Segurança Pública
Debatedores discordam sobre a Política Antimanicomial do Judiciário
Senador Paulo Paim preside debate sobre a extinção dos hospitais de custódia e os rumos da Política Antimanicomial
Debatedores divergiram sobre a Política Antimanicomial do Poder Judiciário durante a audiência pública realizada na Comissão de Direitos Humanos (CDH), nesta segunda-feira (22). As principais discordâncias relacionam-se à liberdade de pessoas com transtorno psiquiátrico que cometeram crimes e à capacidade das estruturas de atendimento de saúde mental em recepcionar essas pessoas. A reunião foi realizada para debater a política, elaborada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e para comemorar o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, celebrado na quinta-feira (18).
O senador Paulo Paim (PT-RS), que presidiu a sessão, comentou que a luta antimanicomial surgiu como resposta a violações de direitos humanos que ocorriam em manicômios nos anos 80, como eletrochoques e lobotomias. Para o senador, um dos marcos do movimento é a Lei 10.216, de 2001, que trata de direitos de pessoas com transtorno mental nos tratamentos e internações.
— Precisamos promover inclusão social, dignidade […] Humanizar o tratamento psiquiátrico significa colocar o paciente no centro do cuidado e garantir que suas necessidades sejam levadas em consideração — disse Paim.
A lei 10.216 é conhecida como “lei antimanicomial” ou pelo nome de seu autor, o ex-deputado Paulo Delgado, que esteve presente no debate e defendeu o combate a estigmas negativos contra esses pacientes.
A norma também foi uma das bases para Resolução 487 do CNJ, de fevereiro de 2023, que instituiu a política antimanicomial, que busca cumprir a legislação quanto ao procedimento judicial ou investigatório de pessoas com transtorno mental.
Liberdade
A senadora Damares Alves (Republicanos-DF) lembrou que associações de especialistas, como a Associação Brasileira de Psiquiatras (ABP) e o Conselho Federal de Medicina (CFM), fizeram nota de repúdio à resolução do CNJ por não terem sido ouvidas. A senadora também afirmou que não houve preparação para os serviços de saúde receberem pessoas que hoje estão internadas em hospitais de custódia, que recebem pessoas com transtorno psíquico que cometeram crimes ou que são investigados.
— Há um descompasso entre o fechamento dos leitos e a instalação do novo serviço. É no nosso gabinete que o povo bate, com medo. Quando a gente vê notas da ABP e do CFM falando que não houve conversa, a reação do povo fica muito ruim. Minha preocupação hoje é acalmar a sociedade — afirmou a senadora.
Segundo a resolução do CNJ, os hospitais de custódia e unidades semelhantes devem ser fechadas parcialmente em seis meses e proibir novas internações. As atividades devem ser totalmente encerradas em um ano.
O juiz auxiliar da presidência do órgão, Luis Geraldo Sant’Ana Lanfredi, explicou que os magistrados analisarão cada caso de maneira particular e acompanharão o processo terapêutico.
— Todos estarão submetidos a plano de tratamento individualizado. Não há construção de política genérica […] Nenhum juiz vai abrir portas de manicômio judicial para colocar essas pessoas em situação de periclitação da vida e saúde delas. Essas pessoas serão endereçadas ao sistema de saúde, que poderá oferecer o devido tratamento — disse Luis Geraldo.
A professora de Direito da Universidade de Brasília (UnB), Janaina Penalva da Silva e a Presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Ana Paula Guljor endossaram a avaliação do juiz. As convidadas ainda comentaram o perigo de desinformação que o alarmismo pode gerar.
Os senadores Styvenson Valentim (Podemos-RN) e Eduardo Girão (NOVO-CE) também questionaram se a Lei 10.216, em que se baseia o documento do CNJ, altera leis penais e de processo penal. Também insistiram no perigo que o fim de estabelecimentos de internação podem causar à sociedade.
