Internacional
Ajuda estatal pode ser saída para crise da imprensa?
Jornais mundo afora veem sua circulação caindo, suas fontes de renda diminuindo e “fake news” minando sua credibilidade. Fórum sobre Informação e Democracia defende intervenção governamental
“O que vemos recentemente é que um número crescente de leitores telefona para nossa redação para nos dizer o quanto é importante para eles que nós ainda coloquemos nas ruas nossa versão impressa em papel”, diz Benjamin Piel, editor-chefe do MindenerTageblatt, um jornal diário publicado na cidade de Minden, no estado da Renânia do Norte-Vestfália, no noroeste da Alemanha.
A publicação tem atualmente uma tiragem de 26 mil exemplares, mas o número está encolhendo – apesar dos leitores fiéis –, com uma queda em torno de um quarto nas vendas nas últimas duas décadas.
O mesmo ocorre com muitos outros jornais locais e regionais. A covid-19 certamente não ajudou, mas não se pode negar que a crise já vem de muito antes do início da pandemia. A chamada lealdade do leitor está em baixa.
Enquanto os governos mais autoritários ampliam seu apoio à disseminação de notícias falsas, nos Estados democráticos, meios de imprensa convencionais lutam para sobreviver, enquanto seus recursos se esvaem. Somente na Alemanha, a circulação dos grandes jornais caiu 45% nos últimos 20 anos.
Nos Estados Unidos, tendências semelhantes levaram ao surgimento do que ficou conhecido como “desertos de notícias”. Áreas inteiras do país deixaram de receber o tipo de informação básica que as imprensas locais tendem a fornecer. Nos últimos 15 anos, mais de 2 mil jornais foram forçados a fechar suas portas nos EUA.
“As forças que minam o velho jornalismo e tentam restringi-lo, controlá-lo e extingui-lo em alguns lugares estão ficando mais fortes, e as técnicas e as frentes a partir das quais isso acontece estão se multiplicando”, explicou Sameer Padania em entrevista à DW.
Junto com colegas, ele é um dos autores do relatório Um Novo Pacto pelo Jornalismo [que utiliza a expressão New Deal em referência às reformas implementadas nos EUA nos anos 1930 para recuperar a economia do país após a Grande Depressão], desenvolvido pelo Fórum sobre Informação e Democracia, com o apoio da organização Repórteres sem Fronteiras (RSF). O objetivo é criar um quadro ambicioso para o futuro do jornalismo.
O “novo pacto” proposto no relatório tem como objetivo dar um novo impulso aos órgãos de mídia – impressa, digital ou linear – e mantê-los no mercado. “O objetivo é repensar o jornalismo, não como ‘setor de mídia’, mas como elemento central da liberdade de imprensa e de expressão”, afirma Christophe Deloire, secretário-geral da RSF e presidente do Fórum.
Incentivos fiscais e cupons
A ideia é que as forças motrizes por trás da realização do “novo pacto” sejam os governos e as instituições fundamentais nas sociedades democráticas. O Fórum lista uma série de recomendações para ajudar os países a destinar até 0,1% de seu Produto Interno Bruto (PIB) anual para o jornalismo.
O princípio por trás da proposta é que os governos teriam de se comprometerem a respeitar e apoiar uma independência ilimitada, tanto editorial quanto estrutural. A esperança é criar mercados “premium” de mídia dentro de dez anos. Nenhum dos formatos – impresso ou online, por exemplo – receberia tratamento preferencial. O foco, ao contrário, deve estar em projetos inovadores.
É claro que não há soluções sob medida. Ao contrário, o “novo pacto” representa uma visão e uma plataforma para que o espectro mais amplo possível de grupos de interesse possa se reunir antes de levarem suas ideias de volta ao nível local, para que possam ser postas em prática.
Algumas das recomendações do relatório são de caráter estrutural. Por exemplo, avaliar a melhor forma de estabelecer conjunturas financeiramente sustentáveis através de mecanismos como incentivos fiscais.
Outras medidas incluem apoio estatal em menor escala, como a introdução de cupons que poderiam permitir às pessoas de baixa renda manter assinaturas de jornais ou portais de internet regionais.
“Vários governos já falaram sobre a necessidade de apoiar o jornalismo independente, preservar a liberdade de imprensa e assegurar que os cidadãos tenham acesso à informação. Eles precisam agora agir e exercer liderança nessas questões”, disse Padania.
Financiar sem intervir
A proposta de o governo financiar jornalistas é algo que na Alemanha – levando-se em conta regimes autoritários do passado – sempre dispara alarmes.
