trabalho disciplinado pela Medida Provisória 1.045, que entrou em vigor no dia 28 de abril desse ano. Contudo, há importantes argumentos em sentido contrário a essa possibilidade, motivo pelo qual o cenário jurídico trabalhista brasileiro está diante de mais uma relevante controvérsia no contexto da pandemia.
Sobejam artigos e opiniões acerca do tema, oriundos das mais abalizadas vozes, principalmente na internet, e, de tão controverso, o tema se ramificou em duas linhas totalmente opostas e em outras tantas intermediárias. Para alguns, é inviável acordar a suspensão do contrato de trabalho com a gestante após o advento da Lei 14.151. Outros defendem exatamente o oposto. Finalmente, há soluções intermediárias que, modo geral, selecionam regras da MP 1045 e da Lei 14.151, para tentar viabilizar o acordo de suspensão contratual com a empregada gestante.
II – A CORRENTE AVESSA À SUSPENSÃO DO CONTRATO DE TRABALHO PREVISTA NA MP 1.045/21
Comecemos então compreendendo os argumentos contrários à celebração do acordo de suspensão de contrato de trabalho com a empregada gestante afastada do trabalho presencial nos temos da Lei 14.151/21.
Aqueles que entendem impossível acordar com a empregada gestante a suspensão do seu contrato de trabalho com amparo na MP 1045/21. advogam que a Lei 14.151/21 é mais benéfica, pois garante o contrato de trabalho da gestante sem solução de continuidade e com o pagamento integral da sua remuneração.
A suspensão contratual, pelo contrário, implicaria redução no período aquisitivo de férias e, em determinadas situações, diminuição do valor do 13º salário, além da ausência de cômputo do período de suspensão no tempo de vigência do contrato de trabalho, conforme já reconhecido pelo próprio Ministério da Economia na Nota Técnica SEI nº 51520/2020/ME, editada no ano passado.
Não bastasse isso, o Benefício Emergencial que a empregada gestante receberá pode ser inferior à sua remuneração, caso esta seja maior que o valor máximo do seguro-desemprego a que a mesma empregada teria direito, além de não haver incidência de FGTS.
Logo, não há como negar que a suspensão do contrato de trabalho da empregada gestante lhe traz múltiplas desvantagens em relação à disciplina preconizada na Lei 14.151/2021. No caso da empregada gestante cuja atividade é incompatível com o trabalho remoto é indiscutivelmente mais vantajoso permanecer em sua residência sem trabalhar, percebendo sua remuneração normalmente.
Nessa ordem de ideias, a tese contrária à aplicação da MP 1045 às gestantes se vale de um dos princípios basilares do Direito do Trabalho: o princípio da norma mais favorável. De acordo com ele, estando-se frente a duas normas igualmente aplicáveis ao mesmo caso, deve-se optar pela mais favorável ao empregado.
É, de fato, um sólido embasamento. Mas a corrente intermediária, pelo que pudemos perceber até agora, goza de maior simpatia nos debates.
III – A CORRENTE INTERMEDIÁRIA
Para a corrente intermediária, a suspensão do contrato de trabalho da empregada gestante até pode ser utilizada pelo empregador, porém, desde que haja complementação do valor por ela recebido a título de Benefício Emergencial (BEm) até que se chegue ao valor da sua remuneração.
Parcela dos adeptos da corrente intermediária também defende que o empregador deva continuar recolhendo o FGTS normalmente durante o período de suspensão contratual.
A solução preconizada pela corrente intermediária tem por objetivo, a um só tempo, permitir o uso da suspensão contratual prevista na MP 1045 e satisfazer o comando inserto na parte final do artigo 1º da Lei 14.151 quanto ao pagamento da remuneração da gestante afastada.
IV – OS ENTRAVES À APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA NORMA MAIS FAVORÁVEL
Antes de abordarmos o pensamento alinhado à possibilidade de suspensão de contrato de trabalho da empregada gestante nos termos previstos na MP 1045/21, mostra-se indispensável uma reflexão sobre os paradoxos e obstáculos trazidos pelo princípio da norma mais favorável a essa discussão, uma vez que esta é a espinha dorsal do argumento contrário à aplicação da MP às gestantes.