— Minha preocupação é com aqueles que são inimputáveis. Estuprador não tem cara de louco. Quem conduziria [às unidades de saúde]? Vai pra onde? Pra casa do familiar? Recebi vários áudios de familiares pedindo: “pelo amor de Deus, não solte ele, não bote ele na rua, ele vai me colocar em risco”. E olha que nem é um criminoso — questionou Styvenson.
O doutor em psicologia e promotor do Ministério Público de Goiás, Haroldo Caetano, afirmou, em resposta ao questionamento, que a lógica manicomial, caracterizada pela internação sem previsão certa de soltura, fere direitos fundamentais. Haroldo também expôs fotografias de pessoas internadas em situação precária em hospitais de custódia pelo Brasil.
— A resolução [do CNJ] contrasta com o Código Penal e o Código Processual Penal? Sim, pois a Lei Antimanicomial (Lei 10.216) revogou boa parte de suas disposições, embora tacitamente. A periculosidade do louco já havia sido superada na Constituição de 1988, que só prevê a possibilidade de sanção penal contra quem tem responsabilidade penal […] A atenção à saúde mental não tem a perspectiva da segurança [pública]. Essas unidades são casas de horrores. Todas essas pessoas deveriam estar em liberdade e há condições para isso — defendeu Haroldo, apresentando a experiência de Goiás como um projeto piloto da extinção de manicômios judiciais, que não existem mais desde 2006.
Uma das diretrizes da Lei Antimanicomial e da política do CNJ é priorizar o tratamento ambulatorial — no qual o paciente comparece ao ambiente de tratamento, mas volta à vida cotidiana — à internação, que só poderá ocorrer quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.
Verba
O senador Paim, que afirmou ter se sensibilizado pelas fotografias mostradas por Haroldo, comprometeu-se a destinar emendas orçamentárias para ajudar nessa questão.
Outros participantes também afirmaram a necessidade de destinar recursos a esses serviços públicos. O membro do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Leonardo Penafiel Pinho, defendeu que o mais importante a ser discutido é investimentos na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Essa rede governamental articula diversos postos e serviços de saúde e integração social para pessoas com transtorno mental no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
— A RAPS não tem como absorver essas pessoas. Esse pra mim é o grande debate — ressaltou Leonardo.
O doutor em psiquiatria pela Universidade de Edimburgo, Fábio Gomes de Matos e Souza, defendeu:
— Você vai marcar consulta no CAPS, sabe quando vai marcar? Daqui a seis meses… Sabe quantas residências terapêuticas tem em Fortaleza? Três. E tem uma lista de 60 pessoas pra ir… Tem que aumentar quantidade de CAPs. E por que o CAPS é lá longe do posto? Serve de instrumento de estigmatização. — disse Fábio.
Também participaram do debate o representante do Ministério da Saúde, João Mendes; a conselheira do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Clarissa Paranhos Guedes; o representante da Fundação Oswaldo Cruz, Paulo Amarante; a representante da ABP, Maria Dilma Teodoro; e o representante do Movimento Nacional dos Usuários da Luta Antimanicomial (Monula), Adilson Gonçalves da Silva.
RAPS
A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), é composta por serviços como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), ambientes de atendimento a pessoas com transtorno mental e vícios em álcool e drogas que se encontram em crise ou processo de reabilitação. Funciona como atendimento ambulatorial, ou seja, o paciente não fica internado e volta à vida cotidiana após atendido. Possui caráter aberto e comunitário e conta com equipes multiprofissionais que empregam diferentes estratégias de acolhimento, como psicoterapia e terapia ocupacional, entre outras. Atualmente, existem 2.858 CAPS, sendo a metade localizada em pequenos municípios.
A RAPS ainda tem as Unidades de Acolhimento (UAs), que abrigam e buscam ressocializar essas pessoas, utilizando planos individualizados; os Centros de Convivência e Cultura e os leitos de saúde mental nos hospitais gerais e especializados.
Racismo
No início da reunião, Paim reprovou episódio de racismo ocorrido com o jogador de futebol Vinícius Júnior, na Espanha, neste domingo (21). Os participantes da audiência pública fizeram um minuto de silêncio em solidariedade ao jogador.