AGRICULTURA & PECUÁRIA
A previdência rural e as regras de acesso
O processo de enquadramento do trabalhador na atividade rural para acesso a aposentadoria é carregado de subjetividade, gerando numerosos indeferimentos por via administrativa
Resumo: O artigo tem por objetivo analisar alguns números da previdência social rural e observar as novas regras de acesso ao benefício com olhar mais atento às necessidades do trabalhador rural. Como metodologia, utilizou-se a pesquisa bibliográfica e análises quantitativa e qualitativa acerca do tema. O processo de enquadramento do trabalhador na atividade rural para acesso a aposentadoria é carregado de subjetividade, gerando numerosos indeferimentos por via administrativa. A conseqüência: enorme judicialização nos processos da previdência social rural. Este trabalho se justifica na necessária discussão sobre o assunto e na possível solução pela via extrajudicial, sem, contudo, pretender esgotar o tema.
Palavras-chave: Previdência Rural; Judicialização; Regras de Acesso; Indeferimentos; Benefícios.
1 INTRODUÇÃO
Os dados do último censo agropecuário estima que existem mais de 15 milhões de trabalhadores rurais no Brasil, os quais estão expostos a condições climáticas extremas de frio ou calor, têm contato direto com agrotóxicos e enfrentam um alto risco de acidentes do trabalho. Para tanto, este grupo possui regras específicas para o benefício da aposentadoria.
A aposentadoria rural é o benefício previdenciário destinado aos trabalhadores rurais que alcançaram determinada idade e que tenham atingido um tempo mínimo de contribuição ou atividade rural, de acordo com a legislação. A lei que regula os trabalhadores rurais os dividem em 4 categorias de segurados, levando em conta as circunstâncias da profissão e/ou condição pessoal dos profissionais. São eles: segurado empregado, segurado contribuinte individual, segurado trabalhador avulso e segurado especial. São possíveis duas espécies de aposentadoria: Aposentadoria por Idade e a Aposentadoria por Tempo de Contribuição.
Os benefícios previdenciários rurais têm impacto significativo no orçamento familiar e na dinâmica das unidades produtivas familiares, sendo de fundamental importância para essa camada social que muitas vezes fica a margem da sociedade em termos de acesso a direitos.
O governo enviou ao Congresso Nacional uma proposta de Reforma da Previdência, a qual entrou em vigor por meio da Emenda Constitucional 103 em novembro de 2019, trazendo uma série de mudanças anuais nas regras de acesso a esse benefício, que serão tratadas neste artigo em determinado capítulo.
O processo de reconhecimento do direito do trabalhador rural concernente à aposentadoria é carregado de subjetividade o que traz conseqüências perigosas para a sociedade. O número de aposentadorias indeferidas administrativamente é enorme e acarreta uma judicialização deste benefício prejudicando o requerente.
A partir desta breve síntese desse tema tão atual, o presente artigo objetiva analisar os números da previdência social rural a partir de um viés assistencialista e um olhar mais atento às necessidades do trabalhador rural deixado de lado, além de observar as novas regras de acesso e suas conseqüências.
2 PREVIDÊNCIA RURAL
A previdência social se trata de uma política pública que integra as ações de seguridade social promovidas pelo Estado. O trabalhador em idade ativa realiza contribuições financeiras com o propósito de garantir a sua sobrevivência econômica no futuro, seja para aposentadoria, seja para benefícios temporários (doenças, acidentes, licença maternidade), bem como pensões para cônjuges em caso de falecimento dos chefes de família.
As políticas do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) são feitas pela Secretaria da Previdência Social e executadas pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). São contribuintes: empregadores, empregados assalariados, domésticos, autônomos, contribuintes individuais, trabalhadores rurais, servidores públicos titulares de cargos efetivos da União, dos estados, do Distrito Federal e municípios.
No caso dos trabalhadores rurais, a participação na previdência social se dá através da contribuição regular ao INSS ou por meio da seguridade especial, que desvincula a aposentadoria da contribuição compulsória (MARANHÃO; VIEIRA FILHO, 2018).