Há, em nosso modo de pensar, pelo menos três razões para afastar a aplicação do princípio da norma mais favorável.
IV.1 – AUSÊNCIA DE CONFLITO ENTRE NORMAS
Em nossa avaliação, que não pretende nem de longe esgotar o debate em torno do assunto, não se está diante de normas que regulam a mesma situação, o mesmo caso, a legitimar a aplicação do princípio da norma mais favorável.
A MP 1045 possui um escopo muito mais amplo, sendo uma norma voltada para a preservação da própria fonte de sustento dos empregados, qual seja, a empresa e o emprego.
Trata-se não apenas de uma norma que regula direitos trabalhistas, mas de uma política pública instituindo um programa de manutenção do emprego e da renda e cujas medidas precisam ser interpretadas e aplicadas de forma orgânica.
Essa política visa a garantir a continuidade das atividades laborais e empresariais e reduzir o impacto social decorrente das consequências da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, como bem elucidam os seus artigos 1º e 2º.
Como não poderia ser diferente, referido programa contemplou as empregadas gestantes e, para não haver dúvidas, fê-lo de modo expresso, como se vê no artigo 13 da Medida Provisória 1045/21.
Logo, quando a MP instituiu o acordo de suspensão de contrato de trabalho, objetivou atenuar os impactos financeiros trazidos pela crise econômica e social gerada pela pandemia, garantir a própria existência do empregador e, consequentemente, da vaga de emprego, inclusive da gestante.
A suspensão do contrato de trabalho da gestante, assim como de qualquer outro empregado, preconizada pela MP 1045/21, tem como objetivo garantir a sobrevivência do empreendimento e, por consequência, do emprego.
Extinguindo-se a empresa e o posto de trabalho da gestante, tornar-se-á letra morta a obrigação de afastamento e o escopo protetivo garantidos pela Lei 14.151/21. Tanto é importante afastar a gestante do trabalho presencial a fim de preservar sua vida e a do feto, quanto o é preservar o seu emprego, de cuja existência depende aquele direito de proteção.
Por isso, não há coerência, com a devida venia daqueles que entendem o contrário, em se admitir que a Lei 14.151/21 aniquilou o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda para a empregada gestante.
Diferentemente do propósito da MP 1045/21, a Lei 14.151/21 visa a proteger a saúde da empregada gestante e do feto diante do estado de vulnerabilidade trazido pela gravidez frente à COVID-19.
Analisando o tramite do Projeto de Lei nº 3932/2020, que resultou na Lei 14.151/2021, percebe-se com clareza que o seu escopo é a proteção da saúde e da vida da gestante e do feto. Bastante elucidativo nesse sentido é o Parecer 70/2021-PLEN/SF, de autoria da Senadora Nilda Gondim (MDB/PB), de onde se podem extrair os seguintes destaques:
A Carta Magna prega, como um dos direitos dos trabalhadores brasileiros, a redução dos riscos inerentes ao trabalho (art. 7º, XXII, da Constituição Federal).
Em face de tal comando, dirigido ao legislador infraconstitucional, cabe a este Parlamento a edição de normas que, como o projeto em testilha, preservem a saúde do trabalhador.
Atualmente, não é exagero afirmar que o maior risco laboral a que o trabalhador encontra-se sujeito é a contaminação por covid-19. Além do risco decorrente do contato físico com os seus colegas de trabalho, o trabalhador, na grande maioria das vezes, depende da utilização de transportes públicos lotados para se deslocar ao estabelecimento empresarial e dele retornar. A permanência em ônibus e metrôs abarrotados de pessoas, a toda evidência, majora exponencialmente as chances de contaminação pela covid-19.
O resultado dessa equação macabra trabalho presencial mais transporte público lotado é a quase certa a contaminação não só do trabalhador, mas também de sua família.
Tal circunstância ganha especial relevo no tocante à empregada gestante.
A trabalhadora na referida condição, além de necessitar de cuidados especiais para a preservação de sua saúde, tem que adotar todas as medidas possíveis para a proteção da vida que carrega.
