Judiciário
Ministério Público e Tribunais de Contas
Alterações da Lei de Improbidade Administrativa
Recentemente o Supremo Tribunal Federal suspendeu parte de alterações da Lei de Improbidade Administrativa – LIA – Lei Federal nº 8.429/92 alterados pela Lei Federal nº 14.230/21. Neste artigo, iremos tratar apenas da suspensão do § 3º do art. 17-B, presente no art. 2ºda Lei 14.230/21.
Em 27 de dezembro de 2022, o Min Alexandre de Moraes concedeu medida liminar para suspender dispositivos da Lei de Improbidade Administrativa alterados pela Lei 14.230/21. A decisão, a ser referendada pelo Plenário da Corte, foi tomada na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7236, ajuizada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp).
A CONAMP aduz a inconstitucionalidade do § 3º do art. 17-B, presente no art. 2ºda Lei 14.230/2021, sob o fundamento de que a condição de procedibilidade prevista na norma (oitiva obrigatória do Tribunal de Contas competente para fins de apuração do valor do dano a ser ressarcido na hipótese de celebração de acordo de não persecução civil) “interfere diretamente na autonomia do Ministério Público, que é um dos legitimados para a propositura da ação de improbidade administrativa”, além de transformar os Tribunais de Contas “em órgãos de assessoria do Ministério Público em matéria de ANPC”, alterando o plexo de suas atribuições constitucionalmente delineadas.
No ponto, caso improcedente a tese principal de inconstitucionalidade, pleiteia a CONAMP a declaração de inconstitucionalidade parcial, de forma subsidiária (Art. 326 do CPC), sem redução de texto da norma, no sentido de que “inexiste qualquer obrigação ou vinculação da instituição ministerial, antes uma faculdade, em colher a manifestação do Tribunal de Contas quanto a se perquiriro quantum do valor a ser ressarcido no bojo dos acordos de não persecução civil”.
O Min Alexandre de Moraes registrou em seu voto que: “o texto constitucional ampliou sobremaneira as funções do Ministério Público, transformando-o em verdadeiro defensor da sociedade, tanto no campo penal, com a titularidade privativa da ação penal pública, quanto no campo cível, como fiscal dos demais Poderes Públicos e defensor da legalidade e moralidade administrativa, inclusive com a titularidade do inquérito civile da ação civil pública”.
É certo que a Constituição Federal prevê, no inciso III do art. 129, que compete ao Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a promoção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. Essa disposição constitucional, também apontanda pelo Ministro, ampliou o rol previsto no art. 1º,inciso IV, da Lei Federal 7.347/85, para incluir a defesa, por meio de ação civil pública, de interesses transindividuais, possibilitando a fixação de responsabilidades (ressarcimento ao erário; perda do mandato; suspensãodos direitos políticos; aplicação de multas) por prejuízos causados não só aos interesses expressamente nela previstos, mas também quaisquer outros de natureza difusa ou coletiva, sem prejuízo da ação popular. Entre esses, outros interesses não previstos na lei citada, destacam-se a defesa do patrimônio público e da moralidade administrativa, ambos de natureza indiscutivelmente difusa.
Em paralelo ao entendimento prevalente no recente julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 7042 e 7043 (legitimidadeconcorrente e disjuntiva entre Fazenda Pública e Ministério Público), a Lei 14.230/2021 reforçou a legitimidade do Ministério Público para a propositura da ação por ato de improbidade administrativa (art. 17 da Lei 8.429/1992) e para a celebração de acordo de não persecução civil (art. 17-B da Lei 8.429/1992).
Nada obstante, ao regulamentar esse instrumento de consensualidade administrativa, o dispositivo questionado estabelece, d.m.v, de forma equivocada, a obrigatoriedade da oitiva do Tribunal de Contas competente, que deverá se manifestar, com a indicação dos parâmetros utilizados, no prazo de 90 (noventa) dias.
E como bem apontado pelo Ministro:
“Ao assim dispor, a norma aparenta condicionar o exercício da atividade-fim do Ministério Público à atuação da Corte de Contas, transmudando-a em uma espécie de ato complexo apto a interferir indevidamente na autonomia funcional constitucionalmente asseguradaao órgão ministerial“. (ADI) 723
Ainda de acordo com o Ministro Relator: “eventual desrespeito à plena autonomia do Ministério Público, em análise sumária, consiste em inconstitucionalidade perante a independência funcional consagrada nos artigos 127 e 128 daConstituição Federal”.
