Internacional
União Europeia faz o suficiente para proteger a imprensa?
Repórter investigativa maltesa Daphne Caruana Galizia foi assassinada em 2017. Quatro anos depois, a UE se compromete a fortalecer a segurança dos jornalistas. Em diversos países, porém não há motivos para otimismo
A morte de Daphne Caruana Galizia num atentado com carro-bomba, em 16 de outubro de 2017, chocou muitos na Europa e por todo o mundo. Contudo, a repórter maltesa, famosa por suas investigações sobre corrupção e lavagem de dinheiro, não foi a única vítima dos inimigos da liberdade de imprensa.
Nos quatro anos desde seu assassinato, foram também mortos colegas seus como Ján Kuciak, da Eslováquia, Giorgos Karaivaz, da Grécia, e Peter R. de Vries da Holanda. Todos na Europa, o continente considerado um porto relativamente seguro para os profissionais do jornalismo.
Julie Majerczak, diretora do escritório da ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF) em Bruxelas, comenta que, embora esse status ainda valha, a situação tem deteriorado constantemente nos últimos anos, “e jornalistas serem assassinados é apenas a ponta do iceberg”.
De acordo com a Comissão Europeia, em 2020 900 profissionais da mídia foram atacados na União Europeia. Algumas agressões foram físicas, mas também ocorreram insultos e assédio, especialmente contra mulheres, tanto na vida real como online.
Efeito paradoxal do assassinato de Caruana Galizia
Tais constatações não são surpresa para o blogueiro investigativo e ativista maltês Manuel Delia, que liderou protestos antigoverno em seguida ao assassinato de Caruana Galizia.
Recentemente, ele decidiu deixar seu país natal, indo com a família para um local não identificado, após receber ameaças dos acusados de cumplicidade no atentado, na forma. Além dos telefonemas anônimos, foram criados websites falsos em seu nome, a fim de lhe arruinar a carreira.
A morte da repórter teve um “efeito paradoxal” sobre o jornalismo em Malta, comenta Delia: o fato de a maioria dos suspeitos ter sido indiciada e seus crimes, expostos, emitiu a mensagem de que quem mata jornalistas pode se dar mal, e “isso nos torna mais seguros”.
Por outro lado, em veículos de imprensa de propriedade do governista Partido Trabalhista (PL), ele e outros colegas foram tachados de traidores e ameaça à democracia nacional. E esse “isolamento” abre o campo par os criminosos aumentarem a pressão sobre os jornalistas através de blogs, e-mails ou websites falsos.
“Os dias atuais são provavelmente a época mais quente dos últimos quatro anos”, avalia Delia. “A coisa vai terminar em violência física? Uma vez já terminou, então não posso fazer promessas.”
Na Polônia do PiS, informação é “privilégio”
O polonês Wojciech Cieśla trabalha com a equipe internacional de pesquisa Investigate Europe, e também registra o aumento de pressão contra os repórteres que noticiam de modo crítico sobre o ultradireitista Liberdade e Justiça (PiS).
Segundo o jornalista investigativo, a situação mudou dramaticamente desde que o partido liderado por Jarosław Kaczyński assumiu o governo, em 2015. “Acho que atualmente a Polônia está seguindo os passos de Viktor Orbán na Hungria, no sentido de limitar a liberdade de imprensa.”
De fato, o primeiro-ministro populista de direita tem procurado sistematicamente tomar controle da mídia nacional, determinando as narrativas políticas e dissolvendo o pluralismo. Todo dia é uma luta para acessar informação, conta Cieśla, com o governo decidindo quem tem o “privilégio” de ser informado.
UE quer se tornar mais ativa
As experiências de jornalistas como Delia e Cieśla não passaram despercebidas em Bruxelas. Recentemente, a Comissão Europeia prometeu se tornar mais ativa no combate ao cerceamento da liberdade de imprensa.
Em 15 de setembro último, a presidente do órgão executivo da UE, Ursula von der Leyen, dedicou ao tema toda uma seção de seu discurso sobre o estado da bloco de 27 nações, afirmando: “Informação é um bem público. Temos que proteger aqueles que criam transparência, os jornalistas.”
No mesmo dia, a comissária para Valores e Transparência Věra Jourová, responsável por manter o Estado de direito na UE, apresentou um pacote de recomendações para auxiliar os países-membros a concretizarem essa meta, enfatizando ser essa a primeira vez que a liberdade e segurança da imprensa figuravam tão alto na agenda do bloco.
Entre as medidas específicas propostas, está a criação de serviços de apoio nacionais independentes, incluindo telefones de emergência, consultoria legal, assistência psicológica e abrigos para profissionais da mídia sujeitos a ameaças.
Palavras severas não bastam contra certos governos
Delia considera positivo as instituições europeias terem “elevado o grau de alarme” e ressaltado a importância do jornalismo para a democracia. Ele deposita esperanças nas propostas legislativas que as autoridades da UE se comprometeram a apresentar em 2022.
Entre elas consta a Lei Europeia de Liberdade de Imprensa, voltada a proteger a independência do setor. Segundo Majerczak, da RSF, entre os tópicos abordados deverá estar o patrocínio oculto às mídias pró-governo, por exemplo através de anúncios.
“Do que precisamos absolutamente são medidas legislativas, resultando em sanções, caso violadas, e não só recomendações”, comentou a ativista à DW. Assim como Delia e Cieśla, ela teme que palavras severas não bastarão para impressionar alguns governos da UE.
“Estou pensando na Polônia, Hungria, Malta, Grécia ou Bulgária, por exemplo.” Destes, acrescenta Majerczak, a Bulgária é “a pior aluna da União Europeia”. No Índice Mundial de Liberdade de Imprensa da RSF para 2021, o país europeu-oriental ocupa o 112º de 180 lugares. Segundo a ONG jornalística, os poucos jornalistas búlgaros mais eloquentes enfrentam não só coerção pelo Estado, mas também intimidação e violência.
Combate aos SLAPPs, litígios abusivos
O maltês Delia também aposta numa outra iniciativa que a Comissão Europeia planeja avançar em 2022, cuja meta é proteger jornalistas e ativistas dos direitos humanos contra litígios abusivos, denominados SLAPP (acrônimo em inglês para “processo estratégico contra a participação pública”).
Quando Daphne Caruana Galizia foi assassinada, em outubro de 2017, havia 47 SLAPPs pendentes contra ela. Essas ações judiciais de intimidação, muito usadas para ameaçar e silenciar profissionais da mídia, constituem um grave problema, sobretudo para quem trabalha de forma independente ou para pequenas entidades de pesquisa.
“A pessoa acusada de matar Daphne queria me processar no Reino Unido por mais de 70 milhões de libras esterlinas [cerca de 82 milhões de euros ou R$ 525 milhões]”, relata Manuel Delia. “Teria sido o meu último dia no jornalismo. Provavelmente, o meu último dia.”
“Tenho poucos motivos para ser otimista”, desabafa o blogueiro. “Meu país está menos democrático do que costumava ser.” Pelo menos, ressalva, as instituições da União Europeia estão indo na direção certa.