Esporte
A sociedade anônima do futebol e a recuperação judicial
É uma partida decisiva para todos clubes brasileiros de futebol e haverá prorrogação antes do resultado final
No último dia 6, o Projeto de Lei nº 5516/2019, que institui a figura da “Sociedade Anônima do Futebol” (SAF) e dispõe sobre sua constituição, regras de governança, meios de financiamento da atividade, tratamento dos passivos, inclusive fiscal, dentre outras providências, foi sancionado pelo presidente da república, tornando-se a Lei nº 14.193/2021.
Esta lei permite que os clubes de futebol brasileiros, que em sua maioria são constituídos como associações civis sem fins lucrativos, regidas pelo Código Civil e, na maioria dos casos, isento de pagamento de alguns tributos, passem a ter a configuração de uma sociedade anônima, podendo emitir títulos regulados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), ações para comercialização pelo mercado financeiro (bolsa de valores), receber recursos de investidores e pedir recuperação judicial ou extrajudicial.
Para que seja possível a constituição da SAF, a principal atividade do clube (ou, agora, da companhia) deve consistir na prática do futebol, feminino e masculino, em caráter profissional, podendo seu objeto social compreender: (i) o fomento e o desenvolvimento de atividades relacionadas com a prática do futebol, obrigatoriamente nas suas modalidades feminino e masculino; (ii) a formação de atletas profissionais de futebol, e a obtenção de receitas decorrentes da transação dos seus direitos desportivos; (iii) a exploração, sob qualquer forma, de direitos de propriedade intelectual; (iv) participação em outras sociedades também relacionadas ao futebol; e/ou (v) quaisquer outras atividades conexas ao futebol, como a organização de espetáculos esportivos, sociais ou culturais.
A constituição da SAF pode se dar “do zero”, como ocorre com qualquer companhia, pela transformação do clube ou pela cisão do seu departamento de futebol e consequente transferência de seu patrimônio relacionado à atividade futebolística.
Dentre as previsões que causaram maior interesse no meio estão a possibilidade de parcelamento das dívidas, segregação das dívidas decorrentes de obrigações civis das dívidas trabalhistas e, ainda, a possibilidade de os times pedirem recuperação judicial ou extrajudicial nos termos da Lei 11.101/2005.
Historicamente, as dívidas dos clubes de futebol brasileiro sempre foram bastante altas e apenas vem aumentando ao longo dos anos. O período de pandemia, com esvaziamento de estádios, diminuição de cotas de patrocínio e receitas de um modo geral agravaram sobremaneira essa situação.
De acordo com a consultoria Sports Value, especializada em avaliação de marcas e de propriedades esportivas, a pandemia da Covid-19 aprofundou os números financeiros dos clubes brasileiros de futebol de forma assustadora: os déficits dos 20 maiores times de futebol do Brasil em termos de faturamento (chamados de “Top 20”) somaram o valor histórico de R$ 1 bilhão, alta de 39% em relação a 2019. Estes mesmos times têm dívidas que somam impressionantes R$ 10 bilhões.
Não é à toa que a sanção da Lei 14.193/2021 foi festejada no meio futebolístico, já tendo o Conselho Deliberativo do Cruzeiro, por exemplo, aprovado em assembleia extraordinária a transformação do clube em SAF, adotando o conceito de clube-empresa.
Em informativo preparado pela diretoria do Cruzeiro para convencer seus conselheiros sobre esta transformação, o clube destaca que pretende se tornar empresa porque “as finanças se encontram em estado preocupante.”
Mas, em meio à euforia que esta lei trouxe, há de se lembrar que dispositivos importantes do texto original foram objeto de veto presidencial,[1] como a previsão de criação de um Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF) para os clubes-empresa, instituindo que nos primeiros 5 anos após a constituição da SAF, ela ficaria sujeita ao pagamento mensal e unificado do IRPJ, PIS/PASEP, CSLL, Cofins e contribuições devidas ao INSS à alíquota de 5% sobre as receitas mensais recebidas. E, a partir do 6º ano, a alíquota passaria a ser de 4% da receita mensal recebida.
De acordo com a justificativa do veto, esta medida acarretaria em renúncia de receita sem o respectivo cancelamento de outra despesa obrigatória e sem que estivesse acompanhada de estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro, em violação à Lei de Responsabilidade Fiscal e à Lei de Diretrizes Orçamentárias.
