CONCURSO E EMPREGO
Casos notórios de trabalho análogo à escravidão no Brasil
Situação de trabalhadores ligados a vinícolas gaúchas não é exemplo isolado. Relembre outros episódios de exploração que marcaram a história recente do país
O recente caso envolvendo mais de 200 trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, em meio à colheita de uvas que seriam utilizadas por famosas vinícolas, chamou atenção para uma triste realidade que ainda afeta milhares de pessoas no Brasil.
De acordo com dados divulgados pelo Ministério do Trabalho e Emprego, somente nos primeiros meses deste ano foram resgatados 1.201 trabalhadores explorados em condições de trabalho análogos às de escravo. Em 2022, foram 2.575 resgatados, em 462 operações de fiscalização.
Apenas em três estados da federação não foram encontrados casos do tipo ao longo de 2022: Alagoas, Amazonas e Amapá. A maior parte dos casos identificados foi em Minas Gerais, com 1.070 trabalhadores na situação — o estado lidera o ranking desde 2013.
Entre as vítimas em todo o país, a maior parte (92%) eram homens; 51% residiam na região nordeste e outros 58% eram naturais dessa região; 83% deles se autodeclararam negros ou pardos e 15% brancos; e 7% eram analfabetos. Trinta e cinco crianças e adolescentes também foram resgatados.
O cultivo de cana-de-açúcar, tarefas de apoio à agricultura, produção de carvão vegetal e cultivo de alho e café foram as atividades econômicas com maior número de trabalhadores explorados no ano passado.
Os dados de 2022 indicam um crescimento de 31% no número de pessoas resgatadas do trabalho análogo à escravidão em comparação com o ano de 2021, e 127% a mais do que em 2019, o último ano antes da pandemia de covid-19. Aumentou também o número de estrangeiros resgatados sob tais condições no Brasil: 148, frente a 74 (a metade) em 2021.
A seguir, a DW reuniu casos de trabalho análogo à escravidão que marcaram a história recente do Brasil.
“Fazenda Volkswagen” na Amazônia
Um dos casos mais notórios de trabalho análogo à escravidão no Brasil foi o ocorrido em uma propriedade rural de mais de 139 mil hectares no Pará, entre os anos 1970 e 1980. Trata-se da Fazenda Vale do Rio Cristalino, mais conhecida como “Fazenda Volkswagen”, porque pertence a uma subsidiária da companhia.
De acordo com levantamento realizado pela Comissão Pastoral da Terra e pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e encaminhada ao Ministério Público do Trabalho em 2019, a fazenda chegou a contar com 900 trabalhadores, sendo que dois terços eram explorados em condições análogas à escravidão.
O empreendimento, subsidiado pelo governo militar por meio da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e do Banco da Amazônia S/A (Basa) estava dentro do conceito de ocupação da Floresta Amazônica e conversão de áreas naturais em pastagens.
Conforme a apuração realizada pelos pesquisadores, tarefas como administração, segurança, fiscalização e manejo de gado eram conduzidas pelos 300 empregados em condições normais. Aos demais 600, sem vínculo empregatício, eram destinadas tarefas como roçagem e desmate da floresta. Eles teriam sido submetidos a um regime de vigilância armada, impedimento de sair da fazenda, alojamentos insalubres, falta de acesso a água potável e a alimentação adequada e negativa de acesso a tratamentos médicos.
Produção de fumo no RS e café em MG
Desde 2003, o governo federal mantêm um cadastro popularmente conhecido como “lista suja” do trabalho escravo, que reúne empregadores que usaram mão de obra em condições análogas à escravidão.
Um dos mais recentes a entrar na lista foi a propriedade rural de Torcato Junior Tatim, produtora de fumo em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul. Ali, em janeiro de 2021, foram resgatados três trabalhadores que moravam em condições precárias e não sabiam ao certo desde quando estavam ali ou quanto recebiam de salário. O fumo produzido na fazenda era comprado pela subsidiária brasileira da multinacional americana Universal Leaf.