Neste sentido, destaco o pensamento do Ilmo. Professor Eduardo Cambi, o qual preleciona que: “o princípio da independência funcional é uma prerrogativa, conferida pelo artigo 127, 1º, da Constituição Federal, ao Ministério Público para que possa, em nome da sociedade, agir na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput, CF)“. (CAMBI, Eduardo. Princípio da Independência Funcional e Planejamento Estratégico do Ministério Público. pag. 34.)
O princípio da independência funcional obsta inclusive a atuação do Conselho Nacional do Ministério Público na atividade-fim do agente ministerial. Nesse sentido:
EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ANULAÇÃO DE ATO DO CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO EM TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA. ATIVIDADE-FIM DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL INTERFERÊNCIA NA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E NA INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL DO CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO ESPÍRITO SANTO – CSMP/ES MANDADO DE SEGURANÇA CONCEDIDO (STF, MS 28028, Relator (a): CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 30/10/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-107 DIVULG 06-06-2013 PUBLIC 07-06-2013
Registra-se que além de inúmeras incertezas que circundam a aplicação da regra (v.g. vinculatividade do cálculo realizado e procedimentos para sua oitiva), a própria fixação de prazo para a manifestação, mediante lei ordinária de autoria parlamentar, afeta o gozo das prerrogativas de autonomia e de autogoverno das Cortes de Contas, o que, na linha do que previsto pelo texto constitucional e reconhecido pela reiterada jurisprudência do STF, “inclui, essencialmente, a iniciativa reservada para instaurar processo legislativo que pretenda alterar sua organização e seu funcionamento, como resulta da interpretação lógico-sistemática dos artigos 73, 75 e 96, II, d, da Constituição Federal” ( ADI 4643,Rel. Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, DJe de 03/06/2019. No mesmo sentido: ADI 789, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, DJ de19/12/1994; ADI 1994, Rel. Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, DJ de08/09/2006; ADI 3223, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, DJe de02/02/2015; e ADI 5323, Rel. Min. ROSA WEBER, Tribunal Pleno, DJe de06/05/2016).
Além disso, é oportuno consignar o pensamento dos professores Fabrício Motta e Ismar Viana em relação ao problema prático que poderá surgir:
“O problema pratico pode surgir quando se leva em conta que os Tribunais de Contas têm seus planos anuais de auditoria a serem concretizados, além de outras competências de raiz constitucional, o que poderá inviabilizar a manifestação, no âmbito dos acordos de não persecução civil, dentro do prazo de 90 (noventa) dias. Tais circunstâncias levam esse prazo a ser rotulado como prazo impróprio. Entretanto, importante ponderar que a ausência de manifestação dentro do prazo legal preestabelecido poderá comprometer a efetividade dos acordos, em razão das causas de interrupção e suspensão de prazos prescricionais contempladas no art. 23 da LIA, de forma taxativa e restrita, especialmente se a proposta de celebração de acordo se der no curso da ação ou no momento da execução da sentença condenatória (S4º do art. 17-B)“. (MOTTA, Fabrício; VIANA, Ismar (coord). Improbidade Administrativa e Tribunais de Contas aos inovações trazidas pela lei nº 14.230/2021. Belo Horizonte. Fórum. 2022. p.169)
Por fim, não custa lembrar que nos termos dos artigos 70 e 71 da Constituição Federal de 1988 (CF88), o controle externo deve consistir da fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da administração pública federal, e está a cargo do Congresso Nacional, que o exerce com o auxílio do Tribunal de Contas da União – TCU.
Ademais, torna-se imprescindível registrar que o Tribunal de Contas não é órgão auxiliar do Poder Legislativo, órgão de assessoramento do parlamento ou seu apêndice. Constitui, no mínimo, desconhecimento da históriae da Constituição assim cognominá-lo. Se assim fosse, como explicar que o Tribunal de Contas da União faz auditoria nas Casas do Congresso Nacional, julga aposentadoria de servidores da Câmara e do Senado, determina ao Poder Legislativo que se abstenha da prática de ato? Como explicar recente decisao do Tribunal de Contas do Distrito Federal, o qual, acolhendo representação do Ministério Público que atua junto àquele Tribunal, realizou auditoria na Câmara Legislativa?