A Aposentadoria Rural é destinada aos trabalhadores que trabalham na zona rural das cidades. Devido a essa condição, estes possuem requisitos diferentes dos trabalhadores da zona urbana, vez que na maioria das vezes convivem com situações mais difíceis no dia a dia. A lei que regula os trabalhadores rurais os dividem em 4 categorias de segurados, levando em conta as circunstâncias da profissão e/ou condição pessoal dos profissionais.
As categorias são: Segurado empregado – o trabalhador presta serviço, de forma habitual, subordinado a um empregador, em um prédio rústico ou em uma propriedade rural; Segurado contribuinte individual estes trabalhadores prestam serviços de forma habitual e sem vínculo de emprego a uma ou mais empresas; Segurado trabalhador avulso – os segurados trabalhadores avulsos são vinculados a uma cooperativa ou a um sindicato que administra os ganhos e eles mesmos fazem a contribuição previdenciária correspondente; Segurado especial – são aqueles que exercem algumas atividades rurais de maneira individual ou em regime de economia familiar sem vínculo de emprego.
Assim como as aposentadorias urbanas, a aposentadoria rural possui duas espécies: a Aposentadoria por Idade e a Aposentadoria por Tempo de Contribuição. As duas têm diferentes requisitos e características, principalmente quando tratamos do segurado especial e serão tratadas mais aprofundadamente no próximo capítulo.
Desde a Constituição de 1934 tem-se reconhecido que todo trabalhador brasileiro possui direito à previdência, porém somente com a instituição do Estatuto do Trabalhador Rural pela Lei n. 4214, de 1963, passou-se a considerar a inclusão dos trabalhadores rurais no sistema previdenciário. Posteriormente, o Decreto-Lei n. 276, de 1967 deu forma ao Fundo de Assistência do Trabalhador Rural (Funrural) previsto, como fundo também previdenciário.
Já em 1971, a Lei Complementar (LC) n. 11, de 1971, estendeu a previdência social a todos os trabalhadores rurais através do Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (Prorural). Esse programa incluía, entre seus benefícios, aposentadorias por velhice e por invalidez, pensão por morte e serviços de saúde, e considerava, sob sua proteção, tanto os trabalhadores e empregados rurais remunerados quanto o produtor rural que trabalhasse em regime de economia familiar.
Através da Constituição Federal de 1988 as relações de trabalho passaram a estar protegidas pelo direito previdenciário trazendo aos trabalhadores do campo uma nova perspectiva, qual seja: aos 60 e 55 anos respectivamente, homens e mulheres do campo, cônjuges ou não, trabalhando como empregados ou em regime de economia familiar, passaram a ter direito a uma aposentadoria cujo benefício não pode ser inferior ao valor de um salário mínimo.
Portanto, a previdência rural inaugurada com a Constituição de 1988 traz, além de uma política de prestação de benefícios mais equitativos e abrangentes, uma integração ao sistema de seguridade social conforme os princípios que o art 194 atribui a este último: universalidade da cobertura e do atendimento, uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais, seletividade e distributividade na prestação, irredutibilidade do valor dos benefícios, equidade na forma de participação no custeio e diversidade da base de financiamento, com administração democrática e descentralizada da política (VALADARES; GALIZA, 2016).
Em dezembro de 2019, foram concedidas 67.781 aposentadorias por idade em todo o Brasil, sendo 44.885 destinadas à clientela urbana (42.052 deferidas administrativamente, 1.455 judicialmente e 1.378 de outras formas) e 22.896 à rural (17.310 deferidas administrativamente, 5.209 judicialmente e 377 de outras formas) (SANTANA FILHO; BORSIO; GUEDES, 2020).
Em valores reais, em dezembro de 2019 foram concedidos R$57.729,00 para o público rural, enquanto que para o público urbano foram concedidos R$474.190,00 de acordo com a Figura 1 abaixo.
