Esporte
Está na hora de um órgão regulador do futebol no Brasil?
Inglaterra, país que inventou o esporte mais popular do mundo, estuda implementar uma agência reguladora do futebol
Arrigo Sachi, treinador da seleção italiana na Copa de 94, disse que o futebol é a coisa mais importante dentre as coisas menos importantes do mundo. O futebol seria, assim, objeto para nossas paixões, mas não um tema de Estado. É certo, contudo, que no Brasil o futebol transcende o amor pelo esporte e alcança as esferas política e econômica. Afinal, trata-se de um setor bilionário da economia nacional e que representa um dos principais produtos culturais de exportação do país.
Apesar de recentes iniciativas legislativas que buscaram endereçar questões específicas envolvendo o futebol – como a Lei das Sociedades Anônimas do Futebol (Lei 14.193/2021, ou Lei das SAF) que permite aos clubes de futebol a captação de recursos por meio da incorporação de uma pessoa jurídica sui generis -, o esporte nacional permanece sem uma autoridade pública central, estruturado em um sistema de clubes, federações locais e uma confederação nacional. Por que motivo, então, a desregulamentação do futebol é tida como uma premissa quase sagrada para a organização do esporte nacional?
Recentemente, um país igualmente apaixonado pelo futebol se propôs a refletir sobre seu modelo de regulação do esporte. Na Inglaterra, o Department for Digital, Culture, Media & Sports comissionou uma revisão ampla e independente da governança do futebol no país, apoiada pela respectiva Secretária de Estado Nadine Dorries MP e que envolveu a participação de uma organização autônoma de torcedores, o Fair Game Project.
Concluída em novembro de 2021, a revisão independente apontou que há problemas profundos na administração do futebol local, exacerbados pela pandemia da COVID-19 e pelo crescimento desproporcional dos clubes mais ricos da primeira divisão inglesa. A revisão também concluiu que a fragilidade do futebol inglês é resultado de três fatores principais: (i) incentivos desalinhados entre gestores e clubes, com a busca pelo sucesso de curto prazo; (ii) ausência de padrões de governança, diversidade ou participação dos torcedores na gestão dos clubes e (iii) incapacidade da estrutura regulatória existente para enfrentar os desafios estruturais do futebol moderno.
Diante desses desafios, a principal recomendação da Revisão é a criação de um Regulador Independente para o Futebol Inglês (IREF, na sigla original), que se concentraria na regulamentação da indústria do futebol, com poderes de investigação, fiscalização e sanção amplos.
O órgão regulador contaria com um sistema de licenciamento para operação dos clubes, com previsão de condições para manutenção da licença. Os clubes licenciados teriam de seguir, por exemplo, um padrão de regulamentação financeira (inspirado na regulamentação prudencial do setor bancário inglês) e observar as regras de um código de governança corporativa específico para clubes de futebol profissional, prevendo mais diversidade na gestão e maior envolvimento do torcedor na tomada de decisões.
Em abril de 2022, o governo inglês, encabeçado por uma maioria conservadora tradicionalmente avessa à regulação, publicou sua resposta oficial à revisão independente. O governo acatou integralmente a maior parte das recomendações, incluindo as principais iniciativas de criação de um órgão independente e de previsão de um sistema de licenciamento para os clubes. A iniciativa, que atualmente tramita no parlamento inglês, conta com amplo suporte dos parlamentares, apesar da oposição dos maiores clubes e da Federação Inglesa.
Apesar da profundidade da análise empreendida, não se pode transplantar automaticamente suas conclusões para nossa realidade. Afinal, o futebol brasileiro tem vantagens e problemas distintos daqueles que se observam na Inglaterra, o maior mercado para futebol de clubes. No Brasil, existe um conjunto de regulações específicas que se aplicam direta ou indiretamente ao futebol, como, por exemplo a Lei Pelé (Lei nº 9.615/1998); a regulação do COAF sobre transferência de atletas; Estatuto do Torcedor e, mais recentemente, a já referida Lei das SAF.
Há, contudo, semelhanças no que se referem a pelo menos dois problemas particulares que permanecem sem solução no Brasil: (i) má gestão e governança e (ii) concentração de renda em poucos clubes.
Afinal, é notório o elevadíssimo grau de endividamento dos clubes e são diversos os casos de gestões desastrosas (e até mesmo criminosas), como ilustra o caso do Cruzeiro, que ainda se recupera de um desastre econômico sem precedentes no futebol brasileiro. No mais, a Lei das SAF, que completou recentemente um ano de vigência, traz novos desafios no campo de governança e de participação do torcedor na tomada de decisão dos clubes.
No mais, o futebol brasileiro, tradicionalmente um dos mais competitivos do mundo, tem sofrido um processo drástico de concentração econômica que agrava a situação de disparidade financeira entre os clubes. De acordo com dados de 2021, cinco clubes concentram quase metade da receita dos 27 maiores times do Brasil.
Deve-se levar em consideração que a importância de um clube bem administrado e de um mercado competitivo de futebol não reside apenas na possibilidade de se fazer investimentos em bons jogadores, em uma boa equipe técnica e em um centro de treinamento com uma estrutura de ponta. Afinal, estima-se que o futebol brasileiro empregue cerca de 156 mil pessoas. Clubes mal administrados, endividados e sem padrões claros de regulação podem colocar em xeque setor chave da economia nacional.
Independentemente dessas considerações, a criação de um novo órgão regulador pode não ser a solução ideal para nosso futebol. Por mais que as já existentes leis esparsas possam não ser suficientes para endereçar todas as questões que envolvem o futebol brasileiro, talvez haja outra maneira mais eficaz de lidar com os atuais desafios. Por exemplo, da mesma maneira que é proposta na Inglaterra a aplicação da regulamentação financeira já incidente sobre o setor bancário aos clubes de futebol, no Brasil algo semelhante poderia ser feito, adaptando a legislação vigente às peculiaridades do futebol.
Não se trata, portanto, de uma defesa da regulação pela regulação, mas um convite a um diagnóstico profundo no nosso futebol profissional – feminino e masculino – que não seja guiado por interesses corporativistas e que busque soluções duradouras, inteligentes e eficazes para a maior paixão nacional.