Não pode, em um momento como o ora vivenciado no País, ficar exposta a este terrível vírus, que pode ceifar a sua vida, a de seu filho, bem como arrasar o seu núcleo familiar.
Feitas essas considerações, torna-se evidente que as normas em cotejo não regulam a mesma situação e não possuem a mesma mens legis. A Medida Provisória 1045/2021 estabelece uma política pública voltada à preservação do emprego, da renda e do empreendimento. A Lei 14.151/2021 visa proteger a saúde da empregada gestante e do feto do contagio pelo coronavírus diante da vulnerabilidade provocada pela gravidez.
Por essa razão, entendemos ser indevida a aplicação do princípio da norma mais favorável para se concluir pela imposição da fórmula preconizada pela Lei 14.151, no sentido do custeio da remuneração da gestante pelo empregador, em detrimento da medida de suspensão contratual disciplinada na MP 1045.
É premissa inafastável para a incidência do princípio da norma mais favorável que o intérprete e aplicador do Direito esteja diante de normas distintas regulando a mesma situação.
Porém, não há que se falar em conflito entre as regras da MP 1045/2021 e as da Lei 14.151/2021 porque, como se viu, elas não regulam a mesma situação. A primeira instituiu uma política pública com medidas alternativas à execução normal do pacto laboral, a fim de preservar o emprego e a empresa. A segunda, instituiu uma medida de preservação da saúde da empregada gestante e do feto diante dos agravos trazidos pela pandemia.
A aplicação do princípio da norma mais favorável é incompatível, portanto, com a tese mais inflexível, que defende a inaplicabilidade total da suspensão do contrato de trabalho prevista na MP 1045/21 às empregadas gestantes afastadas do trabalho presencial, por não estarmos diante de normas que regulam a mesma situação, inexistindo conflito a ser dirimido.
IV.2 – IMPOSSIBILIDADE DE SE CRIAR UMA TERCEIRA NORMA A PARTIR DE PONTOS ESCOLHIDOS DAS NORMAS SOB COMPARAÇÃO
O princípio da norma mais favorável também não socorre a doutrina intermediária.
A corrente intermediária não se afigura, salvo melhor juízo, compatível com o caráter científico exigido para aplicação do princípio da norma mais favorável, uma vez que ela seleciona e mescla pontos conflitantes das duas normas sob análise, adiciona obrigações extra legem, e termina criando um terceiro gênero, totalmente estranho ao ordenamento jurídico, que não equivale, juridicamente, à formula adotada pela Lei 14.151/21.
A complementação financeira do Benefício Emergencial pelo empregador, assim como o recolhimento do FGTS durante a suspensão contratual, preconizados pelos defensores da corrente intermediária, vão de encontro ao disposto no art. 1º da Lei 14.151/2021, no que toca ao pagamento da remuneração da empregada gestante.
Deveras, o artigo 9º, §1º, incisos II, IV e V, da MP 1045, dispõe expressamente que a ajuda compensatória mensal paga pelo empregador possui natureza jurídica indenizatória e não compõe a base de cálculo do INSS e do FGTS. Logo, tais complementos não equivalem a “remuneração” e, portanto, mesmo adotando essa prática, o empregador não estaria cumprindo, de modo escorreito, a regra “sem prejuízo de sua remuneração”, trazida pela Lei 14.151.
Em outros termos, se for para cumprir literalmente a determinação legal emanada do artigo 1º da Lei 14.151/21, de fato, o empregador precisa deixar fluir o contrato de trabalho da empregada gestante normalmente, como nas hipóteses de interrupção contratual, sendo que o paliativo da complementação para o caso de suspensão contratual, defendido pela corrente intermediária, continua violando a literalidade da novel lei.