Figura 1
Valor de benefícios concedidos 2018/2019 (em R$ MIL) (Brasil: 2019)
Fonte: Boletim Estatístico da Previdência Social – Vol. 24 Nº 12
Atualmente, cerca de 9 milhões de famílias são beneficiárias do sistema previdenciário rural, e segundo dados do último censo agropecuário, o Brasil tem mais de 15 milhões de trabalhadores rurais (GLOBO, 2020). Os recursos distribuídos exercem um papel importante quanto à garantia de direitos para suprir as necessidades vitais básicas e também produzem impactos sociais e econômicos. Produtores rurais movimentam um dos setores mais dinâmicos da economia brasileira, sejam no cuidado com as plantas, com os animais ou nos escritórios, fábricas e laboratórios.
Os benefícios previdenciários rurais têm impacto significativo no orçamento familiar e na dinâmica das unidades produtivas familiares trazendo importantes mudanças na lógica econômica das famílias, do ponto de vista do trabalho e do consumo; e fortalecem o processo de reprodução social das famílias rurais, pois funcionam como importante facilitador da permanência das famílias no campo, reduzindo as migrações para a cidade e permitindo que os jovens, mais escolarizados e com maior acesso à informação, possam se desenvolver na área rural.
3 REGRAS DE ACESSO
A Reforma da Previdência entrou em vigor por meio da Emenda Constitucional 103 em novembro de 2019, trazendo uma série de mudanças anuais para que os trabalhadores consigam a aposentadoria. De acordo com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), em setembro de 2019 foram concedidas 152 mil aposentadorias, já em 2020 apenas 95 mil, em grande maioria para mulheres.
A aposentadoria rural é o benefício previdenciário destinado aos trabalhadores rurais que alcançaram uma certa idade e um tempo mínimo de contribuição ou atividade rural. O critério determinante é a atividade desenvolvida pelo trabalhador, se esta atividade é rural, a sua aposentadoria deve ser rural.
De acordo com a Lei Nº 8.023, de 12 de abril de 1990, em seu art. 2º:
Considera-se atividade rural:
I – a agricultura;
II – a pecuária;
III – a extração e a exploração vegetal e animal;
IV – a exploração da apicultura, avicultura, cunicultura, suinocultura, sericicultura, piscicultura e outras culturas animais;
V – a transformação de produtos decorrentes da atividade rural, sem que sejam alteradas a composição e as características do produto in natura, feita pelo próprio agricultor ou criador, com equipamentos e utensílios usualmente empregados nas atividades rurais, utilizando exclusivamente matéria-prima produzida na área rural explorada, tais como a pasteurização e o acondicionamento do leite, assim como o mel e o suco de laranja, acondicionados em embalagem de apresentação. (BRASIL, 1990).
A legislação previdenciária divide estes trabalhadores em 4 categorias, anteriormente citadas.
O segurado empregado rural é aquele que exerce atividade rural com vínculo de emprego com uma pessoa física ou jurídica. Ou seja, são os trabalhadores rurais com carteira assinada e as suas contribuições previdenciárias são recolhidas pelo empregador.
O trabalhador rural avulso é aquele presta serviço a diversos produtores rurais, sem vínculo de emprego. Porém, há uma intermediação obrigatória de um órgão gestor de mão de obra ou sindicato, sendo um trabalho eventual, apenas quando há uma necessidade do produtor rural em contratá-lo para uma determinada atividade.
Embora não sejam empregados, os trabalhadores avulsos têm direitos trabalhistas (férias, 13º, FGTS etc.). Cabendo à empresa tomadora do serviço fazer o recolhimento das contribuições, descontando-as de suas respectivas remunerações.
O contribuinte individual rural exerce a sua atividade rural por conta própria, são os autônomos sem vínculo de emprego com nenhuma pessoa física ou jurídica. Podendo inclusive prestar serviços para outros produtores rurais sem vínculo de emprego como, por exemplo, os diaristas rurais. O trabalhador autônomo deve pagar suas contribuições por conta própria através da emissão da Guia da Previdência Social (GPS) no INSS.
