Segurança Pública
Estupro virtual: um crime emergindo no âmago da era tecnológica
Principais aspectos relacionados ao crime de estupro, à luz das alterações promovidas pela Lei nº 12.015/2009, e o novo meio existente para sua prática: a internet
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo consiste em realizar uma análise do crime de estupro, à luz das alterações promovidas pela Lei 12.015/2009, em conjunto com o avanço tecnológico. Especificamente, discute-se a possibilidade da prática do crime de estupro de maneira totalmente virtual, sem que haja qualquer tipo de contato físico entre autor e vítima, o que, por ora, denomina-se aqui, estupro virtual.
O estupro é uma prática que permeia os seios da sociedade desde os tempos mais remotos. Não se pode afirmar com precisão quando, de fato, tal prática surgiu, no entanto, há relatos da literatura que retratam atos de estupro desde 509 a.C. Muito embora não houvesse ainda a denominação de tal prática como estupro, a conduta em si de violar a dignidade sexual de outrem mediante violência já existia e é relatada pela literatura. (BEARD, 2017).
Ocorre que o estupro, como qualquer outro crime, acompanha o processo histórico e contemporâneo da sociedade. Sendo assim, é importante que se faça uma contextualização histórica da prática da violação sexual de outrem mediante violência, o que hoje denomina-se estupro, de acordo com a época em que se discute.
É óbvio que as práticas que hoje são consideradas atentatórias à dignidade sexual não eram assim consideradas alguns séculos atrás. Em alguns períodos históricos não eram sequer criminalizadas. E isso faz parte do processo evolutivo do direito, da humanidade e da sociedade em geral.
Nesse aspecto, é importantíssimo nos atentarmos às mudanças históricas e sociais, em geral, que impactam diretamente na prática de crimes, o que fazem com que haja a necessidade de o direito moldar-se ao atual momento histórico. O avanço tecnológico com certeza é um dos maiores fatores atuais que influem na necessidade de evolução do direito para reprimenda de práticas que, anos atrás, nem se cogitava serem possíveis, mas que hoje, são totalmente exequíveis e devem ser criminalizadas.
Sendo assim, o presente artigo tem como objetivo analisar a possibilidade da prática de uma conduta que, anos atrás, era inimaginável, mas que o avanço tecnológico fez tornar-se possível: o estupro virtual. Um dos crimes mais repugnantes da humanidade, que durante toda a história era praticado por intermédio de violência física, mas que agora, com todo o avanço tecnológico, pode ser praticado virtualmente, sem nenhum contato físico entre autor e vítima.
2. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DO CRIME DE ESTUPRO NO BRASIL
Ainda no período colonial, tivemos a primeira legislação criminal aplicada no Brasil, que foram as Ordenações Filipinas. Eram Ordenações editadas pelo Reino da Espanha e de Portugal durante a época da União Ibérica. O livro V dessas ordenações tinha 143 títulos que tratava sobre crimes, era também conhecido como Código Filipino. (MARTINS, 2015).
O Código Filipino tipificava como crime a conduta de violação sexual de outrem mediante violência, entretanto, à época ainda não existia a denominação de estupro, mas a prática de conjunção carnal forçosa com mulher já era crime previsto no Livro V, Título XVIII e implicava em pena de morte para o estuprador, ainda que este viesse a se casar com a mulher estuprada (ALMEIDA; BRASIL; PORTUGAL, 1870).
O Código Filipino vigorou mesmo após a independência do Brasil, em 1822, isso porque o artigo 179, XVIII da Constituição de 1824 estabelecia que deveria ser criado um Código Criminal e um Código Civil, mas o Brasil não editou estes códigos até 1823, o que fez com que Don Pedro I editasse a Lei de 20.10.1823, estendendo ao Brasil as Ordenações de Portugal enquanto não fossem editados os códigos brasileiros. (VIEIRA, 2015).
Em 1830, temos a criação do Código Criminal do Império do Brasil, e, com ele, surge também a denominação estupro, que compreendia não só a prática da conjunção carnal, mas diversos outros atos de conotação sexual previstos do artigo 219 ao 224 do referido diploma legal. O estupro através da conjunção carnal era disposto no art. 222 sob a seguinte redação:
Art. 222. Ter copula carnal por meio de violencia, ou ameaças, com qualquer mulher honesta.
Penas – de prisão por tres a doze annos, e de dotar a offendida.
Se a violentada fôr prostituta.
Penas – de prisão por um mez a dous annos (BRASIL, 1830).