Indubitavelmente, o controle externo visa comprovar a probidade da Administração e a regularidade da guarda e do emprego dos bens, valores e dinheiros públicos, assim como a fiel execução do orçamento. Esse controle é, por excelência, um controle político de legalidade contábil e financeira.
É importante ressaltar, ainda, que a CF/88 instituiu, pelo artigo 74, que “qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma de lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União”. Dessa forma, a cidadania é fortalecida pela carta constitucional, consolidando um pacto entre o Estado e a sociedade civil.
Tribunal de Contas: órgão subordinado ou independente?
TCU: órgão subordinado ou independente?
Muito se fala sobre o lugar que o Tribunal de Contas da União exerce na administração pública brasileira. Alguns autores consideram que o TCU, na condição de órgão auxiliar do Congresso Nacional na função do controle externo, está subordinado ao Poder Legislativo – fazendo, inclusive, parte desse poder. No entanto, o teor da Constituição de 1988 expressa que o TCU é um órgão independente e autônomo, ou seja, não pertencendo a nenhum dos poderes – Executivo, Legislativo ou Judiciário. O TCU é independente porque a própria CF88 lhe atribui, no artigo 33, § 2º, e no artigo 71, competências próprias e privativas. Importa lembrar que essas competências não são delegadas pelo Congresso Nacional. A autonomia do Tribunal de Contas da União advém de sua capacidade de definir a forma como pretende atuar no cumprimento de sua missão constitucional, por dispor de orçamento próprio e por ter iniciativa de lei para definir os planos de cargos e salários de seus servidores, entre outras atribuições. Essa autonomia encontra guarida na Constituição Federal nos artigos 73 e 96.
Na ADIn 4418, o Pleno do STF, em 2014, asseverou que” as cortes de contas seguem o exemplo dos tribunais judiciários no que concerne às garantias de independência, sendo também detentoras de autonomia funcional, administrativa e financeira “. No mesmo sentido, no julgamento da ADIn 4643 – MC, o Pleno do STF, em 2016, reconheceu que”as Cortes de Contas do país, conforme reconhecido pela Constituição de 1988 e por esta Suprema Corte, gozam das prerrogativas da autonomia e do autogoverno”.
A propósito, no RE 576920, o Tribunal Pleno entendeu que”a competência desempenhada pelo Tribunal de Contas não é, necessariamente, a de mero auxiliar do poder legislativo”, evidenciando, mais uma vez, o seu protagonismo.
Dito isto, é imperioso destacar o papel instrumental do Tribunal de Contas que, junto com o Ministério Público, funciona como órgão satelital, que orbita os Poderes na fiscalização do Princípio Republicano, ou seja, atua diretamente na tomada de contas públicas, pois no Estado de Direito, os atos e decisões praticados pelos agentes públicos, ou por órgãos e entidades, devem sempre estar sujeitos a algum tipo de controle e responsabilidade.
Portanto, é acertado o reconhecimento do Tribunal de Contas como órgão sui generis (órgão satelital), detentor dos atributos da independência e autonomia, com funções claramente desenhadas pela Constituição da Republica Federativa do Brasil, especialmente quanto à legalidade, legitimidade e economicidade dos atos sujeitos à sua atribuição.
Portanto, se é órgão autônomo e não está inserido no Poder Executivo, a relação entre Tribunal de Contas e qualquer órgão de Poder é de colaboração, a exemplo do que ocorre entre casas do parlamento ou juízos e tribunais do Poder Judiciário. Esse raciocínio deve ser desde logo estabelecido a fim de que não se incorra em equívoco ao tentar subjugar o Tribunal de Contas.
Por outro lado, ad cautelam, devem sempre os Tribunais de Contas ter consciência de que o titular do controle externo é o Poder Legislativo, razão pela qual não podem deixar de emprestar colaboração nas auditorias e inspeções que lhe forem requeridas. Aliás, compreende-se que a Constituição tenha dado essa titularidade ao Poder Legislativo porque esse é composto de representantes do povo, com legitimidade para impor a arrecadação tributária, definir sua aplicação, mediante a Lei Orçamentária, e, por corolário natural, exercer o controle.
À vista disso, acreditamos que a referida norma (17-B, § 3º da Lei 8.429/1992, incluído pela Lei 14.230/2021)é inconstitucional e fere a autonomia dos Tribunais de Contas e também do Ministério Público, além de causar enorme prejuízo as funções administrativas diante do exíguo prazo (90 dias).
Bons estudos.