E por fim, o segurado especial rural, pessoa física residente em imóvel rural ou em aglomerado próximo ao imóvel que exerce alguma das seguintes atividades: exploração agropecuária em área de até 4 módulos fiscais; seringa ou extrativismo vegetal; pesca artesanal ou assemelhada.
Esta atividade deve ser a profissão habitual ou o principal meio de vida do trabalhador rural para que ele seja segurado especial e a atividade rural deve ser exercida de forma individual ou em regime de economia familiar. E o cônjuge, companheiro (a) ou filhos com mais de 16 anos do produtor rural também são segurados especiais, desde que tenham participação ativa nas atividades rurais da família.
De acordo com a Constituição Federal de 1988, na Seção III Da Previdência Social, em seu art. 202:
É assegurada aposentadoria, nos termos da lei, calculando-se o benefício sobre a média dos trinta e seis últimos salários de contribuição, corrigidos monetariamente mês a mês, e comprovada a regularidade dos reajustes dos salários de contribuição de modo a preservar seus valores reais e obedecidas as seguintes condições:
I – aos sessenta e cinco anos de idade, para o homem, e aos sessenta, para a mulher, reduzido em cinco anos o limite de idade para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, neste incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal;
II – após trinta e cinco anos de trabalho, ao homem, e, após trinta, à mulher, ou em tempo inferior, se sujeitos a trabalho sob condições especiais, que prejudiquem a saúde ou a integridade física, definidas em lei;
III – após trinta anos, ao professor, e após vinte e cinco, à professora, por efetivo exercício de função de magistério.
§ 1º É facultada aposentadoria proporcional, após trinta anos de trabalho, ao homem, e após vinte e cinco, à mulher.
§ 2º Para efeito de aposentadoria, é assegurada a contagem recíproca do tempo de contribuição na administração pública e na atividade privada, rural e urbana, hipótese em que os diversos sistemas de previdência social se compensarão financeiramente, segundo critérios estabelecidos em lei. (BRASIL, 1988).
Sobre os requisitos da aposentadoria rural, observa-se 3 espécies: Aposentadoria rural por idade; Aposentadoria híbrida; e Aposentadoria por tempo de contribuição.
A aposentadoria rural por idade, conforme citado acima pela CF/88 em seu artigo 202, precisam cumprir os seguintes requisitos:
- 60 anos de idade, se homem;
- 55 anos de idade, se mulher; e
- 180 meses de carência (15 anos de contribuição para o INSS).
Portanto, os trabalhadores rurais podem se aposentar até 5 anos mais cedo que os trabalhadores urbanos, afinal estão expostos a condições de trabalho muito mais difíceis, sendo justo que se aposentem um pouco mais cedo, de acordo com Danilo Lemos (2021).
Para os segurados empregados ou trabalhadores avulsos, basta comprovar o exercício da atividade rural nesta qualidade, uma vez que é a contratante quem recolhe as contribuições. Os segurados especiais também devem comprovar os 15 anos de atividade rural.
A aposentadoria híbrida é a junção da aposentadoria por idade urbana com a aposentadoria por idade rural, portanto voltado para aqueles que trabalharam no campo e na cidade em momentos diferentes.
As regras da aposentadoria híbrida são diferentes para aqueles que cumpriram os seus requisitos antes ou depois da reforma da previdência (13/11/2019). Para os que cumpriram os requisitos antes da reforma não é necessário se preocupar com as novas regras. Estes trabalhadores podiam somar o período rural com o período urbano e dar entrada em suas aposentadorias.
A partir de agora, o trabalhador precisa cumprir: 65 anos de idade e 20 anos de contribuição, se homem; e 62 anos de idade e 15 anos de contribuição, se mulher. Ou seja, a reforma da previdência aumentou a idade mínima para as mulheres e o tempo de contribuição para os homens.
Já sobre a aposentadoria rural por tempo de contribuição, se este período de atividade rural for anterior a 31/10/1991, não é necessária a comprovação do pagamento das contribuições, somente a demonstração do exercício da atividade rural. Antes da reforma da previdência, o homem precisava de 35 anos de contribuição e a mulher de 30 anos de contribuição para ter direito a este benefício.