Além de inovar na denominação do crime de estupro no ordenamento jurídico brasileiro, o Código Criminal de 1830 rompeu também com outras nuances do crime que existiam no Código Filipino, inclusive, abrandando a pena, que passou de morte para prisão cumulada com dote, prevendo também a possibilidade de extinção da pena pelo casamento, fato que era expressamente vedado pelo Código Filipino.
Posteriormente, após a derrubada da Monarquia Brasileira, com o nascimento da república, durante o governo provisório de Marechal Deodoro da Fonseca, há a promulgação do Código Penal de 1890, tido como um grande marco para o direito penal brasileiro. A partir deste, a denominação estupro passou a ser exclusiva do ato de constranger mulher à prática de conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça. Inclusive, havia no bojo do Código Penal de 1890, tipo legal explicativo, in verbis:
Art. 269. Chama-se estupro o acto pelo qual o homem abusa com violencia de uma mulher, seja virgem ou não.
Por violencia entende-se não só o emprego da força physica, como o de meios que privarem a mulher de suas faculdades psychicas, e assim da possibilidade de resistir e defender-se, como sejam o hypnotismo, o chloroformio, o ether, e em geral os anesthesicos e narcoticos. (BRASIL, 1890).
Após o Código Penal de 1890, seguindo a ordem cronológica das legislações penais brasileiras (que entraram em vigor), veio o Código Penal de 1940, vigente até os dias atuais, obviamente com suas necessárias alterações que foram sendo realizadas no decorrer do tempo para adequação do direito à realidade histórica e social.
A redação original do Código Penal de 1940 tipificava o estupro como sendo: Art. 213 – Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena – reclusão, de três a oito anos (BRASIL, 1940). A primeira alteração desta tipificação ocorreu em 13 de julho de 1990, foi promovida pela Lei Federal nº 8.069, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente, que inseriu um parágrafo único no art. 213, com a seguinte redação: Se a ofendida é menor de catorze anos: Pena reclusão, de quatro a dez anos (BRASIL, 1940).
Posteriormente, em 1990, a Lei nº 8.072, conhecida como Lei dos Crimes Hediondos, alterou a pena do caput do art. 213, passando de reclusão de três a oito anos para reclusão de seis a dez anos. Em seguida, temos, em 2009, as alterações mais importantes no Código Penal no tocante aos crimes sexuais, tendo sido realizada pela Lei nº 12.015/2009.
As alterações promovidas pela Lei 12.015/2009 começaram pelo nome do título, que tratava do crime de estupro, que passou de: Crimes contra o costume para Crimes contra a dignidade sexual. Mas a alteração mais substancial e importante foi a tipificação do crime de estupro, que passou a ter a seguinte redação: Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso (BRASIL, 1940).
Com a alteração promovida pela Lei 12.015/2009 na tipificação do crime de estupro, o crime passou a ser crime comum, o sujeito passivo foi estendido, passando de mulher para alguém, podendo ser qualquer pessoa o agente ativo e passivo. Foi ampliada também a conduta delitiva que, além da conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça, passou a se dar mediante qualquer outro ato libidinoso.
Com a nova epígrafe do delito em estudo, passou-se a tipificar a ação de constranger qualquer pessoa (homem ou mulher), a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Deste modo, ações que antes configuravam crime de atentado violento ao pudor (CP, art. 214), atualmente revogado pela Lei n. 12.015/2009, passaram a integrar o delito de estupro, sem importar em abolitio criminis. […]. Conclui-se, portanto, que o estupro abrange, a partir de agora, a prática de qualquer ato libidinoso, conjunção carnal ou não, ampliando a sua tutela legal, para abarcar não só a liberdade sexual da mulher, mas também a do homem (CAPEZ, 2012, p. 235).
Tal alteração, à época, levantou discussão sobre a configuração de abolitio criminis do delito de atentado violento ao pudor, que era previsto no art. 214 do Código Penal, revogado pela Lei 12.015/2009. A abolitio criminis ocorre quando há a supressão de uma determinada conduta típica do ordenamento jurídico, ou seja, quando esta conduta deixa de ser crime. O que não ocorreu com o delito de atentado violento ao pudor, já que seus elementos migraram do art. 214 para o 213 do Código Penal, fato que configura o fenômeno denominado pela doutrina de continuidade normativo-típica.
