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Judiciário

O debate sobre a indicação de uma mulher à Suprema Corte brasileira

O efeito da desigualdade de gênero na política concorrencial

Com a aposentadoria do ministro Ricardo Lewandowski, que deixa o Supremo Tribunal Federal nesta terça-feira (11), especulações sobre nomes “supremáveis” se acalentaram, assim como o (imprescindível) debate sobre a necessidade desse cargo vir a ser ocupado por uma mulher – considerando que a ministra Rosa Weber tem data de aposentadoria prevista para outubro deste mesmo ano.

Há muito tempo mostra-se inadiável a discussão sobre o aumento da representatividade feminina na Corte Suprema – a guardiã da Constituição. A luta contra a desigualdade de gênero é um dos maiores desafios da nossa geração, e a inclusão de mais mulheres em posições de liderança – especialmente no Poder Judiciário – pode ser um ponto de inflexão para o país.

Em que pese as faculdades brasileiras serem hoje dominadas por mulheres, essa não é a realidade da profissão – ou pelo menos dos cargos com poder decisório, seja nos escritórios de advocacia, seja no serviço público. Não é incomum pensarmos na desigualdade de gênero como um problema social, entretanto, ele também é um problema essencialmente econômico.

Durante a última conferência anual da Comissão de Direito Concorrencial da American Bar Association – evento internacional que reúne cerca de 4.000 profissionais da área –, o painel que discutia hot topics no antitruste contou com a inusitada pergunta de uma advogada negra, formada na Escola de Direito de Harvard, com quem conversamos em seguida. Tamara, que nasceu na Jamaica, estuda temas relacionados à diversidade desde a sua graduação, e fez questão de incluir, no rol dos hot topics abordados pelo painel, uma indagação sobre “qual o posicionamento das autoridades antitruste com relação ao impacto da diversidade de gênero na concorrência”.

O painel que recebeu a pergunta era composto por quatro homens e uma única mulher. Essa mulher se chama Rebecca Slaughter, membra de um colegiado composto por cinco “commissioners”, cargo que no Brasil seria equivalente ao de um conselheiro no Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Para endereçar a pergunta, Slaughter deixou claro que, enquanto é possível identificar progresso em muitas áreas do antitruste, a relação entre gênero e política concorrencial segue bastante inexplorada. Isso porque esta área do direito endereça o contexto das firmas e seus consumidores, sob a perspectiva de suas preferências racionais, o que, em última instância, equivale à habilidade de substituir produtos ou serviços de acordo com a elasticidade de preço da demanda.

O que acontece é que a microeconomia que alimentou o raciocínio concorrencial por muitos anos tradicionalmente enxergou as firmas tão somente como entidades voltadas à maximização do lucro, o que afasta toda a construção doutrinária da teoria de gestão organizacional conhecida como “stakeholder theory”, responsável por introduzir uma visão do capitalismo que enfatiza as relações interconectadas entre uma empresa e seus clientes, fornecedores, funcionários, investidores, comunidades e outros que possuam interesse na organização, no sentido de que as empresas deveriam criar valor não apenas para os seus acionistas, mas para todas estas “partes interessadas”, ou stakeholders.

Pois bem. Em linha com esta visão holística sobre o papel das empresas na sociedade, no último dia 5 de janeiro, a Federal Trade Commission (FTC), um dos órgãos responsáveis pela política concorrencial norte-americana, propôs uma proibição quase total do uso de cláusulas de não concorrência em contratos de trabalho, o que, segundo as estimativas do FTC, pode resultar no aumento salarial de aproximadamente US$ 46 bilhões por ano nos salários e uma redução de aproximadamente 5,5% em diferenças raciais e de gênero no mercado de trabalho.

As cláusulas de não concorrência (non-compete clauses) são definitivamente um dos hot topics do antitruste na atualidade, uma vez que afetam o mercado de trabalho e a disponibilidade de mão de obra, o que, em termos econômicos, constitui um fator de produção. Entretanto, a controvérsia sobre o grau de liberdade na sua utilização está intimamente relacionada à necessidade de ponderar os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência com a proteção do empresário em face das práticas de concorrência desleal, a partir de outro princípio bastante utilizado no Direito Civil: a boa-fé objetiva.