Com a reforma da previdência, praticamente não se tem mais esta aposentadoria, e assim para os trabalhadores que não cumpriram todos os seus requisitos antes da reforma, só resta usar alguma das regras de transição, quais sejam: idade mínima progressiva; pedágio de 50%; pedágio de 100%; aposentadoria por pontos.
Por fim, o valor da aposentadoria rural vai depender de pelo menos 4 fatores: Espécie e aposentadoria rural; Categoria do trabalhador rural; Média salarial; e Tempo de contribuição.
Antes da reforma, era considerada a média dos 80% maiores salários desde julho de 1994 para então aplicar o redutor na Aposentadoria Rural por Idade e na Aposentadoria Rural por Tempo de Contribuição. A partir da Reforma da Previdência é considerada a média dos 100% salários desde 07/1994. Ou seja, será feito a média de todos os salários para depois ser aplicado o redutor.
Para Aparecida Ingrácio (2020), essa nova forma de cálculo pode causar um verdadeiro rombo na aposentadoria e os únicos não afetados com o novo cálculo são os segurados especiais que recebem um salário-mínimo, porque não é feito nenhuma média dos salários de contribuição.
4 NÚMEROS DA PREVIDÊNCIA RURAL E SUA JUDICIALIZAÇÃO
As regras de acesso e a própria letra da Lei que versam sobre a Previdência Rural relacionam uma série de documentos para comprovação da atividade rural, tais como a apresentação de documentos feita pelo demandante, considerada pelo INSS como indícios de prova, além da entrevista do potencial segurado e oitiva de testemunhas. Porém ainda existem lacunas nestes mecanismos de identificação da atividade como rural o que prejudica o solicitante quando do momento da confirmação de que tenha, de fato, trabalhado na condição de segurado especial.
Essa subjetividade no processo de reconhecimento do direito gera insegurança na concessão do benefício previdenciário ao segurado especial, tendo como conseqüência o elevado número de aposentadorias concedidas via judicial. De 2011 a 2015, conforme se observa na figura 2, cerca de 30% das aposentadorias rurais concedidas foram indeferidas na via administrativa, mas asseguradas pela Justiça.
Figura 2
Total de aposentadorias rurais no Brasil por idade: concedidas, concedidas via ação judicial e indeferidas no período de 2010-2015
Fonte: SUIBE/INSS
Sobre a maneira como é feita a comprovação do exercício da atividade rural, a Lei 8.861/1994 estabelecia a instituição da Carteira de Identificação e Contribuição, obrigatória para o segurado especial e sujeita a renovação anual, utilizada para comprovação do exercício da atividade rural em regime de economia familiar. Contudo, nunca foi efetivamente instituída e disponibilizada aos segurados, e então excluída pela Lei 11.718/08, que trouxe novo dispositivo para inscrever os segurados especiais, desta vez por meio de um programa de cadastramento desenvolvido pela Dataprev (CNIS-Rural) via convênios com órgãos públicos e entidades de classe, que de acordo com Valadares e Galiza (2016), ainda tem sua abrangência pequena.
Em dezembro de 2019, o grau de judicialização da aposentadoria por idade rural, correspondeu a 22,8% do total, em comparação à judicialização desse benefício por requerimento urbano com apenas 3,2% do total, ou seja, observa-se que os benefícios rurais são sete vezes mais judicializados do que os urbanos (SANTANA FILHO; BORSIO; GUEDES, 2020). Portanto, é clara a enorme diferença da judicialização entre benefícios rurais e urbanos, com mais de 700% de judicialização da aposentadoria por idade rural em relação à urbana.
Os números possibilitam uma reflexão maior a respeito do que vem acontecendo na previdência social rural, sobretudo nos altos índices de judicialização, e o questionamento sobre quais meios devem ser utilizados para sua comprovação.