Esse modo de interpretar normas que se contrapõem, a pretexto de aplicar o princípio da norma mais favorável, é tido por Maurício Godinho Delgado (2007, p. 200) como despido de cientificidade e deve ser evitado. Confira-se, a propósito, o que ele disserta a respeito do tema, quando fala da aplicação do princípio da norma mais favorável:
No tocante ao processo de hierarquização das normas, não poderá o operador jurídico permitir que o uso do princípio da norma mais favorável comprometa o caráter sistemático da ordem jurídica, elidindo-se o patamar de cientificidade a que se deve submeter todo processo de interpretação e aplicação do Direito. Assim, o encontro da regra mais favorável não se pode fazer mediante uma separação tópica e casuística de regras, acumulando-se preceitos favoráveis ao empregado e praticamente criando-se ordens jurídicas próprias e provisórias em face de cada caso concreto – como resulta do enfoque proposto pela teoria da acumulação.
Ao contrário, o operador jurídico deve buscar a regra mais favorável enfocando globalmente o conjunto de regras componentes do sistema, discriminando, no máximo, os preceitos em função da matéria, de modo a não perder, não longo desse processo, o caráter sistemático da ordem jurídica e os sentidos lógico e teleológico básicos que sempre devem informar o fenômeno do Direito (teoria do conglobamento).
Destarte, seja por se enxergar indevidamente um conflito de normas onde ele não existe, seja por se apregoar criações jurídicas inadequadas, afigura-se incabível a utilização do princípio da norma mais favorável, tanto pelos defensores da corrente intermediária, quanto por aqueles que repudiam totalmente a MP 1045/2021.
IV.3 – NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO LEX POSTERIOR DEROGAT LEGI PRIORI
Se a Lei 14.151/21 estivesse a regular a mesma situação da MP 1045/21, porém de modo diverso, no tocante à empregada gestante, estar-se-ia não diante da necessidade de aplicação do princípio da norma mais favorável, mas, sim, da inafastável revogação tácita da norma antiga pela nova por incompatibilidade
É o que preconiza a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em seu artigo 2º, §1º: “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.
Assim, teríamos que, em relação à empregada gestante, estaria revogado o artigo 13 da MP 1.045/21, segundo o qual “A empregada gestante, inclusive a doméstica, poderá participar do Novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, observadas as condições estabelecidas nesta Medida Provisória.”. Referido dispositivo seria incompatível com a nova lei, que determina o pagamento da “remuneração” da gestante afastada do trabalho presencial.
Essa, a propósito, é mais uma razão para deslegitimar a aplicação do princípio da norma mais favorável. A antinomia entre normas de mesma hierarquia, mas sucessivas no tempo, é sanada pelo princípio lex posterior derogat legi priori.
Daí então, a premissa de que, a partir da Lei 14.151/21, somente resta ao empregador a via única de pagar a remuneração da empregada gestante afastada do trabalho presencial, o que traz, como consequência, a eliminação do ordenamento jurídico, por revogação tácita, de todas as soluções contratuais distintas.
A propósito, não seria dado ao empregador lançar mão da suspensão de contrato de trabalho prevista na MP 1045/21, nem de qualquer outra modalidade de suspensão ou alteração contratual capaz de gerar um resultado diferente do pagamento da remuneração da empregada gestante. Todas elas estariam revogadas pela Lei 14.151/21.
Entre essas revogações estaria o art. 476-A da CLT, que trata da suspensão do contrato de trabalho para participação em curso ou programa de qualificação profissional oferecido pelo empregador, haja vista que ela não implica pagamento da remuneração e a ajuda compensatória mensal que poderá ser fornecida pelo empregador possui natureza indenizatória, nos termos do §3º desse dispositivo.
Diga-se, ainda, que o massacre legislativo promovido pela Lei 14.151/21, em relação à empregada gestante, seria permanente. Embora ela preconize que suas obrigações vigoram durante a emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do novo coronavírus, que não possui data para acabar, é cediço que, salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência (art. 2º, §3º, da LINDB).
Imagine-se então se a MP 1045/21 for convertida em lei. Estar-se-á, novamente, diante de lei nova incompatível com a lei 14.151/21, que será cronologicamente mais antiga. Voltará o empregador a poder acordar a suspensão de contrato de trabalho com a empregada gestante?
