Internacional
Em meio ao caos econômico, a Argentina enfrenta uma crise pelo comando do peronismo
Se a Argentina já se via às voltas com mais uma grave crise econômica que de tempos em tempos assombra o país, a troca de comando no Ministério da Economia — Martín Guzmán saiu para dar lugar a Silvina Batakis — serve apenas como maquiagem de um cenário que parece fora do controle. A pressão que levou à renúncia do aliado de primeira hora do presidente Alberto Fernández mostra a força que a ex-presidente Cristina Kirchner, sua vice e atual inimiga, ainda mantém sobre o país. Foi ela que indicou a nova ministra da Economia. Mais que isso: dá a medida do poder que diferentes facções do peronismo, apoiadas em bases populares, segue exercendo sobre os argentinos desde os anos 1940.
Visões divergentes sobre economia levaram ao inevitável choque, com a população protestando contra a alta do custo de vida e a falta de emprego. Em 15 de junho o Indec (Instituto Nacional de Estatísticas e Censo) publicou que a inflação em maio saltou para 60,7% ao ano, a maior em três décadas. Intolerável até se comparada ao Brasil, que teve 11,73% no mesmo período, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Em 2020, pesquisa do ODSA (Observatório da Dívida Social) já detectava que 44,2% da população argentina estava abaixo da linha da pobreza (leia-se: passando fome). Desde então, os embates seguiram fortes entre a política econômica mais ortodoxa de Guzmán e o intervencionismo escrachado dos kirchneristas, de apelo social. Prevaleceu a mão forte de Cristina Kirchner, que há tempos nem fala com o presidente Fernández. Os dois haviam se juntado na “Frente de Todos”, que se transformou em uma “frente de todos contra todos”.
Ao contrário do que queria a vice-presidente, Guzmán negociou por meses com o FMI (Fundo Monetário Internacional) até evitar a nona moratória do país. Conseguiu facilidades estendidas para liquidar os US$ 44 bilhões já recebidos, do crédito acordado em US$ 57 milhões pelo ex-presidente Mauricio Macri, em 2018 — o maior da história do banco.
“A Argentina havia optado por uma política de estabilização, com a linha ortodoxa de Guzmán, que se opõe ao intervencionismo do Estado”, observa Natalie Verndl, economista. No braço-de-ferro, a vencedora ainda conseguiu indicar a substituta do ex-ministro – sua amiga economista Silvina Batakis. “De toda forma, o Guzmán não sai como vilão”, diz a especialista.
Corrida às compras
Do ponto de vista político, o grande racha se deu quando o governo Fernández perdeu a maioria no Senado, em novembro de 2021. Para a população, a vida só foi piorando. E a renúncia de Guzmán, mais a disparada do dólar (do sábado, 2, para a segunda-feira, 4, subiu 17% no mercado paralelo, com a diferença para o oficial chegando a 123%), motivou uma correria atrás de compras, ao mesmo tempo em que comerciantes cancelavam pedidos e travavam estoques. “A chamada memória econômica, de outras crises, fez com que a população saísse em busca de tudo: celulares, computadores, peças no geral. A referência de valores se perdeu, com todos temendo a falta de produtos essenciais no mercado”, observa Natalie. “Tanto que as vendas subiram 35% com a saída do ministro”, assinala.
“Se Guzmán seguia um caminho convencional, optando pela estabilidade, apesar do impacto grande para a população, é difícil saber para qual direção seguirá a nova ministra, de viés heterodoxo, neste momento de ruptura”, diz Natalie. O medo do mercado está na possibilidade de abandono da austeridade fiscal e de uma aposta em emissão monetária — o que pode dar uma falsa esperança à população, já que alimentará a alta de preços. A pergunta, hoje, é se Silvina Batakis vai se voltar para essa sensação de melhora de vida ou para o enfrentamento da inflação. “Ela não tem tanta margem de ação, mas a decisão está nas mãos dela.”