O que você, leitor, pode estar se perguntando, nesse ponto, é qual a relação do efeito das cláusulas de não concorrência no mercado de trabalho e o papel da diversidade de gênero em termos de política concorrencial? Bom, em primeiro lugar, nos parece que o mesmo raciocínio indireto sobre o papel da mão de obra como fator de produção se aplica em ambos os casos. Isto é, na medida em que o uso excessivo de non-competes pode reduzir a mobilidade e o poder de barganha do capital humano, o que, em última instância, ocasionaria desemprego; a inexistência de um ambiente verdadeiramente competitivo no mercado de trabalho a partir de desigualdades de gênero também afeta o ambiente competitivo das firmas, reduzindo sua produtividade a níveis sub-ótimos e, consequentemente, afetando o bem-estar do consumidor.

Em segundo lugar, assim como acontece quando discutimos o efeito do uso de non-competes, questionar o impacto das desigualdades de gênero na competitividade do mercado faz com que, invariavelmente, nos deparemos com o clássico debate sobre os objetivos do antitruste – um tema caloroso e pendular, dada a centralidade do direito da concorrência na promoção do desenvolvimento econômico. Ao discutir o papel do antitruste em resguardar um mercado de trabalho competitivo, não é incomum nos depararmos com críticas no sentido de que se estaria ampliando excessivamente o espectro original de seus objetivos. O mesmo ocorre em relação ao debate sobre o papel da diversidade de gênero na concorrência. Entretanto, parece-nos ser intuitivo pensar que é impossível maximizar o bem-estar do consumidor em um mercado que seja tão permeável a desigualdades.

A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) possui uma série de publicações que não apenas ressaltam a importância da discussão sobre o papel do gênero na política concorrencial, como também exploram o tema a partir das perspectivas de oferta e demanda. Isto é, (i) a partir do papel das mulheres nas firmas; e (ii) a partir de sua experiência na qualidade de consumidoras[1].

Na primeira perspectiva, discute-se o papel feminino sob o ponto de vista da oferta. De acordo com a pesquisa conduzida pelo professor William Kovacic, uma política antitruste mais inclusiva deve enfatizar a utilização de medidas que removam barreiras artificiais a novos negócios encabeçados por grupos sub-representados, como é o caso das mulheres empreendedoras[2]. Neste mesmo sentido, a própria OCDE ressalta a necessidade de enfrentar regras que impeçam o registro de um negócio ou dificultem seu acesso à crédito com base no gênero do empreendedor.

A instituição argumenta que, embora possam parecer competitivos, mercados com homens menos eficientes preenchendo as lacunas deixadas por estas distorções competitivas serão compostos por firmas incapazes de verdadeiramente maximizar valor ao consumidor, exercendo menor pressão competitiva às incumbentes e com isto aumentando sua propensão em abusar do poder de mercado que detêm. Muitas vezes estas barreiras à entrada não constituem restrições discriminatórias positivadas, mas também podem ser materializadas na forma de desincentivos, como barreiras ao ingresso de mulheres em redes ou clubes profissionais e o tratamento discriminatório por parte de instituições financeiras ao as considerarem tomadoras de crédito mais arriscadas.

Além de barreiras à entrada, podemos pensar em duas outras implicações do papel feminino sob o ponto de vista da oferta. Em primeiro lugar, o efeito da mão de obra não remunerada sobre o mercado de trabalho. Trata-se de um conceito cunhado como “Produto Interno Bruto Subvalorizado (PIBS ou GUDP)”, utilizado pela primeira vez em 1988, quando a economista Marilyn Waring reconheceu o fracasso da pesquisa econômica em explicar o trabalho não remunerado das mulheres.

Marilyn então tomou a iniciativa de calcular o que esta mão-de-obra representaria caso fosse remunerada a preços de mercado, havendo concluído que, se este exercício hipotético se tornasse uma realidade, os trabalhos domésticos realizados gratuitamente por mulheres representariam o maior setor da economia global à época de sua pesquisa.

Em 2018, a advogada Sarah Long, apresentou uma das mais comentadas intervenções feitas na “Chillin Competition Conference”[3]. Long inicia sua fala com uma interessante anedota sobre a “mão invisível” que haveria permitido a brilhante produção acadêmica de Adam Smith: o trabalho doméstico não-remunerado de sua mãe.

Sarah trouxe uma – previsível – porém reveladora informação: pesquisas apontam que mulheres que estão ativas no mercado de trabalho realizam em média duas horas a mais de trabalho “não-remunerado” em comparação aos homens, um fato que já vem sendo explorado em estudos conduzidos pelas autoridades concorrenciais de outros países, a exemplo de Japão, Suécia e Reino Unido.

Estes estudos procuraram explorar o efeito do aumento da oferta de serviços substitutos, ou seja, serviços que seriam realizados, de forma não-remunerada, por mulheres, e passariam a ser realizados, de forma remunerada, por terceiros, como é o caso dos serviços de creche ou limpeza. O resultado destas pesquisas divulgado por estas autoridades concorrenciais é inclusive referendado pela OCDE: o aumento da oferta de substitutos resultaria em um “dividendo duplo”, significando eficiência de mercado e maximização do excedente do consumidor, além de aumentar o engajamento feminino na força de trabalho.