Certo é que o princípio da norma mais favorável não se revela compatível com o princípio lex posterior derogat legi priori, devendo este ser priorizado, uma vez que não se pode ignorar a revogação da lei anterior pela posterior, que regule a mesma matéria.
Se a lei posterior (Lei 14.151/21) trata da mesma matéria que a anterior (MP 1045/21), em relação à empregada gestante, houve revogação desta última norma e isso não pode ser ignorado. E se a norma não existe no mundo jurídico, não há que se falar em escolha de normas, nem no princípio da norma mais favorável.
De outro lado, em se admitindo tal revogação, chega-se a uma conclusão carente de lógica, vez que estariam revogadas para sempre as possibilidades de suspensão contratual da empregada gestante e, justamente, ela estaria excluída do programa emergencial de manutenção do emprego e da renda instituído pela MP 1045/21.
Troca-se a política pública de manutenção do emprego e da renda pela singela obrigação de manutenção da remuneração. E a qualquer custo, inclusive, do próprio emprego. Não enxergamos, salvo melhor juízo, coerência nesse raciocínio.
Valemo-nos, aqui também, da preciosa lição de Maurício Godinho Delgado (2007, p. 226), em sua obra Curso de Direito do Trabalho, quando trata da interpretação, integração e aplicação do Direito do Trabalho:
Busca-se, na análise da norma jurídica, não a contradição interna das ideias e princípios normativamente apresentados, mas sua congruência e organicidade integradas. Pesquisa-se, no preceito normativo, a noção que faça sentido, tenha coerência e seja eficaz. Não se pode trabalhar, interpretativamente, com a noção de uma norma que traga dentro de si os instrumentos para sua própria esterilização e inaplicabilidade e, assim, os instrumentos para sua própria ineficácia.
Mais adiante, o nobre autor (Delgado, 2007, p. 235), dissertando sobre os métodos interpretativos, enfatiza a necessidade de priorizar a lógica, a coerência, a sistematicidade do ordenamento jurídico e a teleologia da norma sob avaliação:
Contemporaneamente, a Hermenêutica Jurídica recomenda que se harmonizem, na operação interpretativa, os três últimos métodos acima especificados, formando um todo unitário: método lógico-sistemático e teleológico (após feita a aproximação da norma mediante o método linguístico, é claro). De fato, não há como se pesquisar o “pensamento contido na lei”, a mens legis ou ratio legis (utilizando-se, pois, do método lógico), sem se integrar o texto interpretado no conjunto normativo pertinente da ordem jurídica (valendo-se, assim, do método sistemático) e avançando-se, interpretativamente, na direção do encontro dos fins sociais objetivados pela legislação em exame (fazendo uso do método teleológico, portanto).
Finalmente, encerra asserindo que “Na verdade, a conclusão interpretativa deve resultar da convergência do método gramatical – utilizado como primeiro instrumento de aproximação da norma – com o critério combinado logico-sistemático e teleológico”.
A partir dessas lições, não temos como nos alinhar à posição que defende, a partir da Lei 14.151/21, o pagamento da remuneração da gestante afastada do trabalho presencial em detrimento da possibilidade de suspensão contratual trazida pela política pública do programa emergencial de manutenção do emprego e da renda.
O trabalho exegético levado a efeito por essa corrente fez uso apenas da interpretação gramatical e desprezou por completo o “critério combinado logico-sistemático e teleológico”.
Em nossa avaliação, essa não é a melhor técnica de interpretação a ser utilizada, além de negligenciar, no processo interpretativo, o atendimento aos fins sociais da Lei 14.151/21 e às exigências do bem comum recomendadas para a atual situação de crise trazida pela pandemia do coronavírus, em manifesto descompasso com o mandamento prescrito no artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
V – A CORRENTE FAVORÁVEL À APLICAÇÃO IRRESTRITA DA SUSPENSÃO CONTRATUAL PREVISTA NA MP 1045/21
No outro extremo das discussões, situam-se aqueles que, mesmo diante da novel lei, entendem que a MP 1.045 se aplica – ou melhor, continua aplicável – de forma íntegra, às empregadas gestantes, corrente à qual nos filiamos.