O documento do Fórum enfatiza que o objetivo é e deve ser a criação de um novo ambiente onde floresça uma imprensa independente e inovadora, da qual somente “países respeitadores dos direitos” poderão se beneficiar. Isto é, países como a Alemanha, onde os direitos do cidadão são amplamente respeitados.
“O relatório joga luz sobre o déficit financeiro que o jornalismo enfrenta. O consenso acadêmico é que o setor público precisa assumir um papel mais ativo”, diz Christopher Buschow, professor-assistente para Organização e Redes de Mídia da Universidade Bauhaus, em Weimar.
Benjamin Piel, do Mindener Tagesblatt, não tem dúvidas de que seu jornal simplesmente não sobreviverá no longo prazo sem esse tipo de apoio. “A cada assinante que perdemos, a produção e as vendas se tornam mais caras”, afirmou.
Ele explica que se um jornal tem 15 ou 20 assinantes em uma mesma rua, a mesma logística é necessária para assegurar que os exemplares sejam entregues.
“Se olharmos dessa forma, então o apoio do Estado realmente ajudaria muito”, diz Piel. “Entretanto, eu teria um grande problema se isso tivesse qualquer coisa a ver com conteúdo financiado, e se houvesse a menor impressão de que o Estado pudesse interferir na independência do processo de produzir notícias.”
Apoio ao jornalismo de qualidade
Um pacote de estímulo no valor de 220 milhões de euros criado pelo Ministério alemão da Economia havia sido planejado para substituir a estrutura de vendas dos jornais, além de ajudar veículos de mídia a entregarem os exemplares. Mas o projeto não decolou, em parte, porque as novas empresas de mídia se sentiram em desvantagem, uma vez que esse financiamento se aplicaria somente aos grupos tradicionais.
Esse é um erro que outros países conseguiram evitar. Enquanto a Alemanha ainda tem que se acostumar com o Estado se tornando um fornecedor de recursos, a Dinamarca, por exemplo, já possui um esquema de promoção da imprensa que abrange todo o espectro da mídia, incluindo até um fundo para inovações.
Mas, para Volkmar Kah, diretor executivo do sindicato de jornalistas DJV no estado da Renânia do Norte-Vestfália, as coisas na Alemanha começam a tomar a direção certa. “Os jornais precisam se desenvolver. Uma iniciativa que simplesmente apoie as vendas e a entrega estaria somente apoiando um modelo de negócio moribundo”, afirma.
Em sua opinião, o apoio estatal deve estar associado à qualidade do jornalismo e não somente aos números de circulação. Ele afirma que o recipiente pode até ser uma start-up que esteja preenchendo a lacuna deixada nas regiões de onde as grande mídias estejam se afastando.
“Mas mesmo entre os veículos de imprensa tradicionais há uma preocupação considerável sobre o que a intervenção do Estado poderia significar. Precisamos ser muito cuidadosos”, diz Kah.
Em Minden, Benjamin Piel alerta que há muitos leitores que “querem o produto impresso e nada mais”. Ele diz que se fosse fazer uma mudança para um formato totalmente digital, ele não teria mais alcance sobre esse público.
O fim da imprensa no formato atual
O especialista em mídia Christopher Buschow ressalta que não seria inteligente manter o jornalismo dependente de ajuda por um período prolongado. “Seria uma abordagem muito perigosa. O que realmente precisamos atingir é organizar financiamentos direcionados que iriam – mesmo na fase de transformação em que estamos hoje – nos permitir dar início a inovações no jornalismo e a projetos promissores que conseguiriam, no melhor dos casos, se manter sozinhos.”
Segundo afirma, o que não está claro é a questão sobre de que modo os fundos adicionais poderão ser distribuídos sem o envolvimento do Estado. O Novo Pacto para o Jornalismo sugere o que chama de “entidades de financiamento intermediárias independentes”. Buschow acredita nesta solução, que inclusive já foi testada no jornalismo científico.
Ele, porém, faz uma ressalva. “Está claro que as coisas não podem continuar como estão. Isso poderá marcar o fim do ambiente de imprensa da forma como conhecemos – e com consequências graves.”
Afinal, segundo diz, estudos demonstram que nos lugares onde não há imprensa livre existe mais corrupção e menor comparecimento às urnas. Além disso, outros elementos tendem a se mover para ocupar esse vácuo, como por exemplo, os teóricos da conspiração e a chamada imprensa alternativa.