Internacional
Rammstein: o desprezo sistemático e naturalizado de mulheres
Se todas as denúncias contra o vocalista Till Lindemann forem provadas, quantas pessoas na cadeia musical normalizaram seu comportamento e até um sistema abusivo e de desprezo a mulheres?
A chegada das mulheres para a festa era chamada de “caminhada das vadias”. “Nas festas pós-show, o Till Lindemann (de 60 anos, líder da banda Rammstein) escolhia as garotas que ele queria. As outras eram chamadas de ‘restos para sexo’ e eram divididas pela equipe”. Essas cenas de horror misógino foram divulgadas na última edição da revista alemã Der Spiegel.
Trata-se, segundo as fontes e dezenas de supostas vítimas, do que acontecia nas noites de show da banda Rammstein, que está no centro do debate sobre misoginia na Alemanha (e também no mundo, já que a banda tem imenso sucesso internacional) desde o fim de maio.
O escândalo começou quando Shelby Lynn, uma fã irlandesa, contou nas redes sociais que foi convidada para uma festa pós-show da banda, onde teria conhecido Lindemann. Segundo a fã, o rock star tentou fazer sexo com ela, que negou. Ela disse que suspeitava que drogas teriam sido adicionadas à sua bebida e que acordou no dia seguinte com hematomas, e que não se lembra do que aconteceu.
De lá para cá, vários novos relatos surgiram e apontam que a prática misógina seria sistemática e extremamente organizada no entorno da banda.
Assim como acontece em outros escândalos de abuso em série (como no caso Jeffrey Epstein, só para citar um), existiria a figura de uma aliciadora. No caso da banda, esse papel seria feito pela russa Alena Makeeva, descrita como “diretora de elenco” do vocalista.
Esquema de abuso profissionalizado
Sua função seria recrutar meninas jovens e bonitas para ocupar a primeira fila do show, em frente ao palco, chamada pela banda de “fila zero”. Elas seriam orientadas a se vestir de maneira provocante, de acordo com relatos de pelo menos duas dezenas de mulheres e também de prints de conversas divulgados pela imprensa alemã.
Depois disso, essas meninas seriam “escolhidas” para participar de festas e algumas eram convidadas a fazer sexo com o vocalista. Muitas afirmam que foram drogadas e vítimas de violência. Ou seja, o esquema de abuso seria extremamente profissionalizado.
Muitas coisas são revoltantes nessa história. Uma delas é o fato de tantas pessoas terem fechado os olhos para o que parece ser um sistema abusivo e de desprezo a mulheres que funcionava há anos. Oras, não estamos falando de um grupo de amigos machistas e bobos, mas de uma empresa super lucrativa. O Rammstein é uma marca poderosa, que vende produtos e faz shows com produções milionárias no mundo todo.
As principais acusações são contra Lindemann, mas quanto mais reportagens são publicadas, mais fica evidente que o resto da banda e equipe não só saberiam dos abusos, como também fariam parte deles em algum momento. Fora eles, há, claro, todas as etapas da indústria da música, como contratantes, produtores e organizadores de shows.
A maioria desses profissionais, pelo jeito, fechou os olhos. Por enquanto, pelo menos um contratante, o canadense Daniel Gélinas, gerente de um festival musical onde o Rammstein tocou em 2010, disse ao Jornal de Québec que haveria recebido um pedido de pessoas próximas à banda de “conseguir mulheres bonitas para a festa pós-show”. Ele também disse que nunca uma banda tinha feito esse pedido.
Esse caso tem 13 anos.
Coisa que “garotos” fazem em turnê?
Se todas as denúncias forem provadas, quantas pessoas nessa cadeia normalizaram a misoginia de Lindemann? Será que esse horror ainda é tratado como coisa que “garotos”, como são chamados na imprensa alemã, do rock fazem em turnê? Acredito que, infelizmente, sim. A relação, muitas vezes abusiva, entre pop stars e groupies é naturalizada e até mitificada desde que o rock é rock. Em alguns casos, o desprezo às mulheres parece estar presente em todas as etapas da engrenagem roqueira.
Passei as últimas semanas lendo sobre o caso Rammstein e conversando com amigas sobre isso. “Já pensou se acontece um #MeToo de todo o mundo da música?”, perguntei para várias e ouvi um: “vixeeee”. Sim, esperamos o pior.
Não estou falando, obviamente, que todos os homens de banda são misóginos. Não é o caso. E, claro, o ódio às mulheres não está restrito a esse ambiente. Ele está institucionalizado em toda a sociedade.
No fim de semana, tivemos mais uma triste prova disso. Uma pesquisa feita pelo Plan International Deutschland mostrou que 33% dos homens alemães entre 18 e 35 anos achavam aceitável “pesar a mão na mulher” de vez em quando por causa de uma discussão. O horror.
O Rammstein, com suas letras sexistas (que até já foram vistas como folclóricas) pode ser a trilha sonora perfeita para esse pesadelo misógino.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
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