Assim, não houve descriminalização do comportamento até então tipificado especificamente como atentado violento ao pudor. Na verdade, somente houve modificação do nomen juris da aludida infração penal, passando, como dissemos, a chamar-se estupro o constrangimento levado a efeito pelo agente a fim de ter conjunção carnal, ou, também, a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Aplica-se, na hipótese, o chamado princípio da continuidade normativo-típica, havendo, tão somente, a migração dos elementos anteriormente constantes da revogada figura prevista no art. 214 do Código Penal para o art. 213 do mesmo diploma repressivo (GRECO, 2017, p. 111).
Por fim, superada a contextualização histórica do crime de estupro no Brasil, cabe fazer menção à Lei 13.718/2018, que, embora não tenha realizado alteração direta no crime de estupro, representou um avanço jurídico no que diz respeitos aos crimes sexuais cometidos virtualmente, com a inclusão de tipos coibidores de práticas atentatórias à dignidade sexual que, normalmente, são praticadas em ambientes virtuais, como é o caso do art. 218-C.
3. O AVANÇO TECNOLÓGICO E OS CRIMES INFORMÁTICOS
Os primeiros computadores nos moldes atuais surgiram com a II Guerra Mundial e tinham o intuito de aumentar e melhorar a possibilidade de armazenamento de dados e informações. Na sequência, temos o que podemos assentar como grande marco da evolução tecnológica, o surgimento da internet, que, assim como os computadores, também nasceu com fins militares, no ventre da Guerra Fria.
Desenvolvida pelo Departamento de Defesa do governo norte americano, a internet tinha como objetivo inicial conectar os departamentos de pesquisa e suas bases militares, permitindo a troca de informações entre si e evitando que dados e informações fossem perdidos em caso de eventuais ataques.
Os computadores e a internet foram evoluindo ao longo do tempo, a tecnologia como um todo sofreu um processo evolutivo gigantesco. Atualmente, temos o que podemos chamar de era tecnológica. O acesso aos recursos tecnológicos e a utilização destes no cotidiano tornaram-se quase que indispensáveis para viver e conviver em sociedade.
Ocorre que, com a evolução tecnológica, não vieram só benefícios para a sociedade: com ela nasceram também novos tipos de crimes e novos criminosos, além de crimes praticados através dos mais variados recursos tecnológicos, tais como celulares, computadores, tablets, e uma infinidade de outros equipamentos. Mas, na grande maioria das vezes, a internet é o meio criminoso mais utilizado.
É importante ressaltar que não há um consenso na doutrina quanto à denominação dos crimes cometidos através da internet, computadores ou qualquer outro meio tecnológico. Assim, neste artigo será adotada a denominação de crimes informáticos, tendo por base os ensinamentos do ilustre jurista Damásio de Jesus. Para tanto, vejamos o conceito adotado pelo citado doutrinador:
Conceituamos crime informático como o fato típico e antijurídico cometido por meio da ou contra a tecnologia da informação. Decorre, pois, do Direito Informático, que é o conjunto de princípios, normas e entendimentos jurídicos oriundos da atividade informática. Assim, é um ato típico e antijurídico, cometido através da informática em geral, ou contra um sistema, dispositivo informático ou rede de computadores. Em verdade, pode-se afirmar que, no crime informático, a informática ou é o bem ofendido ou o meio para a ofensa a bens já protegidos pelo Direito Penal (JESUS, 2012, p. 49).
Neste contexto, a literatura internacional indica que os crimes informáticos tiveram seu início na década de 1960, sendo, em sua maioria, delitos de alteração, cópia e sabotagem de sistemas computacionais.
A doutrina diverge acerca do primeiro delito informático cometido. Para alguns, o primeiro delito informático teria ocorrido no âmbito do MIT (Massachusetts Institute of Technology), no ano de 1964, onde um aluno de 18 anos teria cometido um ato classificado com cibercrime, tendo sido advertido pelos superiores. Outros ainda referenciam o primeiro caso de que se tem notícia sobre hacking no ano de 1978, na Universidade de Oxford, onde um estudante copiou de uma rede de computadores uma prova. Uma invasão seguida de uma cópia. Até essa data não existia lei sobre crimes informáticos nos Estados Unidos. A Flórida, no mesmo ano, foi o primeiro Estado americano a formular leis sobre informática (JESUS, 2012, p. 20).
No Brasil, notícias remontam que os primeiros crimes informáticos teriam ocorrido em 1999, exemplo emblemático foi protagonizado por um empresário e ex-controlador de uma rede de varejo, que foi acusado de enviar e-mails com informações falsas sobre o possível risco de falência de um banco para o mercado financeiro, tendo enviado estes e-mails de Londres. O que abriu o debate sobre a possibilidade de os crimes informáticos serem praticados em qualquer localidade do mundo (JESUS, 2012).
