Internacional
Colômbia, uma máquina de guerra que produz mercenários
O assassinato do presidente haitiano, presumivelmente nas mãos de mercenários da Colômbia, confronta o mundo um problema nascido de cinco décadas de guerra civil no país: Forças Armadas gigantescas, porém mal pagas
Cuba exporta médicos, Colômbia, mercenários: “É terrível escutar isso, mas é a realidade”, comenta à DW o ex-militar colombiano Alfonso Manzur Arrieta. O assassinato do presidente haitiano Jovenel Moïse, em 7 de julho de 2021 põe em evidência um vergonhoso e gigantesco problema produzido na Colômbia, pois se presume que o crime foi perpetrado por um grupo de ex-militares colombianos, que teriam sido contratados como mercenários pela firma americana CTU Security, de propriedade do venezuelano Antonio Intriago.
Como e por que o país produz mercenários? Quem são eles e seus contratadores? “Este é um fenômeno originado em mais de meio século de guerra na Colômbia, no qual as Forças Públicas, em especial o Exército e a Marinha, se converteram num poderoso fator da mesma guerra”, afirma Arrieta.
Segundo o politólogo e diretor da fundação Veteranos pela Colômbia, que advoga a reconciliação entre ex-militares e ex-guerrilheiros, “a guerra é um negócio”. Sua fundação, no entanto, “aprova a política de ‘segurança democrática’, pois sem ela teria sido impossível fazer se retirarem as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), que naquele momento eram muito fortes”.
Essa estratégia do ex-presidente Álvaro Uribe (2002-2010), apresentada em 2003 pela atual vice-presidente e chanceler colombiana, Marta Lucía Ramírez, propunha um papel mais ativo da sociedade civil na luta do Estado e seus órgãos de segurança contra a ameaça dos grupos insurgentes. Mas, apesar do grande apoio popular, a aplicação das medidas também propiciou graves violações dos direitos humanos.
Consequências do Plano Colômbia
“Nesse momento, a aliança de membros das Forças Armadas com o paramilitarismo prejudicou a ética militar”, prossegue Arrieta. Ele vê aí a gênese do que mais tarde se denominariam “falsos positivos”, ou seja, as execuções extrajudiciais. De acordo com a Justiça Especial para a Paz (JEP), entre 2002 e 2008 militares colombianos assassinaram pelo menos 6.402 jovens inocentes para apresentá-los como baixas de combate.
A consequência da cooperação entre alguns militares e grupos paramilitares foi que “as Forças Militares da Colômbia perderam a legitimidade”. “Hoje, muitos de meus ex-companheiros estão no cárcere por isso”, lamenta Arrieta, que é graduado em Segurança Pública e Assuntos Internacionais.
A Força Pública colombiana é a maior da América Latina, superando a do Brasil. Segundo o Ministério da Defesa, o país somava 402.308 soldados, cadetes e policiais em setembro de 2020. O Plano Colômbia, lançado em 1999 pelo então presidente Andrés Pastrana e seu homólogo americano Bill Clinton, em princípio para combater a aliança da guerrilha com o narcotráfico, terminou inflando as fileiras das Forças Armadas colombianas.
“Mais tarde, o mesmo narcotráfico geraria outro novo setor: o da segurança privada”, relata Alfonso Manzur Arrieta. Sua conclusão é que quando o Exército perde a bússola ética, pode dar origem ao mercenarismo, que ele considera “um fenômeno muito complicado”.
Para legionário colombiano, nada de “heróis da pátria”
A Colômbia ostenta o maior exército da América Latina, treinado e provado em combate. Seus integrantes se aposentam jovens: bastam 21 anos de serviço para um militar poder entrar para a reforma, com uma pensão de 6 milhões de pesos (US$ 1.560). Em comparação, um engenheiro eletrônico ganha apenas cerca de US$ 650. Os soldados rasos, contudo, recebem um salário mínimo, de atualmente menos de 1 milhão de pesos (US$ 260): tão pouco que, para subsistir, precisam procurar trabalhos alternativos.
Raphaël (nome fictício para proteger a identidade do entrevistado) é colombiano e membro da Legião Estrangeira, uma força de elite do Exército da França, adjunta ao Ministério da Defesa e composta por ex-militares de quase todo o mundo. Ele fala à DW num dia livre de operações na selva guianense.
“Eu mesmo renunciei ao Exército porque, após ter sido ferido em combate com as Farc, a instituição me desamparou.” Ciente do assassinato no Haiti, lamenta as ações de “mercenários que se acham Rambos, ávidos de sangue e aventura, como nos filmes”. Ele mesmo se considera “legionário”, candidatou-se sem intermediários na França, passou pelas duras provas físicas, psicológicas e de conhecimentos e foi admitido na Legião Estrangeira com um contrato oficial.
Na realidade, “nós, colombianos, somos bem apreciados, justamente por nossa alta capacitação, experiência em campo e seriedade”, acrescenta. Raphaël é um dos que zelam pela segurança da Estação Espacial Europeia na Guiana Francesa, mas suas funções também incluem patrulhar a selva para prevenção do narcotráfico e perseguir os garimpeiros de ouro ilegais, a maioria brasileiros.
Em suas missões, os maiores riscos que corre são o de ser mordido por um morcego hidrófobo ou de sufocar após o contato com um peixe-gato. A principal advertência de seus superiores é manter-se longe do mundo da prostituição, dominado na Guiana Francesa por venezuelanas e dominicanas.
Raphaël não perdeu as esperanças de voltar à Colômbia e abrir um negócio: o que perdeu foi a admiração pelas revistas de luxo do Exército nacional, que falam de “heróis da pátria”.