Para tanto, em agosto de 2019, foi lançada a Estratégia Nacional Integrada para Desjudicialização da Previdência Social, com intuito de atribuir um tratamento adequado às ações judiciais que tratem de concessão ou revisão de benefícios previdenciários e assistenciais, as quais representam 48% das novas demandas submetidas à Justiça Federal, além de compor parcela importante do acervo processual já existente na Justiça Federal (CNJ, 2019). O programa veio para provocar a colaboração, articulação e sistematização de soluções conjuntas para se enfrentar a enorme litigiosidade que envolve os assuntos previdenciários e parte de uma importante premissa: a desjudicialização da matéria previdenciária impõe ações coordenadas entre todos os envolvidos com a gestão e jurisdição acerca da matéria e, reuniu diversos órgãos como o Conselho Nacional de Justiça, o INSS, o Ministério da Economia, o Conselho da Justiça Federal, a Defensoria Pública da União e a Advocacia-Geral da União.
De acordo com Jane Berwanger (2013) para a comprovação da atividade rural deve-se levar em conta a informalidade que prevalece no trabalho rural, sob a pena de inviabilizar-se o direito material. Em outras palavras, observar caso a caso, se houve a atividade rural no período de carência sem se limitar a prova documental em prejuízo da prova testemunhal. Essa interpretação deve ser feita já no âmbito administrativo, no INSS, não sendo necessário apelar ao Poder Judiciário para se enquadrar o trabalhador rural como segurado especial.
Recorrer às vias extrajudiciais para resolução das controvérsias previdenciárias de acordo com o que prevê o CPC/2015, ou seja, sem a necessidade de judicalização, é uma opção, senão a melhor ante os seguintes aspectos:
i) o direito fundamental previdenciário será entregue de forma mais célere a quem o possui; ii) os custos serão reduzidos, podendo-se adotar o trabalho voluntário, com a participação dos núcleos de prática jurídica das universidades; iii) o elevado grau de judicialização das demandas previdenciárias será atenuado; iv) a imagem da administração pública previdenciária será melhor compreendida e aceita, considerando-se a agilidade que se implementará nas câmaras extrajudiciais previdenciárias de mediação e conciliação para solucionar os conflitos. (SANTANA FILHO; BORSIO; GUEDES, 2020).
A autocomposição extrajudicial trazida pelo CPC/2015 através da conciliação e mediação como meios adotados aos processos administrativos previdenciários serão norteadores na construção de um modelo novo de administração pública previdenciária na medida em que diminuirão a problemática judicialização da previdência rural que tem demonstrado números alarmantes, e em contrapartida, trarão celeridade a todo sistema resguardando princípios constitucionais, como o respeito à dignidade da pessoa humana, ao mínimo existencial e à vedação ao retrocesso social, tão importantes, sobretudo para essa camada social mais carente de assistência como é o trabalhador rural.
Sob a luz dos benefícios indeferidos, conforme exposto pela figura 2 anteriormente, o número de indeferimentos pelas vias administrativas e judiciais sofreu um aumento considerável. Ademais, de acordo com Anita Brumer (2002), estes números revelam uma possível estratégia de contenção do benefício rural mediante os critérios subjetivos utilizados para tanto.
Nos anos 90 ocorreu o que se chamou de represamento dos benefícios da previdência rural, a partir de um conjunto de novas exigências documentais feita pelo INSS, prejudicando essa camada mais vulnerável em relação ao acesso a este benefício. Atualmente estes indeferimentos se dão por outra via, qual seja a redução das agências da Previdência Social Móveis, em locais onde não contam com uma agência fixa, dificultando o acesso do requerente (BRUMER, 2002).
Portanto, é necessário falar sobre estes números alarmantes que, no mínimo, demonstram um verdadeiro descaso com essa camada social marginalizada e vulnerável, que trabalham uma vida inteira em condições muitas vezes precárias, sem acesso a direitos, e que quando acionam seu direito ao benefício previdenciário encontram uma série de obstáculos nesse sistema, causando ainda mais desconforto.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os dados levantados neste trabalho possibilitam uma reflexão a respeito do que vem acontecendo na previdência social rural, sobretudo nos altos índices de judicialização, e o questionamento sobre quais meios devem ser utilizados para comprovação do exercício da atividade rural.