A partir de então, iniciou-se um debate quanto à necessidade de leis que tratassem dos crimes informáticos. Em 1998, o então Ministro do STF, Sepúlveda Pertence, em um julgado histórico, enfrentou tal temática. No bojo do HC 76.689/PB, que tratava de um caso envolvendo pornografia infantil na internet, o Ministro explicou que nem todos os crimes informáticos demandariam uma nova tipificação, pois, na verdade, a tecnologia era apenas o meio empregado para a efetivação de figuras penais já existentes (JESUS, 2012).
4. POSSIBILIDADE DA PRÁTICA DO CRIME DE ESTUPRO VIRTUAL
Como visto anteriormente, com a entrada em vigor da Lei 12.015/2009 e a consequente alteração na tipificação legal do crime de estupro, tornou-se possível sua configuração não só pela conjunção carnal, mas também por meio de qualquer outro ato libidinoso que seja intentado mediante violência ou grave ameaça.
Vejamos a definição legal do crime de estupro para melhor compreensão: Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso (BRASIL, 1940). O ponto crucial para o objeto de análise deste artigo reside nas condutas constantes na parte final da definição legal do crime.
Nessas duas últimas condutas praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso , é dispensável o contato físico de natureza erótica entre o estuprador e a vítima. […] Abre-se espaço, dessa forma, ao estupro virtual, praticado à distância, mediante a utilização de algum meio eletrônico de comunicação (Skype, Whatsapp, Facetime etc.). Pensemos na situação em que o sujeito, apontando uma arma de fogo para a cabeça do filho de uma mulher, exige que esta, em outra cidade, se automasturbe à frente da câmera do celular. Estão presentes as elementares típicas do art. 213, caput, do Código Penal: houve constrangimento da mulher, mediante grave ameaça, a praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal, razão pela qual ao agente deverá ser imputado o crime de estupro. (MASSON, 2018, p. 92)
O exemplo apontado por Cleber Masson não deixa dúvidas quanto à possibilidade da configuração do estupro virtual. Ademais, é importante percebermos que tal situação não está limitada apenas ao campo teórico, muito pelo contrário: tal situação já vem acontecendo na prática, inclusive, em 2017, tivemos no Brasil a primeira sentença condenatória por estupro virtual.
A sentença inédita e paradigmática foi proferida pelo juiz do TJPI, Luiz de Moura Correia, que decretou a prisão de um técnico de informática que, através de um perfil fake no Facebook, infligia graves ameaças a sua ex-namorada, exigindo desta o envio de fotografias e vídeos realizando atos libidinosos, a exemplo, introduzindo objetos em sua vagina e/ou se masturbando.
No caso supracitado, como podemos perceber, embora não tenha corrido contato físico entre autor e vítima, estão presentes todas as elementares do crime de estupro. A vítima foi forçada a realizar atos libidinosos diversos da conjunção carnal em si mesma, mediante grave ameaça, para satisfazer a libido do agente criminoso, que, para tanto, se valeu do ambiente virtual, ou seja, ocorreu o denominando estupro virtual. Fato que torna evidente a possibilidade real de configuração do crime de estupro virtual.
5. CONCLUSÃO
Diante de todas as informações expostas neste artigo, ficou evidente que um dos crimes mais repulsivos e antigos da sociedade, o estupro, também foi se moldando ao avanço tecnológico e encontrando novas formas de ser praticado. Essas formas, décadas atrás, eram inimagináveis, o que culminou no surgimento do que vem sendo denominado atualmente de estupro virtual.
A prática dessa conduta só foi possível após a alteração da tipificação legal do crime de estupro pela Lei 12.015/2009, que ampliou a conduta delitiva do crime de estupro, como visto em tópicos anteriores deste artigo, o que tornou possível que o crime ocorra sem contato físico entre autor e vítima, dando espaço à possibilidade de o agente criminoso praticar a conduta do estupro por intermédio dos ambientes virtuais, como foi o caso julgado em 2017 pelo TJPI.
Assim, é nítido que o estupro virtual é de fato um crime real que vem ganhando forma na era tecnológica, sendo que tal fato não demanda uma nova tipificação legal, mas apenas uma atenção especial por parte dos operadores do direito, pois, na verdade, o estupro virtual nada mais é do que o estupro como previsto no art. 213 do Código Penal, que tem como meio de execução recursos tecnológicos que permitem que a conduta típica se desenvolva de maneira totalmente virtual, sem necessidade de contato físico entre autor e vítima.
6. REFERÊNCIAS
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