Internacional
Ex-guarda de 100 anos vai a julgamento por crimes nazistas
Durante seu tempo de serviço no campo de concentração de Sachsenhausen, réu teria contribuído para mais de 3.500 mortes por fuzilamento e nas câmaras de gás. Idade avançada do acusado não impede processo
O tempo está se esgotando: dentro de apenas poucos anos não será mais possível penalizar ninguém por seu papel no regime nazista, já que os réus não vivem mais, ou pelo menos não estão aptos a responder a processo.
No momento, a Justiça alemã se ocupa de 17 suspeitos, nenhum dos quais tem menos de 95 anos de idade. A partir desta quinta-feira (07/10), comparece diante do tribunal estadual de Neuruppin, em Brandemburgo, um centenário que foi guarda do campo de concentração de Sachsenhausen.
O Ministério Público o acusa de ter participado do homicídio de internos entre 1942 e 1945 de modo “cônscio e voluntário” – em termos jurídicos, trata-se de cumplicidade em homicídio em 3.518 casos.
Concretamente, o acusado teria contribuído para o fuzilamento de prisioneiros de guerra soviéticos, além de ter sido cúmplice de assassinatos em câmaras de gás. Outros presos do campo, ainda, teriam perdido a vida “através da criação e manutenção de condições hostis à existência”.
Escondido em arquivos militares em Moscou
Durante a época nazista, o campo de Sachsenhausen, em Oranienburg, ao norte de Berlim, teve um papel especial: desde sua abertura, em 1936, ele servia como modelo para outras instalações do gênero. Mais tarde tornou-se central administrativa de todo o sistema de campos de concentração, além de abrigar o centro de treinamento da organização paramilitar nazista SS (“Schutzstaffel”).
Ao todo, mais de 200 mil indivíduos foram confinados no campo. Dezenas de milhares foram fuzilados, executados com gás, vítimas de terríveis experimentos médicos ou simplesmente das condições desumanas vigentes. Ainda no fim de abril de 1945, quando o Exército Vermelho já estava quase em Oranienburg, a SS obrigou mais de 30 mil internos às “marchas da morte”, a que milhares não sobreviveram.
O procurador-geral Thomas Will explica à DW por que só agora se realiza o processo contra o vigia: “O réu não nos era absolutamente conhecido, até se fazerem pesquisas nos chamados ‘fichários de saque’ do Exército Vermelho, no Arquivo Militar Estatal de Moscou. Depois de ele ser localizado e de investigações preliminares sobre sua trajetória e seu tempo de serviço em Sachsenhausen, entregamos o processo ao Ministério Público.”
Will dirige a Central de Esclarecimento de Crimes Nazistas em Ludwigsburg, no estado de Baden-Württemberg. Desde sua fundação, em 1958, a repartição coleta informações para inquéritos preliminares sobre criminosos nazistas.
Homicídio não prescreve
Tem sentido processar um centenário por atos ocorridos 80 anos atrás, alguém que foi uma peça relativamente pequena nas gigantescas engrenagens da máquina de morte do nazismo? Na opinião de Thomas Will, sim.
“Por um lado, a Conferência dos Secretários de Justiça da Alemanha decidiu em junho de 2015 que a central de Ludwigsburg será mantida em sua forma atual enquanto houver tarefas de persecução penal, ou seja, enquanto se possam encontrar os criminosos”, explica.
“Por outro lado, a lei descarta a prescrição dos atos de homicídio, em especial no contexto dos crimes em massa nazistas”, continua. “Portanto não cabe a pergunta se esses crimes ainda devem ser perseguidos hoje, pois eles precisam ser perseguidos. A meta de um processo penal é sempre estabelecer a culpa individual do ponto de vista penal.”
A noção do que pode constituir essa culpa individual, contudo, mudou na prática judicial desde a sentença contra o ex-guarda John Demjanjuk, em 2011. Até então a prova de uma participação pessoal direta nas mortes era pré-condição para a persecução penal. Ex-vigias de campo de concentração já haviam participado de processos por crimes nazistas, nos anos 60 e 70, mas apenas como testemunhas.
O que mudou cerca de dez anos atrás é que “já o exercício da função em geral, num campo de concentração durante reconhecíveis atos de homicídio sistemático pode justificar uma penalização por cumplicidade com os mesmos, caso as constatações durante o processo principal sustentem essa tese”, diz Will.
Caso Demjanjuk abriu caminho para novas condenações
John Demjanjuk foi condenado aos 91 anos de idade em Munique a uma pena de cinco anos de prisão por cumplicidade em mais de 28 mil casos de homicídio. Do veredito constou que ele fora parte da máquina de extermínio nazista.
Desde então, vários outros homens foram condenados pois, segundo os tribunais, eles assistiram ao cometimento dos crimes através de sua atividade de guardas, e sabiam que assassinatos eram cometidos sistematicamente ou que presos eram subalimentados e maltratados com a intenção provocar sua morte (“de modo cônscio e voluntário”).
A sentença mais recente nesse sentido foi em julho de 2020, quando o Tribunal Estadual de Hamburgo condenou a uma pena juvenil de dois anos em liberdade condicional, por cumplicidade em 5.232 casos de homicídio, um ex-guarda do campo de Stutthof, perto de Gdansk. Naquela altura, ele tinha 93 anos de idade.
Se os poucos inquéritos que ainda restam resultarão em julgamentos ou não, depende da capacidade dos idosos acusados de participar. Segundo médicos, o ex-guarda de 100 anos cujo julgamento começa nesta quinta-feira pode comparecer ao tribunal de duas a duas horas e meia. Estão marcadas audiências até janeiro de 2022. O réu disporá de uma sala de repouso especial.