Em 2019, se tornou público o caso da Fazenda Cedro II, no Triângulo Mineiro. Ali, auditores fiscais encontraram trabalhadores que eram submetidos a jornadas que chegavam a 17 horas por dia e eram alojados em condições consideradas degradantes. O endereço era o produtor do café da marca Fazenda Cedro.
Produção de roupas e empregadas domésticas
Também há exemplos urbanos de trabalho análogo à escravidão. Em 2019, veio à tona o caso da marca de roupas Animale, que em três endereços da região metropolitana de São Paulo mantinha imigrantes bolivianos confinados em condições precárias, submetidos a jornadas de trabalho de mais de 12 horas por dia e em ambiente sob risco de incêndio.
Foi incluída ainda na chamada “lista suja” a empresa Work Global Brasil, que usa comercialmente o nome fantasia de Global Talent. Em 2018, a firma foi condenada pela Justiça do Trabalho por tráfico de pessoas para exploração de trabalho e omissão em caso de trabalho escravo. De acordo com a decisão judicial, 70 imigrantes filipinas agenciadas pela empresa para trabalhos como babás e domésticas foram submetidas a condições análogas à de escravos. Há relatos de longas jornadas de trabalho de até 16 horas por dia e de mulheres que se alimentaram de ração para cães.
Em 2020, a notícia de uma idosa de 61 anos que foi resgatada em condições de trabalho escravo em uma casa em Alto de Pinheiros, bairro nobre de São Paulo, comoveu o país. Contratada como empregada doméstica, ela estaria sem receber salários desde 2011, não tinha férias nem 13°, e vinha sendo submetida a uma rotina de maus-tratos, agressões, tortura psicológica e violência. Quando os policiais chegaram à residência para cumprir o mandado de busca e apreensão solicitado pelo Ministério Público do Trabalho — que havia acolhido a denúncia —, encontraram a vítima alojada em um depósito no quintal, dormindo em um sofá velho e sem acesso a banheiro.
No ano passado, o Tribunal Superior do Trabalho manteve uma família de São Paulo condenada a pagar indenização de R$ 1 milhão a uma empregada doméstica que foi submetida, ao longo de 29 anos, a condições degradantes de trabalho. A vítima teria sido levada de Curitiba para a capital paulista aos 7 anos, com a promessa de ser integrada à família que lhe daria “um futuro melhor”. Acabou sendo privada de brincar e de estudar e, desde a infância, obrigada a desempenhar tarefas domésticas. Ela dormia em um colchão na área de serviço.
Segundo depoimento da trabalhadora, ela só passou a ter registro como empregada doméstica aos 18 anos, mas de seu salário eram descontados todos os produtos que ela consumia na casa. Ainda de acordo com sua denúncia, ela vivia trancafiada.
O que diz a lei
Conforme o Código Penal, o trabalho análogo à escravidão é caracterizado pela submissão de alguém a trabalho forçado ou a jornadas exaustivas, sujeição a condições degradantes ou restrição do ir e vir em razão da dívida com o empregador, por meio da retenção dos documentos do trabalhador ou cerceamento do uso de meios de transporte, por exemplo. Também é passível de punição quem mantém vigilância ostensiva no local de trabalho.
O crime de reduzir alguém a condição análoga à de escravo prevê uma pena de reclusão de dois a oitos anos e multa. A pena aumenta se o trabalhador explorado for criança ou adolescente, se o crime tiver motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça, muitas vezes o trabalho análogo à escravidão também envolve o tráfico de pessoas. São quando aliciadores, “denominados ‘gatos’, geralmente fazem propostas de trabalho para pessoas desenvolverem atividades laborais na agricultura ou pecuária, na construção civil ou em oficinas de costura”, diz texto publicado pelo órgão. “Há casos notórios de imigrantes peruanos, bolivianos e paraguaios aliciados para trabalho análogo ao de escravo em confecções de São Paulo”, exemplifica.
Para o crime de tráfico de pessoas, o Código Penal também prevê pena de reclusão de quatro a oito anos e multa.
Dados do Ministério Público do Trabalho divulgados em julho contabilizam pelo menos 57 mil trabalhadores brasileiros resgatados de condições análogas à escravidão desde 1995.