Retornando à pesquisa da OCDE, a segunda perspectiva explorada pela instituição discute o papel feminino sob o ponto de vista da demanda, isto é, do papel do gênero no consumo. Nessa perspectiva, é possível identificar o impacto da inteligência algorítmica em comportamentos discriminatórios, na medida em que há uma propensão das máquinas a identificarem o gênero como um indicativo de elasticidade de preço da demanda, o que incentivaria uma tendência discriminatória não apenas quanto ao preço, mas em relação a outros termos comerciais, como formas de pagamento ou a maneira como o produto é entregue.

Práticas discriminatórias possuem um efeito econômico ambíguo em relação à concorrência. Isto é, se por um lado é possível promover eficiências alocativas com a expansão da oferta, por outro, é igualmente possível que a sua utilização implique em uma transferência de bem-estar do consumidor para o produtor, o que, no longo prazo, pode forçar a saída de empresas rivais e com isso, reduzir a oferta. Daí a ambiguidade.

É possível que a discriminação seja considerada uma conduta anticompetitiva quando gere impactos negativos à concorrência. Em linha com a análise empreendida nos precedentes do Cade, a conclusão sobre a existência de condutas discriminatórias anticompetitivas prescinde da identificação de três fatores: (i) se a empresa que pratica a conduta possui posição dominante; (ii) se há justificativas plausíveis para a discriminação; e (iii) se a conduta pode trazer prejuízos para a concorrência no caso concreto (ou seja, não há eficiência econômica na prática identificada).

De acordo com a OCDE, há muitos países em que a diferenciação de preço com base no gênero é ilegal per se, assim como outras práticas discriminatórias relacionadas à raça ou a diferentes tipos de deficiência. Cita-se, por exemplo, o caso julgado no âmbito da União Europeia em que se entendeu que a diferenciação nos preços de seguros automotivos baseada em gênero seria ilegal.

Para além do efeito na identificação de condutas anticompetitivas, pensar no papel do gênero sob o ponto de vista da demanda também implica em melhorar a definição dos mercados relevantes. Como destaca a OCDE, se pequenas diferenciações de preço baseadas no gênero são sustentáveis ao longo do tempo, isto pode muito bem ser um indicativo de que, ao invés de práticas discriminatórias, possamos estar nos deparando com dois mercados diferentes sob a dimensão produto, o que pode ter um impacto significativo na qualidade do controle de estruturas, uma vez que subdimensionar uma participação de mercado, em última instância, significa permitir uma concentração excessiva que restrinja a competição e, com isso, igualmente afete o bem-estar dos consumidores.

Retomando assim a pergunta feita por Tamara, entendemos que as evidências trazidas acima são suficientes para justificar porque o gênero deveria estar na agenda dos hot topics do antitruste. Isto é, já se foi o tempo em que a luta contra a desigualdade de gênero poderia ser considerada uma pauta social de segundo plano. Além de ser um problema econômico, seu impacto na produtividade e na competitividade das firmas brasileiras justifica a necessidade de compreender a diversidade de gênero não como um fardo, mas como um ativo. No contexto da inclusão de um quórum feminino (ainda inexpressivo) de menos de 20% dos assentos da suprema corte, nos parece que a indicação de uma mulher seja não apenas desejável, mas um tanto imprescindível a um órgão responsável pela manutenção de uma democracia verdadeiramente “inabalável”.


[1] PIKE, Chris. What’s gender got to do with competition policy, OECD on the Level, mar. 2018 Disponível em: https://oecdonthelevel.com/2018/03/02/whats-gender-got-to-do-with-competition-policy/. Acesso em: 07/04/2023.

[2] PIKE, Chris. Shaping the “she-covery”: Using gender inclusive competition policy to build back better Link to an external site icon Blog by Chris Pike, OECD on the Level, aug. 2020. Disponível em: oecd.org/daf/competition/gender-inclusive-competition-proj-7-incorporating-gender-as-a-prioritization-principle.pdf. Acesso em: 07/04/2023.

[3] LAMADRID, Alfonso; COLOMO, Pablo Ibáñez. 4th Chillin’Competition Conference (20 November 2018) – The Programme. Chillin’Competition, nov. 2018. Disponível em:  https://chillingcompetition.com/2018/09/20/4th-chillincompetition-conference-20-november-2018-the-programme/. Acesso em: 07.04.2023.

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