Foi também vetada a previsão do art. 27, que possibilitava à SAF emitir, além de debêntures, qualquer outro título ou valor mobiliário, na forma da lei das S.As. e conforme regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), pois entendeu o governo que esta medida geraria insegurança jurídica na medida em que “nenhuma limitação poderia ser imposta a tais agentes enquanto emissores de valores mobiliários”, ainda que existam outros instrumentos de emissão de títulos disponíveis no mercado de capitais.
Novamente a justificativa do veto não convence, pois a existência de uma nova Lei não impõe automático esvaziamento de outras legislações. Pelo contrário, todo esse arcabouço jurídico há necessariamente que convergir. Ao que parece, após tramitar em ambas as câmaras, Senado e Câmara dos Deputados, o “gol contra” veio aos 48 minutos do segundo tempo.
Com ou sem a derrubada dos vetos presidenciais,[2] pensamos que a introdução do conceito de clube-empresa no sistema brasileiro é, em grande parte, benéfica para o desenvolvimento da atividade no Brasil, onde a grande maioria dos clubes de futebol é gerida por presidentes eleitos por alguns poucos associados e, muitas vezes, suas finanças acabam sendo negligenciadas em detrimento da futura gestão que sucederá a então presidência.
É inegável que as agremiações esportivas que figuram em nosso cenário nacional com destaque hoje representam verdadeira empresas pujantes, capaz de circular vultosas importâncias, gerar emprego, pagamento de tributo e entrega para a sociedade. Além é claro o fato de moverem a paixão de milhares de torcedores em cada canto do nosso país, o “país do futebol”.
Com a entrada em vigora da Lei do Clube-Empresa, em 09/08/2021, o futebol brasileiro se aproximará da imensa maioria dos clubes internacionais que disputam as maiores ligas europeias, buscando uma profissionalização da administração do futebol e regras de gorvernança, vitais para atrair mais investidores, permitindo, inclusive, que as SAFs tenham suas ações negociadas na bolsa de valores, como já ocorre com Juventus, da Itália, e Manchester United, da Inglaterra.
Além disso, ao possibilitar a ampla negociação das dívidas pelos clubes, com a instituição do Regime Centralizado de Execuções, ou que ele peça sua recuperação judicial, a Lei 14.193/2021 incentivará a equalização dos passivos milionários dos times brasileiros, sendo de se esperar que haja um boom nos pedidos de recuperação judicial pelos clubes-empresa nos próximos tempos, especialmente aqueles clubes que verdadeiramente querem uma profissionalização de seu departamento de futebol e encontrar uma forma possível para equalização de suas dívidas.
A previsão de aplicação ao “clube original” das regras definidas pela Lei 11.101/05, permitindo que o clube peça sua recuperação judicial ou extrajudicial, pacifica questão já tormentosa em nosso ordenamento jurídico.
De fato, o artigo 1º da Lei de Falências dispõe que a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência estão disponíveis apenas para empresários e sociedades empresárias, conforme definidas no art. 966 do Código Civil. As associações civis, portanto, estariam impossibilitadas de usar qualquer um desses institutos, devendo recorrer, se necessário, à insolvência civil.[3]
Este foi o entendimento do juízo da Vara Regional de Recuperações Judiciais, Falências e Concordatas de Florianópolis/SC, que negou o pedido de antecipação dos efeitos do stay period feitos pelo Figueirense, por meio de medida cautelar antecedente a um possivel pedido de recuperação judicial. [4]
O clube de Santa Catarina é constituído como associação civil e foi o primeiro a aventar a possibilidade de pedir uma recuperação judicial,[5] no início de 2021, quando ajuizou a referida medida cautelar. O pedido foi negado pelo juiz de primeira instância e a medida cautelar extinta.
A decisão foi posteriormente revertida pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que consignou que “o mundo do futebol não pode ser considerado como mera atividade social ou esportiva, essencialmente por tudo que representa em uma comunidade e toda a riqueza envolvida (passes dos jogadores, patrocínios, direitos de imagem e de transmissão, entretenimento e exploração da marca).”[6]
Este tipo de risco não mais existirá com a sanção da Lei que institui a Sociedade Anônima do Futebol, pois, agora, o clube “poderá efetuar o pagamento das obrigações…por meio de recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005” (art. 13, caput e inciso II da Lei 14.193/21).
Tema que ainda deve “povoar” os tribunais é se o clube já adquiriu o direito de se socorrer dos mecanismos fixados na Lei de Falências para equalização de seu passivo, a partir da vigência da Lei 14.193/21, ou se, ao revés, isso só será possível caso o clube, anteriormente, constitua a Sociedade Anônima do Futebol.
É uma partida decisiva para todos os clubes brasileiros de futebol e, como toda partida importante, parece inegável que haverá prorrogação antes do resultado final.