As regras de acesso e a própria Lei trazem uma série de documentos para comprovação da atividade rural, porém ainda existem lacunas nestes mecanismos de identificação da atividade como rural o que prejudica o solicitante quando do momento da confirmação de que tenha, de fato, trabalhado nesta condição.
Essa subjetividade traz como conseqüência os altos índices de indeferimentos do benefício, fazendo com que o trabalhador do campo recorra às vias judiciais. Sendo para tanto, o meio extrajudicial como meio de resolução das controvérsias previdenciárias uma opção considerável, trazendo celeridade ao processo, diminuição de custos e uma melhoria na imagem da administração pública para com a população.
A importância deste benefício para o trabalhador rural possui efeitos sociais associados aos mais diversos setores da vida dessas famílias. Vai desde a melhoria de indicadores de moradia, segurança alimentar, consumo e acesso à educação até a geração de condições fundamentais à reprodução social da agricultura familiar. As conseqüências são vistas através do aumento das taxas de permanência no campo e no crescimento da renda familiar.
Atualmente, em torno de 9 milhões de famílias são beneficiárias do sistema previdenciário rural, e de acordo com o último censo agropecuário, o Brasil tem mais de 15 milhões de trabalhadores rurais. O produtor rural movimenta um dos setores mais dinâmicos da economia brasileira, senão o mais importante e por isso é tão necessária a discussão em torno da previdência rural, tema longe de ser esgotado e que devem ser exploradas soluções para a sua desjudicialização.
REFERÊNCIAS
BERWANGER, Jane. Segurado especial: O conceito jurídico para além da sobrevivência individual. Curitiba: Juruá Editora, 2013.
BRASIL. Boletim Estatístico da Previdência Social (BEPS). Vol. 35, Nº 12, 2019.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. LEI Nº 8.023, DE 12 DE ABRIL DE 1990. Altera a legislação do Imposto de Renda sobre o resultado da atividade rural, e dá outras providências. Brasília, DF: 1990.
BRUMER, Anita. Previdência social rural e gênero. In: Sociologias, Porto Alegre, ano 4, Nº 7, jan./jun., p. 50-81, 2002.
CNJ. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Estratégia Nacional Integrada para Desjudicialização da Previdência Social. 2019. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/3e4bc8c071d1c8851b140ed30e4c97ef.pdf>. Acesso em: 06 ago 2021.
GLOBO. Agro: A Indústria Riqueza do Brasil. G1, 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/agronegocios/agro-a-industria-riqueza-do brasil/noticia/2020/08/16/brasil-tem-15-milhoes-de-pessoas-trabalhando-no campo.ghtml>. Acesso em: 06 jun 2021.
INGRÁCIO, Aparecida. Aposentadoria Rural 2021 com a Reforma da Previdência. 2020. Disponível em: < https://ingracio.adv.br/aposentadoria-rural-reforma-da-previdencia/>. Acesso em: 12 jul 2021.
LEMOS, Danilo. Aposentadoria rural: guia completo (2021). 2021. Disponível em: <https://lemosdemiranda.adv.br/aposentadoria-rural/>. Acesso em: 09 jul 2021.
MARANHÃO, Rebecca Lima Albuquerque; VIEIRA FILHO, José Eustáquio Ribeiro. Previdência rural no Brasil. Texto para Discussão, Nº. 2404. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 2018.
SANTANA FILHO, Dariel; BORSIO, Marcelo; GUEDES, Jefferson. A previdência social rural sob check-up: uma análise crítica dos dados encontrados e soluções para a sua desjudicialização. E-Revista Internacional de la Protección Social (e-RIPS). Vol. V. Nº 2, 2020.
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Autor
- Jéssica Coelho Gomes Ferreira – Advogada e Analista Internacional