Visto acima que a interpretação literal e isolada da norma não é a melhor, nem é aquela que alcança os fins sociais objetivados pela lei ou as exigências do bem comum, necessário que a Lei 14.151/21 seja interpretada organicamente com o sistema jurídico extraordinário criado durante a pandemia da COVID-19.
Tal sistema, em nossa avaliação, prestigiou a preservação do emprego, da empresa e da renda, pelo lado da MP 1045/21, e, por parte da Lei 14.151/21, a preservação da saúde da gestante e do feto.
Assim sendo, deve-se prestigiar a interpretação que traga sinergia e coerência entre as normas em cotejo, não o inverso, pois emprego e saúde são dois lados da mesma moeda e um não existe sem o outro.
Em nossa avaliação, a Lei 14.151/21 não regulou a mesma matéria disciplinada na MP 1045/21 em relação às empregadas gestantes. Ela apenas é uma lei que trouxe disposições especiais a par de uma norma existente e, com isso, não promoveu qualquer revogação (art. 2º, §2º, LINDB).
A equação é simples. Não fazendo uso o empregador da suspensão contratual, o afastamento da gestante se impõe mesmo assim. Porém, nesse caso, deve o empregador arcar com sua remuneração, já que o contrato de trabalho segue normalmente.
E qual a necessidade da nova lei? Era necessário determinar o afastamento da gestante do trabalho presencial, uma vez que, pela MP 1045/21, o empregador não está obrigado a priorizar as empregadas gestantes na suspensão contratual. Poderia, inclusive, suspender o contrato de trabalho de qualquer outro empregado, e não o das gestantes.
Agora, por um ou outro meio, deverá o empregador afastar a empregada gestante do trabalho presencial. Quando o fizer sem a suspensão contratual, deverá garantir o pagamento de sua remuneração.
Outra finalidade da lei está relacionada à incerteza quanto à duração do programa emergencial de manutenção do emprego e da renda. O afastamento da empregada gestante do trabalho presencial durante a emergência de saúde pública de importância nacional decorrente da COVID-19 se impõe, estejam, ou não, em vigor as medidas previstas na MP 1045/21.
Em não havendo prorrogação do programa estatuído pela MP e não se valendo o empregador de alguma outra medida prevista em lei capaz de minimizar os custos trabalhistas, a exemplo da suspensão contratual prevista no art. 476-A da CLT, deverá ele manter a gestante afastada do trabalho presencial. Daí a necessidade de deixar claro que o afastamento, nesse caso, se dará “sem prejuízo de sua remuneração”.
VI – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por tudo o que foi exposto, acreditamos na impropriedade da aplicação do princípio da norma mais favorável e da interpretação puramente literal da novel lei.
Cremos que a interpretação baseada no método lógico-sistemático e teleológico é a mais adequada e que, portanto, resulta na possibilidade de conciliação entre as duas normas. Nesse patamar, a imposição de pagamento da remuneração veiculada na Lei 14.151/21 veio apenas para o caso de o empregador não se utilizar da suspensão contratual prevista na MP 1045/21.
Em nosso sentir, não foi intenção do legislador afastar as hipóteses de suspensão contratual, entre elas a que enseja o pagamento do o benefício emergencial. Afigurar-se-ia uma interpretação absurda admitir que a nova lei impôs, a qualquer custo, inclusive da empresa e do emprego, a continuidade do contrato de trabalho da empregada gestante sem viabilidade de suspensão. Toda interpretação que leva ao absurdo, é cediço, deve ser evitada.
A Lei 14.151/21, portanto, apenas estabelece disposições especiais a par das já existentes e esse modo de pensar está em harmonia com os fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, tudo em conformidade com o que preconiza a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em seus artigos 2º, § 2º, e 5º.
É importante repisar, finalmente, que o entendimento aqui esposado é apenas mais um entre diversos outros de indiscutível solidez, e o tema ainda merece ser amplamente debatido. Sem dúvidas, as controvérsias irão desaguar, mais dia menos dia, no Poder Judiciário.
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Autor
- Ednaldo Brito – Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília Procurador do Trabalho da 22ª Região